Antunes Ferreira
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m quarto para as duas da noite (ou da madrugada?) Eugénio e
Palmira que tinham ido ao fado com o casal Oliveira vinham para casa. Chuva
miudinha caíra sobre a cidade e os passeios escorregadios convidavam às quedas.
23 de Novembro do ano da graça de 1960 os dois tinham ido ao São Jorge, na
Avenida da Liberdade (raio de nome quando a PIDE andava à solta e s polícias
multavam um cidadão que usava isqueiro – sem licença) ver o Ben Hur com o
Charlton Heston a protagonizar o herói judeu e quadriganizando na pista/cenário.
Quadrianizando... |
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ai tinham partido para o Bairro Alto e entraram na Adega
Machado onde cantava o Alfredo Marceneiro interpretando o grande sucesso de
então A Casa da Mariquinhas. Ali
tinham passado um bom bocado, escorripichando um tinto sem marca acompanhando
uns pasteis de bacalhau de trás da orelha. Tinham-se despedido dos Oliveiras e
como não conseguiram apanhar um táxi tomaram o eléctrico até ao Rato e
conseguiram ainda apanhar outro que os levou até ao Saldanha pois moravam na Cazal
Ribeiro.
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ora ali que aconteceu a “coisa”. Inopinadamente
esborrachou-se no passeio um homem que tinha caído dum quarto ou quinto andar e
quase os atropelara, uma verdadeira tangente. Uma secante e teriam ido num
foguete para a próxima paragem – a eternidade. No quinto andar do prédio em
frente do qual passavam uma senhora debruçada na varanda gritava “Ai Fernando
que te mataste, ai marido que te mataste!!!!” Ambos ficaram aterrorizados, mas Eugénio
de imediato bateu palmas para chamar o guarda-nocturno. Entretanto nos diversos
prédios da rua acendiam-se luzes, gente chegava às janelas, outros sujeitos e
sujeitas em roupões, pijamas e camisas de noite desciam as escadas e rodearam
Fernando num mar de sangue, Eugénio e Palmira.
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aramba, o gajo está feito em fanicos, olha se os apanhavam
iam direitinhos para o São Pedro…” e outros
bolsavam diversos comentários mais ou menos parvos. Uma senhora alentada berrava também para um
puto que se chegara à frente dos mirones: “Quinzinho vamos para casa isto não
são coisas para a tua idade!” O miúdo fazia orelhas moucas e estava-se
marimbando para a progenitora, “olha que eu vou chamar o teu pai, ele prega-te
duas galhetas, mafarrico não me obedeces!” E lá em cima na varanda uma voz
esganiçada repetia “Ai Fernando deste cabo de ti e de mim! Maldita a hora em te conheci!!!” O burburinho
aumentava quando chegou o guarda-nocturno, de espada à cinta, então o que é que
aconteceu para haver tanta barulheira?
Morreu alguém?
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tinha morrido mesmo.
Quando se deparou com o cadáver o digno representante nocturno da autoridade,
branco como a cal da parede, entrou na gritaria desorquestrada, “chamem a
polícia! Chamem os bombeiros!” e de entre a malta ouviu-se “…e a Guarda
Republicana, a tropa, a marinha, o cangalheiro, o prior a freguesia e o
sacristão… Para quê? O falecido está mesmo morto…” O sereno perguntou “Quem foi
o brincalhão? depois fazemos contas?!” Já era uma multidão e o da graça
repetiu-se, “Vistas bem as merdas, o gajo já cá não canta, bateu as botas,
parece um ovo estrelado sem azeite no passeio…” Foi precisamente quando chegou
um polícia, “mas que vem a ser isto?” Mal pôs olhos no espalmado, “vou
telefonar para a esquadra isto é chatice para o chefe tratar… Quem tem um telefone?”
O Martins da leitaria tinha.
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hefe, bombeiros, judiciária já estavam no local e um
polícia, “vão para casa, são proibidos ajuntamentos de mais de um!” E o
malandro das piadas já a retirar ainda atirou “e mais de dois também?” ao que o
cívico “Sacana, filho da mãe, vai brincar com o cara… Também tinha vindo num
táxi o jornalista de serviço no quotidiano da avenida da Liberdade –
o fotógrafo já dormia a sono solto – “É um suicídio?” e o Inspector da judite,
tome cuidado, lembre-se que não há em Portugal suicídios… há acidente mortais.
Não se meta em sarilhos, pode vir a PIDE e… O repórter do Diário de Notícias -
depois de tirar alguns apontamentos e ouvir alguns cidadãos “eu cá não vi nada,
eu nem moro aqui, acabei de chegar e…” retirou-se resmoneando “Pois; também não
existem cancros, são doenças prolongadas e os gajos do Benfica não são
vermelhos, são encarnados”. O Salazar mandava, o Estado Novo ajudava à missa.
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o dia seguinte saiu a notícia “Ontem na avenida Cazal
Ribeiro pelas duas da manhã verificou-se um acidente mortal. Um senhor chamado Fernando Silva Gomes, de 39 anos,
casado, debruçou-se demasiado da varanda onde apanha ar e caiu no passeio
falecendo imediatamente. O corpo vai ser autopsiado. E na página do Necrotério,
acrescentava-se o habitual: Deixou viúva
a Senhora Dona Conceição Gomes e dois órfãos, menores, Jacinto e Ferrando
José. Depois da autópsia, seguir-se á o velório na Igreja de Nossa Senhora de
Fátima, donde o funeral sairá para o cemitério da Ajuda. O Diário de Notícias apresenta
à família enlutada os mais os mais sentidos pêsames.