Natal
e
torrão
de
Alicante
Antunes Ferreira
Nesta
época festiva peço-vos autorização para vos contar um segredo pessoal. Conto
com a vossa aceitação. No entanto se me derem uma nega – conto na mesma!
Natal
para mim está sempre, mas sempre, associado a torrão de Alicante. Presumo que
quando isto lerem estejam de imediato a chamar-me vendido a nuestros vecinos e
consequentemente miserável traidor. Livrem-se e livrem-me disso. Não mereço tal
epíteto, bem pelo contrário. E se querem que vos diga já fui europeísta convicto
– mas hoje, de todo, não apoio a
(des)União Europeia. Ponto final, parágrafo.
A Nau Catrineta por Fausto |
Explico.
Tal como a Nau Catrineta esta é uma estória de pasmar e para a contar tão
correctamente quanto me é possível recorro a alguns resquícios de memória
infantil quiçá alojada no
hipocampo mas principalmente a episódios
que me foram contados por diversas pessoas relacionadas com o evento que vos
conto. Fontes seguras? Quiçá? Mas desde já advirto que não poria as mãos no
fogo, porque há sempre que estar prevenido contra qualquer greve bombeiral ou
seja dos soldados da paz, expressão calina muito em uso.
Não
conheci os meus avós paternos já falecidos quando nasci, ao contrário dos
maternos; eram eles originários da plebe, ou seja de modestas origens quer a
minha avó Maria da Ascensão, quer o meu avô Braz Faria Antunes. Ela camponesa,
ele pastor, depois soldado e a seguir guarda-fiscal. Mas o que é facto é que
foi subindo na carreira e chegou a tenente.
Era
o Senhor Tenente da Guarda Fiscal sediada em Portalegre, quando eu o conheci,
tinha uns bigodes brancos encerados e retorcidos, cabeleira branca, olhos
azuis, ia ao pálio nas procissões, era a quarta figura em importância na
hierarquia da cidade e da Província, um homem honrado, honesto, vertical,
figura distinta, toda a cidade o conhecia e respeitava.
A minha avó Maria desempenhava
as importantíssimas funções de dona de casa, criara quatro filhos e duas filhas
e fazia uma aletria doce de cinco estrelas além de outras iguarias, de acordo
com as tais fontes fidedignas era tão boa cozinheira como doceira, enfim um
mimo. Natural da Aldeia da Ponte, beiroa, raiana, enquanto o meu avô nascera em
Montalvão no Alto Alentejo.
Pirolitos com os seus berlindes |
No
Natal enquanto os dois eram vivos, a família Antunes e os respectivos
adjacentes iam até Portalegre onde na Rua de Infantaria 22, número 4 viviam os
patriarcas, em frente da casa havia uma fábrica de pirolitos e sempre que uma
garrafa rebentava ao receber o gás a malta ia a correr apanhar o berlinde. Entrava-se
pelo primeiro andar ao nível da rua onde ficavam os quartos e descia-se por uma
escada em madeira para a cozinha enorme a sala de jantar. Atrás havia um
quintalão com três figueiras, um diospireiro, uma pereira, duas macieiras, uma romãzeira
e horta bem como um galinheiro e a segunda retrete lá no fundo. A primeira
ficava no primeiro andar.
No
dia 24 de 1947, tinha eu seis anos, pela manhã, o avô Braz levou-me pela mão
até ao Jardim da Corredoura onde alguns feirantes montavam uns balcões para
vender produtos natalícios. Era uma espécie de pequena feira. E lá estava um
homem de chapéu de palha com uma botija de gás enchendo balões que vendia aos gaiatos.
O meu avô comprou-me um e recomendou: “Riquinho
mete o teu dedinho nesta argolinha que fiz no cordel do balão senão ele foge!”
Parece
que já nessa altura não ligava peva ao que diziam era um puto danado, não meti
o “dedinho na argolinha do cordel” e foi um ar que lhe deu – ao balão que foi
pelos ares qual Cape Canaveral de fancaria por antecipação. O avô Braz contou
depois que eu berrava que nem vitelo desmamado e o malandro do homem de chapéu
de palha e etc. já tinha seguido viagem pelo que balões nicles.
Memorial de José Duro |
Em
desespero de causa e para ver se me calava o Senhor Tenente da Guarda Fiscal levou-me
a um banco junto ao memorial do poeta ultrarromântico José Duro,
portalegrense de cepa, onde duas espanholas de Badajoz vendiam túrron de Alicante que traziam em
enormes rodas como se fossem mós de moinho donde cortavam fatias. E foi a roer
o bendito torrão que voltei a casa todo pimpão sem uma única lágrima ao canto
dos olhos. E digam lá se tenho ou não razão quando afirmo alto e bom som que
sempre associo Natal com torrão de Alicante. Et voilà.