2018-07-19


 É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE - 8
Empernanço de pestana

Antunes Ferreira
Dê-se agora mais um salto no tempo e aterre-se em 1969, oito anos são oito anos, os relógios não param, os calendários também seguem folha arrancada após folha aos dias seguem-se as noites, dos Invernos aos Invernos as Primaveras, os Verões e os Outonos incansáveis não há interruptor que os desligue. Durante esse longo período aconteceram muitas coisas. Acabo de me levantar do sofá onde sentado assisti à chegada do homem à Lua. Impressionante. Nunca imaginei que tal presenciasse mas a caixa mágica que mudou o Mundo proporcionou-me esse deslumbramento.

O Frederico tal como a minha mãe, os tios Elsa, Jaime, Miguel o Jaiminho já com oito anos, a Miquelina e até a Odete Rita todos tínhamos estado com os olhos pregados no televisor. Nem comemos, apenas debicámos umas sandes e uns bolos que tinham sido trazidos da pastelaria Cristal e bebemos umas cervejas e uns refrigerantes. Vale a pena relatar a reacção do Frederico que ia nos dez anos e já lia e conseguia escrever o nome dele e mais umas coisas por vezes não muito correctamente. A falar ia muito bem, com alguma incerteza na pronúncia, mas sem importância.

Na Lua há "mag"?


Ele quis saber logo que o foguetão se preparava para partir o que era aquilo e se era nele que iam aqueles senhores com fatos de mergulhadores. E na Lua há mag? Então pogque vão eles assim vestidos? E se ela estiveg como uma talhada de melancia eles conseguem acegtag? As perguntas surgiam em catadupas com os rrr transformados em ggg habilidade em que era especialista… Toda a gente lhe foi explicando o que acontecia e, mais importante, o que ia acontecer. E que finalmente aconteceu – premiado com uma entusiástica salva de palmas!

Ora bem durante estes oitos anos tenho de registar o que de mais importante se passou na nossa família. O meu pai foi e veio de Angola onde teve uma comissão muito atribulada, pois passou a maior parte dela no mato a comandar uma companhia de caçadores ou seja de cavalaria… apeada. Com sede em Zala num vale rodeado de morros onde estavam instalados os turras que de manhã quando se içava a bandeira mimoseavam a tropa com umas morteiradas para alegrar a malta. Benditos estrategas…

Estivera na metrópole durante pouco mais de ano e meio e de novo fora mobilizado – depois de ter ido a Lamego formar uma companhia de caçadores especiais – para a Guiné para onde partiu em finais de 1964. Aí é que se tramou. Mas, já lá vou, pois tenho de voltar atrás, porque o Olegário, como alferes miliciano, fora parar a Goa e o David, com o posto de furriel também miliciano, a Damão e nas cartas e postais que nos mandavam contavam do paraíso tropical que tinham ido encontrar mas igualmente do clima de ansiedade pois andava no ar que a União Indiana podia invadir o Estado Português da Índia para o “libertar do colonialismo de Lisboa” de acordo como o que dizia o primeiro-ministro Nehru.

O que viria a acontecer e que resultou para os dois terem estado presos em campos de prisioneiros durante largos meses, depois do governador-geral general Vassalo e Silva se ter rendido aos invasores, face à disparidade das forças em presença três mil e poucos portugueses contra 42 mil indianos, desrespeitando as ordens do Salazar que tinha ordenado que todos morressem pela Pátria. Felizmente isso não acontecera.
Goa - no campo de prisioneiros
No entanto o regresso do contingente português foi mais uma demonstração do espírito maldoso e vingativo do Salazar. Os militares desembarcaram de noite vigiados pela Polícia Militar de armas aperradas e foram logo para quartéis. Só passados uns dias puderam ir para as respectivas casas. Além disso o general foi demitido.

Tinha tão bons professores de política em casa que rapidamente me integrara na oposição contra o Estado Novo que, de resto andava pelas ruas da amargura, pois nem um partido único conseguia ser. Por isso seguia com muita atenção o que se passava no país que ia de mal a pior. Ainda que fossem proibidas ocorriam greves e a PIDE via-se em palpos de aranha porque já não conseguia controlar tudo como antes fazia. O luto estudantil em Maio de 62 em que não tinha participado porque era então muito puto fora um gravíssimo problema para o Salazar e a sua camarilha. Mas pior tinham sido as eleições presidenciais de 1958. O tio Jaime contara-me o que se passara com o general Humberto Delgado que ficara conhecido como o general sem medo. Como eu gostava de ter vivido já adulto nessa altura.


Madina do Boé: baixas constantes 
Mas voltemos ao meu pai. A companhia que comandava fora colocada em Madina do Boé um dos locais mais perigosos da Guiné onde quase todos os dias era atacada me as baixas eram constantes. Foi lá que ele recebeu uma notícia que o deixou possesso. A Marina Neves tinha-o abandonado pois fora para o Brasil com o dono da empresa o engenheiro civil Salviano Francisco Xavier, um goês que viera estudar para Lisboa no Instituto Superior Técnico e por cá ficara e era viúvo. Foi o David que depois de ter regressado de Goa voltara a trabalhar na empresa que contara à minha mãe o ocorrido. Ela comentou sem grande espalhafato quem com ferros mata, com ferros morre…

Corria então o ano de 1968 e com a fúria do ciúme a toldar-lhe o raciocínio o meu pai voltou à metrópole e meteu uma licença tendo-se deslocado ao Brasil sem autorização militar. Foi um buraco, mais um, em que se meteu: por mais voltas e reviravoltas que tivesse dado pelas terras do samba e mulatas não obteve qualquer resultado e pelo contrário até ultrapassou o período da licença o que o colocou em termos castrenses em situação de ausente sem licença a que se seguiria a deserção. Porém aí parece ter-lhe voltado à tona um pouco de bom senso. Apresentou-se no Ministério do Exército antes que isso acontecesse. Mas foi-lhe levantado o correspondente auto.

O David ia dando-nos conta do que se estava passando e, curiosamente, o Frederico parecia compreender a gravidade da situação o que era ainda mais estranho dado que nunca se referia ao pai. Eu estava muitíssimo apreensivo pois algo me ultrapassava o que deixava mal comigo próprio pois acreditava que sempre tinha tudo sob controlo. E aqui a angústia que se apoderara de mim invadira também a Mafalda. A Mafalda? Pois, a Mafalda, a minha namorada que encontrara na Faculdade de Letras como caloira quando eu que já estava no segundo ano de Direito cruzava a “terra de ninguém” em frente à Reitoria para ir ver as miúdas e fazer o que então dizíamos o “empernanço de pestana”. No meu caso, dera mais do que a piscadela de olho…
(Continua)