É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE – 11
Um maldito
cancro
no pâncreas
Antunes Ferreira
Entrámos. O ´quarto era amplo – de dimensões para oficial – e
estava mobilado com uma cama ortopédica dois cadeirões pretos uma banquinha de
cabeceira e uma coluna onde se encontrava pendurada uma embalagem de soro com o
respectivo tubo. O meu pai estava sentado num cadeirão também ortopédico com
uma manta sobre os joelhos e um casacão militar pelos ombros.
A minha mãe num dos cadeirões
para as visitas lia o “John, Chauffeur
Russo” do Max du Vezyt numa edição Romano Torres que na época era um grande
sucesso e a tia Elsa no outro tricotava pareceu-me um casaquinho de lã azul
celeste. Ambas pararam à nossa chegada e fez-se um vazio de som de cortar à
faca. O meu pai que estava de cabeça baixa e parecia dormitar, levantou-a e
perguntou com voz soturna “o meu silêncio
incomoda?” e só então deu pela nossa presença.
Ficou estupefacto quando deu com o Frederico, abriu a boca mas não
soltou qualquer som, como se a voz se lhe tivesse ficado parada no tempo e de
repente disse baixinho “Frederico…” O
meu irmão respondeu-lhe um pouco mais alto “Sou
eu meu pai, sou eu sim senhor, vim ver como está…” Estava-se no pino do
Inverno, havia um calorífero a óleo, não se via uma mosca, mas se uma houvera
não se ouviria um só zumbido. O capitão Gilberto Saraiva Mendes abriu os braços
e disse para o filho caçula “Perdoa-me
Frederico…” – e, coisa inaudita, correram-lhe grossas lágrimas pela face.
Este avançou, chegou junto ao pai e disse-lhe suavemente “meu pai perdoar-lhe o quê?” e
ajoelhando-se estendeu os braços e abraçou-o no que foi correspondido pelo
progenitor e ficaram assim unidos um longo amplexo e só depois o mano tirou o
lenço do bolso e começou a limpar o rosto do pai. “Eu sei perfeitamente o que aconteceu quando nasci porque depois de ter
chateado muito a Miquelina obriguei-a a contar-me toda a estória…” Ninguém
ocultava o espanto perante tal revelação mas eu sobretudo pensava para com os
meus botões como era incrível que um rapaz apenas com doze anos e com tamanha
deficiência falava com tanta clareza e determinação.
“Meu pai
pode estar certo de que eu sou portador da síndroma de Down mas felizmente não
sou parvo bem pelo contrário. Sei perfeitamente que o desiludi e que não gostou
de mim pelo facto de eu ter nascido assim embora tal não tivesse sido por minha
culpa. Mas o que lá vai lá vai e agora o que me interessa é recuperar os anos
em que estivemos separados para poder ama-lo como um filho tem de amar um pai.”
Gilberto, soluçava a seco agarrado ao filho Frederico e só conseguia dizer “meu filho, meu querido filho, como tu falas verdade,
meu querido filho, não te mereço…”
Aí o meu mano mais novo saiu-se com oura novidade: “O meu pai sabe que eu guardo as duas caixas
de soldadinhos de chumbo?” O capitão não escondeu o espanto e o
sobressalto: “Como assim? Eu tinha-as
levado, ou melhor roubado para dar a umas pessoas, agora não interessa quem,
mas ao sair do portão da nossa casa não sei porquê arrependi-me e deitei-as
para o caixote do lixo!” O Frederico deu uma peque gargalhada: “Mas a Ângela porteira apanhou-as e veio entregá-las
lá acima e a mãe guardou-as e assim que eu pude comecei a brincar com elas!”
Ficámos ali a desbobinar a tarde com o Frederico no centro das
conversas até que chegaram os tios Miguel e Jaime que traziam os carros e nos
iam buscar. Foi aí que se verificou uma questão muito embaraçosa quando o meu
irmão perguntou ao pai se depois de ter alta ele voltaria para casa. O tio
Miguel pigarreou, toda a gente se fechou em copas até que o capitão Gilberto
desembrulhou o atilho revelando que achava melhor que primeiro fosse para o Lar
Militar que havia em Runa e depois logo se veria, mas que por enquanto ainda
ficaria mais uns tempos ali onde o podiam visitar sempre que o quisessem e
pudessem fazer.
E voltámos a casa como Frederico um tanto macambúzio coisa que
nele não era habitual. Durante o curto percurso não abriu a boca. Chovia a
cântaros. Estava combinado que jantaríamos ali e foi também então que a tia
Elsa anunciou um tanto ruborizada que estava novamente de esperanças e já ia
nos três meses. Foi decidido unanimemente e por aclamação (como se diz na
Assembleia Nacional…) meter três garrafas de Raposeira meio seco no frigorífico
para comemorar depois do jantar e a Miquelina informada da ocorrência meteu a
colher de pau à obra e fez um pudim de ovos gigante. Só perante a euforia o
Frederico bateu as palmas e entrou na festa.
Dou um outro salto de dois anos sem nada de muito especial neste
período a não ser que tinha entrado para o COM, o Curso de Oficiais Milicianos,
(ainda não terminara o Direito, estava no quarto ano) e no final dele ficara
colocado no Regimento de Infantaria Um, o RI1, na Amadora, como aspirante a
oficial miliciano desempenhando as funções de oficial da PJM a Polícia
Judiciária Militar, ou seja elaborando os autos e os processos diversos pois já
tinha os conhecimentos suficientes para o fazer. O meu pai estava encantado com
a minha nova situação e a primeira vez que me vira fardado dissera-me que quase
lhe dera um badagaio…
Mas quem ficou realmente muito feliz foi o Frederico que já ia nos
seus quinze anos e já fazia a barba (que alias era escassa e esparsa e que eu
dizia que fora plantada num dia de vendaval… com grandes gargalhadas dele) e deixara
crescer (???) uma “hipótese” de bigode. Estava cada vez mais adulto e o lugar
que tinha na empresa já era fixo, o ordenado merecia-o, o patrão estava
satisfeitíssimo com ele, os colegas continuavam a apoia-lo e os avanços que
registava dia-após-dia eram realmente notáveis. Por outro lado as relações com
o pai Gilberto tinham-se tornado imprescindíveis eram confidentes um do outro,
viviam num sétimo céu.
Porém depois da bonança vem a tempestade. Por uma tarde encarolada
de Agosto, o comandante do Regimento, o coronel Marques Fialho, chamou-me ao
seu gabinete, mandou-me fechar a porta e convidou-me a sentar-me. Assim fiz e
ele começou. “Não sei se você sabe mas eu
e o seu pai somos muito amigos desde a Escola do Exército, ele podia ser coronel
como eu mas meteu-se numas maluquices e…” atalhei dizendo que sabia e ele continuou:
“então também sabe que ele gostava que
você seguisse a carreira militar, mas parece que não está para aí virado e…” voltei
a interrompê-lo “Desculpar-me-á meu comandante
mas não nasci para herói…” O coronel Marques Fialho retorquiu-me: “Nenhum homem nasce herói. As ocasiões é que
fazem os heróis!”
“Mas ouça,
Armando, trato-o assim, como se fosse meu filho, a decisão é sua, não o quero
influenciar. Todavia quando o chamei não era para falar do seu futuro como
militar. Era para lhe comunicar que infelizmente o seu pai e meu grande amigo
tem um cancro no pâncreas.” Tinha-me caído o Mundo em cima. Que mais me
podia acontecer?...
(Continua)
O maldito cancro que tantos vitima e para o qual parece não se encontrar cura.
ResponderEliminarO cancro do pâncreas então é fulminante.
O mesmo que ontem vitimou Aretha Franklin.
Doença maldita!!
Aquele abraço para ti, beijos para a Raquel, bfds
Meu caro Coimbramigo
EliminarVerdade grande como a vida essa que dizes mas infelizmente também como a morte. Desgraçadamente o dinheiro que se gasta com as armas, as guerras e as drogas deveria sim ser aplicado em causas como a descoberta da cura do cancro. Mas o homem é inimigo de si próprio!
Aretha, a Grande Aretha que eu tive a sorte, o privilégio e a honra de conhecer e de com ela falar em Londres quando deu um concerto no Royal Albert Hall. Vida de jornalista...
Triqjs e um abração para tu do teu amigo
Henrique, o Leãozão
Triste realidade. Bom dia
ResponderEliminarMinha querida Nalamiga
EliminarTenho muito prazer em receber-te nesta casa que a partir de agora também é tua e dizer-te que estou de acordo contigo.
Muitos qjs deste teu novo/velho :-) amigo
Henrique, o Leãozão
Bom dia:- Dura história de vida. Maldita doença que tanta gente mata. O cancro do Pâncreas e do Pulmão são na sua grande maioria com uma somente cura: A Morte.
ResponderEliminar.
* Poesia e amor em corações iluminados ( Poetizando e Encantando ) *
.
Votos de um feliz fim-de-semana.
Meu caro Gilamigo
EliminarBoa noite. A vida é na verdade madrasta. Em Março um cancro na próstata levou o meu irmão Braz com 72 anos depois de ter outro no duodeno ter assassinado o meu pai quando eu tinha 18 anos u seja em 1959.
Doença maldita que marca a gente que está Junto de quem a sofre mas não só, pois está por toda a parte e nada nem ninguém a consegue deter. As curas são raras mas felizmente ainda vão acontecendo.
Um abração deste teu amigo e admirador
Henrique, o Leãozão
HenriquAmigo.
ResponderEliminarNo meu tempo de petiz o nefasto câncer era tão temido que não ousávamos pronunciar o nome.
Lembranças para a Dona Raquel.
Meu casto Confradamigo
EliminarFoi um tempo que era assim no Brasil, cá e em toda a parte. De tal forma que ainda agora muita imprensa escrita escreve faleceu vítima de doença prolongada.... O que é um eufemismo estúpido num tempo em que acontecem maravilhas de toda a ordem.
Bjs e abração do casal Ferreira
O mais mortífero dos cancros.
ResponderEliminarAbraço e bom domingo
Minha querida Elvirinhamiga
EliminarTens razão: entre todos é o mais perigoso e assassino.
Muitos qjs deste teu amigo e admirador
Henrique, o Leãozão
Caro Henrique
ResponderEliminarDepois do dramático encontro, tudo serenou, talvez devido ao rapaz Frederico se ter identificado com o capitão seu pai. Houve várias revelações, como a posse dos soldadinhos de chumbo pelo Frederico, já a dar a ideia do apelo de sangue deste. Mereceu a minha atenção, essa do herói, porque na verdade para o ser é preciso viver a ocasião, porque o herói pode até ser bem fraco, mas momentaneamente soube optar por salvar a pele, como sabe quem conheceu o meio de intervenção. Não resisto a contar aqui um caso registado no meu livro AMOR NA GUERRA. Um colega registado herói, era bem tímido, mas num ataque matou para não morres; a certa altura foi convocado a ir a Luanda receber o Cruz de Guerra. Como era soldado raso, foi ao desfile com outros heróis, mas de camioneta militar de carga, de acampamento em acampamento demorando dias, na ida e outros tantos na volta, Como era tímido, regressou desidratado e teve de baixar à enfermaria. Ora um herói, não teria de se deslocar para receber o troféu de avião, ainda que soldado raso? Coisas da Guerra à portuguesa curta!!!
Abraço
Meu caro Danielamigo
EliminarQuando comecei a escrever o episódio já tinha em mente um reencontro feliz e portanto assim aconteceu; mas a disposição de um homem/autor é como o tempo muda sob a influência de um anticiclone situado a sudoeste dos Açores.. Daí o cancro.
Quanto aos heróis e à guerra colonial não adianto mas pois já falei demasiado sobre o tema. Mas não posso deixar de comentar o que dizes sobre a condecoração do teu camarada e pergunto: de que vale uma medalha? Vale por acaso uma vida?
Um abração deste teu amigo
Henrique, o Leãozão
Ainda bem que o pai pediu perdão ao filho.
ResponderEliminarE vim encontrar um velho conhecido:John.
Bom domingo
Minha querida Sãozitamiga
EliminarOs reencontros quando felizes são das melhores coisas que a vida tem e este caso tin ha de ser assim.
E uma pergunta - se não quiseres não tens de responder... - também leste o Chauffeur Russo? Eu que lia tudo o que apanhava devorei o da minha tia Lurdes, irmã da minha mãe... :-)))
Muitos qjs deste teu amigo e também viajante
Henrique, o Leãozão
Obrigada pelo retorno aos comentários lá no meu blog.
ResponderEliminarInfelizmente,nem sempre correspondo aos que esperam de mim, sobre comentar os blog's amigos.Preciso muito de estímulos e de postagens positivas e certas vezes suas histórias de doenças eu leio com atenção,mas nao tenho palavras para comentá-las.
Peço desculpas, e prometo ser mais presente. Assim espero.
um abraço
Minha querida Lisamiga
EliminarNão tens de agradecer pois para mim foi um prazer.
Tenho escrito e rescrito que para mim com autor os comentários são o espelho em que gosto de me me reflexar (adoro criar palavras novas). E não é uma questão de narcisismo é apenas saber se quem me lê gosta ou não gosta do que leu. Isso ajuda-me a melhorar o que faço. Por isso para mim os comentários são essenciais.
Muitos qjs e agora sim obrigado por teres vindo. O teu amigo
Henrique, o Leãozão
"Indira e Rajiv Gandhi, Niculae Ceausescu, Olof Palme, Mikail Gorbachev, Bruno Kreisky, François Mitterrand, Felipe González, Joaquim Chissano, Saddam Hussein, Perez de Cuellar, Konstantin Karamanlis, Andréas Panpandeu e Lech Walesa". Teve o privilégio de entrevistar gente que construiu parte da história contemporânea, Sr.???, deve ter sido uma vida riquíssima como jornalista e agora apresenta-nos textos repletos de sentimentos e dramas e alegrias. confesso a estranheza, logo de cara, por estar acostumado a a textos mais curtos como os do Portela e do Gil, mas tudo é questão de readaptar-se a leitura de uma boa prosa.
ResponderEliminarGrato pela visita e pelo sincero incentivo "juliano", infelizmente, sem a Cleópatra
Abraços.
Meu caro Messiasamigo
EliminarNem tanto ao mar nem tanto à terra. Tive realmente uma vida muito cheia e não a trocava nem troco por mais ma$$a$ que pudesse ter, porque foi aquela que quiz. No entanto toda a moeda tem duas faces: quem a pagou foi a minha família. Porque a vida de jornalista é assoberbante são 24 horas por dia!
Felizmente tive e tenho uma grande Mulher, a Raquel, que me substituiu e criou os nossos três filhos tendo feito deles três Homens de Bem, os melhores filhos do Mundo. Hoje acompanho os quatro netos e a neta (por ordem de idades o João, 25, o Rodrigo, 23, o Xavier, 23, o Vicente, 21 e a Madalena 18 que também são os melhores netos e neta do Mundo.
Quanto à prosa dizem que não dou muitos erros, pudera com a ajuda do corrector automático seria uma desgraça não reparar nas ondinhas vermelhas sublinhando as calinadas. Cá me vou desenrascando e tentando fazer o melhor que posso o que sempre fui fazendo.
Se quiseres fazer o favor de continuar a ler-me tens de aturar-me assim pois posso garantir-te que não é a caminho dos 77 aninhos que vou mudar e a forma que me moldou já se partiu há uma porrada de tempo... :-)))
Um abração do teu novo/velho amigo
Henrique, o Leãozão
Uma dura história!
ResponderEliminarr: Fico contente, volte sempre que quiser :)
Minha querida Andeiamiga
EliminarOra viva, sê bem vinda!!! A chegada de uma nova Amiga é para mim sempre motivo de alegria e de festa. Como dizes eu também o faço: volta mais vezes - nem pagas IVA... :-)))))
Pois as estórias nem sempre são cor-de-rosa...
Muitos qjs deste teu novo/velho amigo
Henrique, o Leãozão
Desta vez a tua narrativa é triste, apesar de o Frederico continuar a ser o "meu herói". Gosto sempre de te ler.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Minha querida Gracinhamiga II
EliminarAndo há uns tempos para to dizer, mas como sou muito tímido e envergonhado hoje é que vai ser! Estou perdidamente apaixonado por ti! Posso escrevê-lo porque a minha Raquel não lê este blogue e assim safo-me...
Estou a brincar, obviamente, mas a paixão é verdadeiramente pela tua obra, pela tua Poesia. Hoje em dia tu és a minha Poeta!
Poizé a narrativa de hoje tem a felicidade do reencontro e do perdão do "teu herói" Frederico que começa a ultrapassar o autor... mas também o maldito cancro. Esta sexta-feira não há saga, sai um textículo mais risonho para desanuviar. Veremos na semana seguinte o que acontecerá.
Muitos qjs deste teu amigo e grande admirador
Henrique, o Leãozão
Todos podíamos contar histórias parecidas.
ResponderEliminarMas nem todos as poderíamos contar tão bem.
A narrativa é apelativa e lê-se de um fôlego. Parabéns.
Caro Henrique, um bom fim de semana.
Abraço.
Que grande saga, Henriquamigo!!! (a mim também me caiu o mundo em cima quando no passado mês de dezembro o meu marido teve de ser operado a um cancro no pâncreas... Mauzito, muito mauzito. Mas, para já, ficou e está bem).
ResponderEliminarBeijinhos para o casalamigo: Raquel e Leãozão!
r: Muito, muito obrigada. É mesmo gratificante ler essas palavras :)
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