2018-08-16


É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE – 11



Um maldito
cancro
no pâncreas
Antunes Ferreira
Entrámos. O ´quarto era amplo – de dimensões para oficial – e estava mobilado com uma cama ortopédica dois cadeirões pretos uma banquinha de cabeceira e uma coluna onde se encontrava pendurada uma embalagem de soro com o respectivo tubo. O meu pai estava sentado num cadeirão também ortopédico com uma manta sobre os joelhos e um casacão militar pelos ombros.
Sem legenda

A minha mãe num dos cadeirões para as visitas lia o  “John, Chauffeur Russo” do Max du Vezyt numa edição Romano Torres que na época era um grande sucesso e a tia Elsa no outro tricotava pareceu-me um casaquinho de lã azul celeste. Ambas pararam à nossa chegada e fez-se um vazio de som de cortar à faca. O meu pai que estava de cabeça baixa e parecia dormitar, levantou-a e perguntou com voz soturna “o meu silêncio incomoda?” e só então deu pela nossa presença.

Ficou estupefacto quando deu com o Frederico, abriu a boca mas não soltou qualquer som, como se a voz se lhe tivesse ficado parada no tempo e de repente disse baixinho “Frederico…” O meu irmão respondeu-lhe um pouco mais alto “Sou eu meu pai, sou eu sim senhor, vim ver como está…” Estava-se no pino do Inverno, havia um calorífero a óleo, não se via uma mosca, mas se uma houvera não se ouviria um só zumbido. O capitão Gilberto Saraiva Mendes abriu os braços e disse para o filho caçula “Perdoa-me Frederico…” – e, coisa inaudita, correram-lhe grossas lágrimas pela face.

Este avançou, chegou junto ao pai e disse-lhe suavemente “meu pai perdoar-lhe o quê?” e ajoelhando-se estendeu os braços e abraçou-o no que foi correspondido pelo progenitor e ficaram assim unidos um longo amplexo e só depois o mano tirou o lenço do bolso e começou a limpar o rosto do pai. “Eu sei perfeitamente o que aconteceu quando nasci porque depois de ter chateado muito a Miquelina obriguei-a a contar-me toda a estória…” Ninguém ocultava o espanto perante tal revelação mas eu sobretudo pensava para com os meus botões como era incrível que um rapaz apenas com doze anos e com tamanha deficiência falava com tanta clareza e determinação.

“Meu pai pode estar certo de que eu sou portador da síndroma de Down mas felizmente não sou parvo bem pelo contrário. Sei perfeitamente que o desiludi e que não gostou de mim pelo facto de eu ter nascido assim embora tal não tivesse sido por minha culpa. Mas o que lá vai lá vai e agora o que me interessa é recuperar os anos em que estivemos separados para poder ama-lo como um filho tem de amar um pai.” Gilberto, soluçava a seco agarrado ao filho Frederico e só conseguia dizer “meu filho, meu querido filho, como tu falas verdade, meu querido filho, não te mereço…”
Soldadinhos de chumbo

Aí o meu mano mais novo saiu-se com oura novidade: “O meu pai sabe que eu guardo as duas caixas de soldadinhos de chumbo?” O capitão não escondeu o espanto e o sobressalto: “Como assim? Eu tinha-as levado, ou melhor roubado para dar a umas pessoas, agora não interessa quem, mas ao sair do portão da nossa casa não sei porquê arrependi-me e deitei-as para o caixote do lixo!” O Frederico deu uma peque gargalhada: “Mas a Ângela porteira apanhou-as e veio entregá-las lá acima e a mãe guardou-as e assim que eu pude comecei a brincar com elas!”

Ficámos ali a desbobinar a tarde com o Frederico no centro das conversas até que chegaram os tios Miguel e Jaime que traziam os carros e nos iam buscar. Foi aí que se verificou uma questão muito embaraçosa quando o meu irmão perguntou ao pai se depois de ter alta ele voltaria para casa. O tio Miguel pigarreou, toda a gente se fechou em copas até que o capitão Gilberto desembrulhou o atilho revelando que achava melhor que primeiro fosse para o Lar Militar que havia em Runa e depois logo se veria, mas que por enquanto ainda ficaria mais uns tempos ali onde o podiam visitar sempre que o quisessem e pudessem fazer.

E voltámos a casa como Frederico um tanto macambúzio coisa que nele não era habitual. Durante o curto percurso não abriu a boca. Chovia a cântaros. Estava combinado que jantaríamos ali e foi também então que a tia Elsa anunciou um tanto ruborizada que estava novamente de esperanças e já ia nos três meses. Foi decidido unanimemente e por aclamação (como se diz na Assembleia Nacional…) meter três garrafas de Raposeira meio seco no frigorífico para comemorar depois do jantar e a Miquelina informada da ocorrência meteu a colher de pau à obra e fez um pudim de ovos gigante. Só perante a euforia o Frederico bateu as palmas e entrou na festa.

Regimento de Infantaria 1

Dou um outro salto de dois anos sem nada de muito especial neste período a não ser que tinha entrado para o COM, o Curso de Oficiais Milicianos, (ainda não terminara o Direito, estava no quarto ano) e no final dele ficara colocado no Regimento de Infantaria Um, o RI1, na Amadora, como aspirante a oficial miliciano desempenhando as funções de oficial da PJM a Polícia Judiciária Militar, ou seja elaborando os autos e os processos diversos pois já tinha os conhecimentos suficientes para o fazer. O meu pai estava encantado com a minha nova situação e a primeira vez que me vira fardado dissera-me que quase lhe dera um badagaio…

Mas quem ficou realmente muito feliz foi o Frederico que já ia nos seus quinze anos e já fazia a barba (que alias era escassa e esparsa e que eu dizia que fora plantada num dia de vendaval… com grandes gargalhadas dele) e deixara crescer (???) uma “hipótese” de bigode. Estava cada vez mais adulto e o lugar que tinha na empresa já era fixo, o ordenado merecia-o, o patrão estava satisfeitíssimo com ele, os colegas continuavam a apoia-lo e os avanços que registava dia-após-dia eram realmente notáveis. Por outro lado as relações com o pai Gilberto tinham-se tornado imprescindíveis eram confidentes um do outro, viviam num sétimo céu.

Porém depois da bonança vem a tempestade. Por uma tarde encarolada de Agosto, o comandante do Regimento, o coronel Marques Fialho, chamou-me ao seu gabinete, mandou-me fechar a porta e convidou-me a sentar-me. Assim fiz e ele começou. “Não sei se você sabe mas eu e o seu pai somos muito amigos desde a Escola do Exército, ele podia ser coronel como eu mas meteu-se numas maluquices e…” atalhei dizendo que sabia e ele continuou: “então também sabe que ele gostava que você seguisse a carreira militar, mas parece que não está para aí virado e…” voltei a interrompê-lo “Desculpar-me-á meu comandante mas não nasci para herói…” O coronel Marques Fialho retorquiu-me: “Nenhum homem nasce herói. As ocasiões é que fazem os heróis!”
Um maldito cancro no pâncreas

“Mas ouça, Armando, trato-o assim, como se fosse meu filho, a decisão é sua, não o quero influenciar. Todavia quando o chamei não era para falar do seu futuro como militar. Era para lhe comunicar que infelizmente o seu pai e meu grande amigo tem um cancro no pâncreas.” Tinha-me caído o Mundo em cima. Que mais me podia acontecer?...   

(Continua)

          

25 comentários:

  1. O maldito cancro que tantos vitima e para o qual parece não se encontrar cura.
    O cancro do pâncreas então é fulminante.
    O mesmo que ontem vitimou Aretha Franklin.
    Doença maldita!!
    Aquele abraço para ti, beijos para a Raquel, bfds

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro Coimbramigo

      Verdade grande como a vida essa que dizes mas infelizmente também como a morte. Desgraçadamente o dinheiro que se gasta com as armas, as guerras e as drogas deveria sim ser aplicado em causas como a descoberta da cura do cancro. Mas o homem é inimigo de si próprio!

      Aretha, a Grande Aretha que eu tive a sorte, o privilégio e a honra de conhecer e de com ela falar em Londres quando deu um concerto no Royal Albert Hall. Vida de jornalista...

      Triqjs e um abração para tu do teu amigo
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  2. Respostas
    1. Minha querida Nalamiga

      Tenho muito prazer em receber-te nesta casa que a partir de agora também é tua e dizer-te que estou de acordo contigo.

      Muitos qjs deste teu novo/velho :-) amigo
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  3. Bom dia:- Dura história de vida. Maldita doença que tanta gente mata. O cancro do Pâncreas e do Pulmão são na sua grande maioria com uma somente cura: A Morte.
    .
    * Poesia e amor em corações iluminados ( Poetizando e Encantando ) *
    .
    Votos de um feliz fim-de-semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro Gilamigo

      Boa noite. A vida é na verdade madrasta. Em Março um cancro na próstata levou o meu irmão Braz com 72 anos depois de ter outro no duodeno ter assassinado o meu pai quando eu tinha 18 anos u seja em 1959.

      Doença maldita que marca a gente que está Junto de quem a sofre mas não só, pois está por toda a parte e nada nem ninguém a consegue deter. As curas são raras mas felizmente ainda vão acontecendo.

      Um abração deste teu amigo e admirador
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  4. HenriquAmigo.
    No meu tempo de petiz o nefasto câncer era tão temido que não ousávamos pronunciar o nome.
    Lembranças para a Dona Raquel.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu casto Confradamigo

      Foi um tempo que era assim no Brasil, cá e em toda a parte. De tal forma que ainda agora muita imprensa escrita escreve faleceu vítima de doença prolongada.... O que é um eufemismo estúpido num tempo em que acontecem maravilhas de toda a ordem.

      Bjs e abração do casal Ferreira

      Eliminar
  5. O mais mortífero dos cancros.
    Abraço e bom domingo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida Elvirinhamiga

      Tens razão: entre todos é o mais perigoso e assassino.

      Muitos qjs deste teu amigo e admirador
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  6. Caro Henrique
    Depois do dramático encontro, tudo serenou, talvez devido ao rapaz Frederico se ter identificado com o capitão seu pai. Houve várias revelações, como a posse dos soldadinhos de chumbo pelo Frederico, já a dar a ideia do apelo de sangue deste. Mereceu a minha atenção, essa do herói, porque na verdade para o ser é preciso viver a ocasião, porque o herói pode até ser bem fraco, mas momentaneamente soube optar por salvar a pele, como sabe quem conheceu o meio de intervenção. Não resisto a contar aqui um caso registado no meu livro AMOR NA GUERRA. Um colega registado herói, era bem tímido, mas num ataque matou para não morres; a certa altura foi convocado a ir a Luanda receber o Cruz de Guerra. Como era soldado raso, foi ao desfile com outros heróis, mas de camioneta militar de carga, de acampamento em acampamento demorando dias, na ida e outros tantos na volta, Como era tímido, regressou desidratado e teve de baixar à enfermaria. Ora um herói, não teria de se deslocar para receber o troféu de avião, ainda que soldado raso? Coisas da Guerra à portuguesa curta!!!
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro Danielamigo

      Quando comecei a escrever o episódio já tinha em mente um reencontro feliz e portanto assim aconteceu; mas a disposição de um homem/autor é como o tempo muda sob a influência de um anticiclone situado a sudoeste dos Açores.. Daí o cancro.

      Quanto aos heróis e à guerra colonial não adianto mas pois já falei demasiado sobre o tema. Mas não posso deixar de comentar o que dizes sobre a condecoração do teu camarada e pergunto: de que vale uma medalha? Vale por acaso uma vida?

      Um abração deste teu amigo
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  7. Ainda bem que o pai pediu perdão ao filho.

    E vim encontrar um velho conhecido:John.

    Bom domingo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida Sãozitamiga

      Os reencontros quando felizes são das melhores coisas que a vida tem e este caso tin ha de ser assim.

      E uma pergunta - se não quiseres não tens de responder... - também leste o Chauffeur Russo? Eu que lia tudo o que apanhava devorei o da minha tia Lurdes, irmã da minha mãe... :-)))

      Muitos qjs deste teu amigo e também viajante
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  8. Obrigada pelo retorno aos comentários lá no meu blog.
    Infelizmente,nem sempre correspondo aos que esperam de mim, sobre comentar os blog's amigos.Preciso muito de estímulos e de postagens positivas e certas vezes suas histórias de doenças eu leio com atenção,mas nao tenho palavras para comentá-las.
    Peço desculpas, e prometo ser mais presente. Assim espero.
    um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida Lisamiga

      Não tens de agradecer pois para mim foi um prazer.

      Tenho escrito e rescrito que para mim com autor os comentários são o espelho em que gosto de me me reflexar (adoro criar palavras novas). E não é uma questão de narcisismo é apenas saber se quem me lê gosta ou não gosta do que leu. Isso ajuda-me a melhorar o que faço. Por isso para mim os comentários são essenciais.

      Muitos qjs e agora sim obrigado por teres vindo. O teu amigo
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  9. "Indira e Rajiv Gandhi, Niculae Ceausescu, Olof Palme, Mikail Gorbachev, Bruno Kreisky, François Mitterrand, Felipe González, Joaquim Chissano, Saddam Hussein, Perez de Cuellar, Konstantin Karamanlis, Andréas Panpandeu e Lech Walesa". Teve o privilégio de entrevistar gente que construiu parte da história contemporânea, Sr.???, deve ter sido uma vida riquíssima como jornalista e agora apresenta-nos textos repletos de sentimentos e dramas e alegrias. confesso a estranheza, logo de cara, por estar acostumado a a textos mais curtos como os do Portela e do Gil, mas tudo é questão de readaptar-se a leitura de uma boa prosa.
    Grato pela visita e pelo sincero incentivo "juliano", infelizmente, sem a Cleópatra
    Abraços.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro Messiasamigo

      Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Tive realmente uma vida muito cheia e não a trocava nem troco por mais ma$$a$ que pudesse ter, porque foi aquela que quiz. No entanto toda a moeda tem duas faces: quem a pagou foi a minha família. Porque a vida de jornalista é assoberbante são 24 horas por dia!

      Felizmente tive e tenho uma grande Mulher, a Raquel, que me substituiu e criou os nossos três filhos tendo feito deles três Homens de Bem, os melhores filhos do Mundo. Hoje acompanho os quatro netos e a neta (por ordem de idades o João, 25, o Rodrigo, 23, o Xavier, 23, o Vicente, 21 e a Madalena 18 que também são os melhores netos e neta do Mundo.

      Quanto à prosa dizem que não dou muitos erros, pudera com a ajuda do corrector automático seria uma desgraça não reparar nas ondinhas vermelhas sublinhando as calinadas. Cá me vou desenrascando e tentando fazer o melhor que posso o que sempre fui fazendo.

      Se quiseres fazer o favor de continuar a ler-me tens de aturar-me assim pois posso garantir-te que não é a caminho dos 77 aninhos que vou mudar e a forma que me moldou já se partiu há uma porrada de tempo... :-)))

      Um abração do teu novo/velho amigo
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  10. Uma dura história!

    r: Fico contente, volte sempre que quiser :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida Andeiamiga

      Ora viva, sê bem vinda!!! A chegada de uma nova Amiga é para mim sempre motivo de alegria e de festa. Como dizes eu também o faço: volta mais vezes - nem pagas IVA... :-)))))

      Pois as estórias nem sempre são cor-de-rosa...

      Muitos qjs deste teu novo/velho amigo
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  11. Desta vez a tua narrativa é triste, apesar de o Frederico continuar a ser o "meu herói". Gosto sempre de te ler.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida Gracinhamiga II

      Ando há uns tempos para to dizer, mas como sou muito tímido e envergonhado hoje é que vai ser! Estou perdidamente apaixonado por ti! Posso escrevê-lo porque a minha Raquel não lê este blogue e assim safo-me...

      Estou a brincar, obviamente, mas a paixão é verdadeiramente pela tua obra, pela tua Poesia. Hoje em dia tu és a minha Poeta!

      Poizé a narrativa de hoje tem a felicidade do reencontro e do perdão do "teu herói" Frederico que começa a ultrapassar o autor... mas também o maldito cancro. Esta sexta-feira não há saga, sai um textículo mais risonho para desanuviar. Veremos na semana seguinte o que acontecerá.

      Muitos qjs deste teu amigo e grande admirador
      Henrique, o Leãozão

      Eliminar
  12. Todos podíamos contar histórias parecidas.
    Mas nem todos as poderíamos contar tão bem.
    A narrativa é apelativa e lê-se de um fôlego. Parabéns.
    Caro Henrique, um bom fim de semana.
    Abraço.

    ResponderEliminar
  13. Que grande saga, Henriquamigo!!! (a mim também me caiu o mundo em cima quando no passado mês de dezembro o meu marido teve de ser operado a um cancro no pâncreas... Mauzito, muito mauzito. Mas, para já, ficou e está bem).

    Beijinhos para o casalamigo: Raquel e Leãozão!

    ResponderEliminar
  14. r: Muito, muito obrigada. É mesmo gratificante ler essas palavras :)

    ResponderEliminar