2016-11-18

A SAGA DA ALZIRA – 4


Um funeral à maneira


Antunes Ferreira


H

avia uma explicação para a ausência das tertulianas do Retiro do Meio Chão aquando da visitinha do Pintarolas, aliás frustrada (visitinha que poderia ter tido consequências muito mais graves, mas não tivera felizmente para o rapazola). Às três componentes efectivas juntara-se uma quarta ad hoc, a saber: a Dona Alzira, a Dona Ester e a Menina Hortênsia  a Dona Leocádia – que ainda não conheciam, mas que por vezes aparecia; era porteira do 28 da Rua de Baixo, já tendo completado 72 anos e considerava-se solteirona militante – tinham ido ao funeral dum compadre da Dona Ester.



“F
oi um enterro muito bonito, não foi?” perguntava no dia seguinte, já no Meio Chão, a Dona Ester, que apesar de ver aproximarem-se os 94 anos adorava tudo o que metesse urnas, paramentos, gatos-pingados e etc. “Foi sim senhoras”, acudiu a Dona Filomena que acabava de lavar panelas, tachos e restantes itens da parafernália instrumentista-culinária e que também participara nas cerimónias funerárias pois era prima afastada da irmã duma tia da madrinha da prima duma comadre da prima-irmã da viúva do falecido, todos oriundos do falecidíssimo Estado Português da Índia. A Dona Filomena não era goesa, era apenas por amizade.


A
 única chatice fora a partidela da roda da carreta, o caixão e o morto estiveram à biquinha de cair, não fora o gato-pingado que lhe deitou a mão, o Zé Marreco que fazia de Mestre das Cerimónias, cagou-se todo que eu bem o cheirei, regougou a Dona Ester, o Chico da peixaria comentou entre dentes “aqui há peixe com fénico”, e a Dona Ernestina do Salão de Estética Unissexo sacou o abanico da mala a tiracolo, “aqui perto deve haver uma retrete cheia de merda.” O Marreco disfarçou, tirou do bolso do colete um canivetinho e voltando-se para a Dona Ernestina disse na brincadeira “Ai, qu’eu capo-a…” A coisa, felizmente, ficou por ali.  


Melquior, Baltasar e Gaspar


O
 Segismundo ficara no Retiro, alguém tinha de trabalhar, para o ripanço já bastavam os das obras, incluindo o campomaiorense que ainda pensara ir fazer uma perninha no cemitério, no meio da molhada nem se notaria, mas para concretizar tal desiderato seria preciso ir a casa mudar de fatiota, o que seria uma ganda merda. Portanto, não foi. A igreja estava a abarrotar, quase a rebentar pelas costuras se as houvera. O celebrante suava as estopinhas, o sacristão também e dos assistentes nem é bom falar. Todo o incenso, mirra, água de colónia Printemps, perfumes Women & Men, desodorizantes diversos e sabonetes Lifeboy que ali fossem vertidos não conseguiriam anular o odor corporal que da multidão evolava. Nem mesmo a água benta se safava. Alzira: “Era como os três Reis Magos a chegarem ao Perzépio cagados de areia e similares até aos cotovelos. O Segismundo atrás do balcão “Presépio”…


O
 padre “falara mui bem, porra! Até parecia um Bispo!” dissera a Dona Alzira que ainda acrescentara que “nem fora necessário o coiro para encomendar o corpo…” ao que o Segismundo corrigiu “não é coiro, é coro, e isto de encomendar lembra-me os Figueiredos do 4º Esquerdo que encomendam sempre o almoço para que seja levado a casa”. A Menina Hortênsia não gostou “ó home alembre-se – graças a Deus muitas; graças com Deus nenhumas!”

De muito alimento...


F
oi a Dona Ester que deitou mais umas achas para a fogueira: “Além do mais, o prior era lindo! Um homem perfeito. E a irmã dele que estava na primeira fila comia-o com os olhos…” A Dona Leocádia acrescentou “Quem a comia era ele e não era com os olhos. Uma boazona como ela era de muito alimento. E as meninas não podem esquecer-se de que um padre é um homem que tem a braguilha até ao pescoço. A Menina Hortênsia começou a abrir a boca, mas depois calou-se. Graças…





“E
 as flores? Um monte delas, cada um mais bonita do que as outras" sublinhou a Dona Ester, "repararam "na coroa da Companhia onde ele tinha trabalhado, e era apenas porteiro, um mimo, bem como a do Sindicato de que era tesoureiro, uma maravilha, para não falar das que a família tinha trazido (como era sua obrigação)” A Dona Ester voltava à carga “aquele ramo de rosas brancas não dizia de quem era. Seria que o morto teria uma mão esquerda?” E a Dona Filomena que já tinha tirado o avental “mas as Senhoras foram ao funeral ou foram cortar na casaca do falecido?”

A menina dos cinco olhos


E
 foram falando do caixão em mogno, dos acompanhantes, muita gente fina, até políticos e ministros, ele era muito bem visto“, da oração do sacerdote junto à câmbra – campa, emendou mais uma vez Segismundo – “vossemecê até parece a dona Adozinda a minha setôra da escola primária númaro 127, só lhe falta a menina dos cinco olhos qu’ela tinha, a cadeirinha e o içópe” – e de novo o atendedor “o número, a caldeirinha e o hissope” e o gajo zarpou para a cozinha antes de levar com uma cadeira pelas trombas – que o ameaçou a Menina Hortênsia.


P
ara funeral já bastava. Estava quase tudo dito. Ainda havia um tema para abordar: o padre e a moçoila oficialmente sua "irmã" que um dia depois de uma trovoada  tramada tinha comentado para as vizinhas "E eu, se não me agarro ao meu "mano" António tinha caído da nossa cama..." E quando ainda estavam nestes preparos entrou o campomaiorense “Sabem quem esteve por cá? O Pintarolas. Mas, foi uma rapidinha. E então o velório?” E a Alzira “Não fomos. Era muita cera para só um defundo.” E O Segismundo da cozinha “defunto…” E a Menina Hortênsia “Ai levas, levas!” E levantou a cadeira.