“Empernanço
de pestana”
Antunes Ferreira
Dê-se agora mais um salto no tempo e aterre-se em 1969, oito anos
são oito anos, os relógios não param, os calendários também seguem folha
arrancada após folha aos dias seguem-se as noites, dos Invernos aos Invernos as
Primaveras, os Verões e os Outonos incansáveis não há interruptor que os
desligue. Durante esse longo período aconteceram muitas coisas. Acabo de me
levantar do sofá onde sentado assisti à chegada do homem à Lua. Impressionante.
Nunca imaginei que tal presenciasse mas a caixa mágica que mudou o Mundo
proporcionou-me esse deslumbramento.
O Frederico tal como a minha mãe, os tios Elsa, Jaime, Miguel o
Jaiminho já com oito anos, a Miquelina e até a Odete Rita todos tínhamos estado
com os olhos pregados no televisor. Nem comemos, apenas debicámos umas sandes e
uns bolos que tinham sido trazidos da pastelaria Cristal e bebemos umas
cervejas e uns refrigerantes. Vale a pena relatar a reacção do Frederico que ia
nos dez anos e já lia e conseguia escrever o nome dele e mais umas coisas por
vezes não muito correctamente. A falar ia muito bem, com alguma incerteza na
pronúncia, mas sem importância.
Na Lua há "mag"? |
Ele quis saber logo que o foguetão se preparava para partir o que
era aquilo e se era nele que iam aqueles senhores com fatos de mergulhadores. E na Lua há mag? Então pogque vão eles assim
vestidos? E se ela estiveg como uma
talhada de melancia eles conseguem acegtag? As perguntas surgiam em
catadupas com os rrr transformados em ggg habilidade em que era especialista…
Toda a gente lhe foi explicando o que acontecia e, mais importante, o que ia
acontecer. E que finalmente aconteceu – premiado com uma entusiástica salva de
palmas!
Ora bem durante estes oitos anos tenho de registar o que de mais
importante se passou na nossa família. O meu pai foi e veio de Angola onde teve
uma comissão muito atribulada, pois passou a maior parte dela no mato a
comandar uma companhia de caçadores ou seja de cavalaria… apeada. Com sede em
Zala num vale rodeado de morros onde estavam instalados os turras que de manhã
quando se içava a bandeira mimoseavam a tropa com umas morteiradas para alegrar
a malta. Benditos estrategas…
Estivera na metrópole durante pouco mais de ano e meio e de novo
fora mobilizado – depois de ter ido a Lamego formar uma companhia de caçadores
especiais – para a Guiné para onde partiu em finais de 1964. Aí é que se
tramou. Mas, já lá vou, pois tenho de voltar atrás, porque o Olegário, como
alferes miliciano, fora parar a Goa e o David, com o posto de furriel também
miliciano, a Damão e nas cartas e postais que nos mandavam contavam do paraíso
tropical que tinham ido encontrar mas igualmente do clima de ansiedade pois
andava no ar que a União Indiana podia invadir o Estado Português da Índia para
o “libertar do colonialismo de Lisboa” de acordo como o que dizia o primeiro-ministro Nehru.
O que viria a acontecer e que resultou para os dois terem estado
presos em campos de prisioneiros durante largos meses, depois do
governador-geral general Vassalo e Silva se ter rendido aos invasores, face à
disparidade das forças em presença três mil e poucos portugueses contra 42 mil
indianos, desrespeitando as ordens do Salazar que tinha ordenado que todos
morressem pela Pátria. Felizmente isso não acontecera.
No entanto o regresso do
contingente português foi mais uma demonstração do espírito maldoso e vingativo
do Salazar. Os militares desembarcaram de noite vigiados pela Polícia Militar
de armas aperradas e foram logo para quartéis. Só passados uns dias puderam ir
para as respectivas casas. Além disso o general foi demitido.
Goa - no campo de prisioneiros |
Tinha tão bons professores de política em casa que rapidamente me
integrara na oposição contra o Estado Novo que, de resto andava pelas ruas da
amargura, pois nem um partido único conseguia ser. Por isso seguia com muita
atenção o que se passava no país que ia de mal a pior. Ainda que fossem
proibidas ocorriam greves e a PIDE via-se em palpos de aranha porque já não
conseguia controlar tudo como antes fazia. O luto estudantil em Maio de 62 em
que não tinha participado porque era então muito puto fora um gravíssimo
problema para o Salazar e a sua camarilha. Mas pior tinham sido as eleições presidenciais de 1958. O tio Jaime contara-me o que se passara com o general Humberto Delgado que ficara conhecido como o general sem medo. Como eu gostava de ter vivido já adulto nessa altura.
Madina do Boé: baixas constantes |
Corria então o ano de 1968 e com a fúria do ciúme a toldar-lhe o
raciocínio o meu pai voltou à metrópole e meteu uma licença tendo-se deslocado
ao Brasil sem autorização militar. Foi um buraco, mais um, em que se meteu: por
mais voltas e reviravoltas que tivesse dado pelas terras do samba e mulatas não
obteve qualquer resultado e pelo contrário até ultrapassou o período da licença
o que o colocou em termos castrenses em situação de ausente sem licença a que
se seguiria a deserção. Porém aí parece ter-lhe voltado à tona um pouco de bom
senso. Apresentou-se no Ministério do Exército antes que isso acontecesse. Mas
foi-lhe levantado o correspondente auto.
O David ia dando-nos conta do que se estava passando e,
curiosamente, o Frederico parecia compreender a gravidade da situação o que era
ainda mais estranho dado que nunca se referia ao pai. Eu estava muitíssimo
apreensivo pois algo me ultrapassava o que deixava mal comigo próprio pois
acreditava que sempre tinha tudo sob controlo. E aqui a angústia que se
apoderara de mim invadira também a Mafalda. A Mafalda? Pois, a Mafalda, a minha
namorada que encontrara na Faculdade de Letras como caloira quando eu que já
estava no segundo ano de Direito cruzava a “terra de ninguém” em frente à
Reitoria para ir ver as miúdas e fazer o que então dizíamos o “empernanço de
pestana”. No meu caso, dera mais do que a piscadela de olho…
(Continua)