Crime no Atlântico
*Uíge um navio malfadado
Antunes
Ferreira
Jacinto da Rocha Fernandes, alferes
miliciano, oficial da Polícia Judiciária Militar, está a embarcar no paquete
Uíge para nele seguir para Angola para onde fora mobilizado depois de um
confronto pessoal com o ministro da guerra que o acusara de ser comunista –
oque ele não era, sendo no entanto, opositor do regime salazarista.
As cenas habituais das despedidas com
as famílias dos militares a dar os últimos abraços e beijos aos que iam
entrando no navio, com muitas lágrimas e ais. Só Jacinto, órfão – os seus pais
tinham morrido num desastre de automóvel quando ele tinha apenas quatro anos –
que fora criado pela avó materna viúva e carinhosa uma segunda mãe para ele,
também já morrera, não tinha ninguém a malta despedir-se dele, pois a última
namorada acabara há ma ano e meio.
Foi então que começou a viagem Tejo
afora ao lado direito a Torre de Belém e os Jerónimos. Uma breve escala de dois dias para embarcar
uma companhia local e mantimentos a fim de reforçar os que já existiam a bordo.
Faltavam assim seis dias para aportar a Luanda, O navio entrara num rame-rame:
toque de alvorada às seis horas da manhã, pequeno-almoço às seis e meia.
Antes do mais tem de dizer-se que no
Uíge seguiam dois batalhões o que somado à companhia da Madeira dava a enorme
quantidade de 1388 homens. O seu quotidiano que começava às sete e um quarto
era distribuído desta maneira: ginástica militar – uma hora; combate corpo-a-corpo
outra hora, lavagem à mangueirada (pois não havia no navio duches suficientes
naturalmente para tamanho pessoal) é claro que se revezavam as unidades dado o
tamanho do pessoal; depois seguia-se o almoço antecedido pela tradicional prova
da comida por um oficial para ver “se tudo estava nos conformes” frase
tradicional pelos soldados nos quartéis.
Tudo isto decorria nas camaratas nos
dois porões que assim ganharam um cheiro nauseabundo misto de suor urina e
fezes! Só quem vivia aquilo podia – e mal-entender o mal-estar das praças quase
pior do que entra no mato para fazer a guerra! Ali começava a qualificação de
que o soldado português era dos mais valentes não entre o capim das picadas,
mas também no suportar as condições péssimas dos navios civis transformados em
transportes de militares.
À tarde repetia-se a manhã e quando
chegava a noite a única diferença era o toque de recolher às oito horas. E
assim terminava um dia malfadado. Mas no Uíge havia naturalmente sargentos e
oficiais do quadro permanente e milicianos. Como se ocupavam os primeiros, nos
tempos de ócio? Jogavam a bisca, fumavam, também faziam o dominó e bebiam o seu
balão de aguardente Constantino, faziam a sesta nos seus camarotes de quatro
beliches.
E desta maneira já decorria em tempo decorrente
à chegada a Luanda. Entretanto quanto aos oficiais que faziam eles? Bebiam os
seus uísques sentados às mesas jogando bridge. A principal mesa por ser jogada
pelos melhores jogadores era constituída pelo major José Mendes Gonçalves,
capitão Manuel da Silva, capitão Xavier Costa, capitão Domingos Álvaro
Carvalho.
Jacinto que não pescava népia do
bridge estava de mirone seguindo com patavina as jogadas das cartas e aa vozes
dadas. Ao terceiro dia já de tanto olhar para o cartear e ouvindo as vozes,
durante o jogo e final do mesmo (por exemplo: duas trunfo é copas, ful de
espadas, etc.) Porém um dia o capitão Ferreira da Silva ficou no camarote com
uma merda nas tripas (vocabulário típico entre militares) e chamados os médicos
do navio e bem os das companhias receitaram o possível na modesta farmácia do
Uíge.
Foi quando o major Mendes Gonçalves
convidou Jacinto a substituir o capitão enfermo. O alferes miliciano bem recusou,
mas depois de muita insistência dos três oficiais, lá sentou e começou a jogar,
de principio, de forma desastrosa. Mas, pouco a pouco foi cometendo menos
faltas e na noite do dia que antecedia o dia da chegada a Luanda já sua
parceria com o capitão Xavier Costa ganhava alguma, poucas, partidas. Enquanto
isso a saúde do capitão Ferreira da Silva entrava no ponto crítico!
Uma porra! Afirmação do tenente-coronel
da tropa. Pior ainda! Como se estava a um dia de atracar ao porto de Luanda
decidiram que o capitão doente estando cada vez mais grave a maleita, seria,
logo que o Uíge atracasse, fosse levado por ambulância ao Hospital Militar da
capital. E assim se fez. Paralelamente
desceram todos os militares. E Jacinto como vinho sozinho aproveitou para
chegar junto a um garoto que sentado no chão tinha espalhado no mesmo chão revistas
diversas e um jornal “A Província de Angola”. Jacinto perguntou ao garoto: “O
jornal é d´hoje. E o garoto: “Não sô patrão tropa, é dôje e quinhento”…
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(*) A guerra " ultramarina" (invenção do Estado Novo que nos dias de hoje é considerada naturalmente como colonial foi um horrendo crime pela ignominiosa perda de vítimas humanas e lesões as mais diversas. Além disso a frase do ditador de Santa Comba Dão "Para Angola Rapidamente e em Força" aplica-se directamente a este texto.)