2023-06-20

 



Crime no Atlântico

*Uíge um navio malfadado

Antunes Ferreira

Jacinto da Rocha Fernandes, alferes miliciano, oficial da Polícia Judiciária Militar, está a embarcar no paquete Uíge para nele seguir para Angola para onde fora mobilizado depois de um confronto pessoal com o ministro da guerra que o acusara de ser comunista – oque ele não era, sendo no entanto, opositor do regime salazarista.

 

As cenas habituais das despedidas com as famílias dos militares a dar os últimos abraços e beijos aos que iam entrando no navio, com muitas lágrimas e ais. Só Jacinto, órfão – os seus pais tinham morrido num desastre de automóvel quando ele tinha apenas quatro anos – que fora criado pela avó materna viúva e carinhosa uma segunda mãe para ele, também já morrera, não tinha ninguém a malta despedir-se dele, pois a última namorada acabara há ma ano e meio.

 

O embarque decorreu normalmente e mal chegados todos a bordo, mesmo antes de serem atribuídos os lugares onde ficariam durante a viagem, a malta, debruçada sobre a amurada que dava para o cais começou os mesmos adeuses para os que estavam lá em baixo e estes responderam como haviam feito à partida. (*)

Foi então que começou a viagem Tejo afora ao lado direito a Torre de Belém e os Jerónimos.  Uma breve escala de dois dias para embarcar uma companhia local e mantimentos a fim de reforçar os que já existiam a bordo. Faltavam assim seis dias para aportar a Luanda, O navio entrara num rame-rame: toque de alvorada às seis horas da manhã, pequeno-almoço às seis e meia.

 

Antes do mais tem de dizer-se que no Uíge seguiam dois batalhões o que somado à companhia da Madeira dava a enorme quantidade de 1388 homens. O seu quotidiano que começava às sete e um quarto era distribuído desta maneira: ginástica militar – uma hora; combate corpo-a-corpo outra hora, lavagem à mangueirada (pois não havia no navio duches suficientes naturalmente para tamanho pessoal) é claro que se revezavam as unidades dado o tamanho do pessoal; depois seguia-se o almoço antecedido pela tradicional prova da comida por um oficial para ver “se tudo estava nos conformes” frase tradicional pelos soldados nos quartéis.

Tudo isto decorria nas camaratas nos dois porões que assim ganharam um cheiro nauseabundo misto de suor urina e fezes! Só quem vivia aquilo podia – e mal-entender o mal-estar das praças quase pior do que entra no mato para fazer a guerra! Ali começava a qualificação de que o soldado português era dos mais valentes não entre o capim das picadas, mas também no suportar as condições péssimas dos navios civis transformados em transportes de militares.

 

À tarde repetia-se a manhã e quando chegava a noite a única diferença era o toque de recolher às oito horas. E assim terminava um dia malfadado. Mas no Uíge havia naturalmente sargentos e oficiais do quadro permanente e milicianos. Como se ocupavam os primeiros, nos tempos de ócio? Jogavam a bisca, fumavam, também faziam o dominó e bebiam o seu balão de aguardente Constantino, faziam a sesta nos seus camarotes de quatro beliches.

 

E desta maneira já decorria em tempo decorrente à chegada a Luanda. Entretanto quanto aos oficiais que faziam eles? Bebiam os seus uísques sentados às mesas jogando bridge. A principal mesa por ser jogada pelos melhores jogadores era constituída pelo major José Mendes Gonçalves, capitão Manuel da Silva, capitão Xavier Costa, capitão Domingos Álvaro Carvalho.

Jacinto que não pescava népia do bridge estava de mirone seguindo com patavina as jogadas das cartas e aa vozes dadas. Ao terceiro dia já de tanto olhar para o cartear e ouvindo as vozes, durante o jogo e final do mesmo (por exemplo: duas trunfo é copas, ful de espadas, etc.) Porém um dia o capitão Ferreira da Silva ficou no camarote com uma merda nas tripas (vocabulário típico entre militares) e chamados os médicos do navio e bem os das companhias receitaram o possível na modesta farmácia do Uíge.

 

Foi quando o major Mendes Gonçalves convidou Jacinto a substituir o capitão enfermo. O alferes miliciano bem recusou, mas depois de muita insistência dos três oficiais, lá sentou e começou a jogar, de principio, de forma desastrosa. Mas, pouco a pouco foi cometendo menos faltas e na noite do dia que antecedia o dia da chegada a Luanda já sua parceria com o capitão Xavier Costa ganhava alguma, poucas, partidas. Enquanto isso a saúde do capitão Ferreira da Silva entrava no ponto crítico!

 


Uma porra! Afirmação do tenente-coronel da tropa. Pior ainda! Como se estava a um dia de atracar ao porto de Luanda decidiram que o capitão doente estando cada vez mais grave a maleita, seria, logo que o Uíge atracasse, fosse levado por ambulância ao Hospital Militar da capital.  E assim se fez. Paralelamente desceram todos os militares. E Jacinto como vinho sozinho aproveitou para chegar junto a um garoto que sentado no chão tinha espalhado no mesmo chão revistas diversas e um jornal “A Província de Angola”. Jacinto perguntou ao garoto: “O jornal é d´hoje. E o garoto: “Não sô patrão tropa, é dôje e quinhento”…

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(*) A guerra " ultramarina" (invenção do Estado Novo  que nos dias de hoje é considerada naturalmente como colonial foi um horrendo crime pela ignominiosa perda de vítimas humanas e lesões as mais diversas. Além disso a frase do ditador de Santa Comba Dão "Para Angola Rapidamente e em Força" aplica-se directamente  a este texto.)