Uma doença complicada
*Do Alzheimer ao HIV venha o diabo do Diabo
Antunes Ferreira
«O senhor doutor Manuel Mateus Gonçalves Nobre, médico de família, ficou preocupado, depois da consulta ao senhor Carlos Manuel Vicente Marques, 78 anos, casado, segundo a ficha (pasme-se, actualizada) com Isabel Maria Gomes Vicente Marques, reformado da Companhia de Armazenagem/silagem de cereais «Grão a Grão». Por isso, tomou-s dos sus cuidados, chamou a enfermeira Adelaide e pediu-lhe, por favor, para dizer às senhoras da Recepção que ligassem para casa do paciente que acabava de sair. Depois, ligou, no computador, a edição on-line d'«A Bola» e esperou não muito tempo. «Está lá? Quem fala?» «Aqui é a casa do Vicente Maques. Se faz favor, identifique-se e diga-me o motivo desta chamada.»
«Eu sou o drº. Gonçalves Nobre, vosso médico de família e...» Dona isabel Maria interrompeu-o: «Sei bem quem é o senhor doutor; mas, que aconteceu para me estar a telefonar quase à meia noite? O meu marido foi hoje consultá-lo, tem alguma cisa grave?» Gonçalves Nobre pigarreou e falou com a tranquilidade possível: «Minha Senhora não entre em pânico, trata-se apenas de uma dúvida com que fiquei durante a consulta do seu esposo, nada de grave, mas, enfim, creio que a senhora deve marcar uma consulta com um neurologista.
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Até lhe posso indicar um que andou comigo na Faculdade, mas é somente uma sugestão, podem procurar outro, o Google da Internet está cheio deles...»
«Ó senhor vou já tratar disso, diga-me o nome, a morada, o telefone e/ou o telemóvel desse su amigo. Pelo que me diz, não posso perder tempo!» «Victor Constâncio Mendes da Silva. Os restantes elementos identificadores encontra-os na Internet. Muito boa tarde e boa sorte.» Meu dito, meu feito, Isabel Maria, depois de ter efectuado as pesquisas necessárias, telefonou para o consultório do neurologista indicado pelo seu (e pelo seu marido também). «Está? É do consultório do drº. Mendes da Silva?» «É sim, senhora. Em que posso ajudá-la? - eu sou a recepecionista e...» «Preciso de falar URGENTEMENTE com ele e diga-lhe por favor que venho da parte do colega dele, Gonçalves Nobre.»
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«O senhor doutor está com uma doente, e não quer ser interrompido. Diga-me de que assunto se trata, passarei à assistente dele, ela informo-la-rá e lá pela noite ele lhe telefonará. Concorda?» Isabel resignou-se e disse um sim meio macambuzio, mas nessa altura entrou o marido: «Então que temos para o pequeno-almoço?» A esposa du uma risada: «Isto são horas de jantar. Tenho aí uma pescada à marinheiro, de que tanto gostas, e uma sopa de espargos, mas esse é de pacote.»
E vamos ao restaurante onde já nos conhecem por sermos clientes habituais, o "Trevo das Quatro Folhas?"» «Nada disso, meu querido,º o "nosso" é o "Os Belos Montes" do transmontano Chico Frutuoso, nascido e criado na aldeia de Codeçais, antes de vir para Lisboa.» «E vamos a pé, está um dia tão bonito, mas não te esqueças, leva os óculos escuros de ver ao longe que comprámos no "Óscar Bravo"» Isabel Maria Gomes Vicente Marques estava estarrecida: «Amor, fica para, o jantar, que fiz pensando em ti, é só meter dois minutos no microndas e pronto.»
Isabel atendeu Mendes da Silva
Nisto tocou o telefone, Isabel atendeu. «Está? Falla o doutor Mendes da Silva. Em que posso ser-lhe útil?» Belinha (assim era tratada pela família mais chegada e por alguns, poucas amigas e amigos) respondeu-lhe: «Só um momento, vou atender su chamada na extensão que temos no escritório.» Entrementes, o Carlos Manuel entretinha-se a ir da sala de jantar à cozinha e vice-versa, não ligando patavina o telefonema. Ela fechou porta, pegou no auscultador e contou ao médico o que acontecia e a sua preocupação. Mendes da Silva, mesmo da sua casa e, dado o que ela dizia, marcou uma consulta para o dia seguinte, quando o último doente tivesse acabado o seu atendimento.
Foi o que aconteceu, com grande espanto do Carlos Manuel, que perguntava constantemente à mulher «o que iriam vender num terceiro andar do Jardim da Estrela?» Os outros pacientes, que esperavam, pacientemente, a chamada para a respectiva observação, olhavam-no, desconfiados, parecendo pensar para com os seus botões «Este tem um parafuso a menos...» Cerca das onze da noite, já se tinha raspado a rcepcionista, a enfermeira/assistente mandou-os entrar. Mendes da Silva andava na casa dos quarenta, era um bonito homem e usava no anelar da mão esquerda uma aliança. Era, portanto, casado.
«Cu-cu» - na casa da avó Mariana havia um destes
Mesmo antes de nos apresentarmos, o Carlos Manuel apressou-se a perguntar ao psiquiatra se ele vendia ou comprava relógios de cuco? O médico fez um sorriso amarelo, mandou-nos sentar e respondeu ao meu marido que ali não era um loja era o consultório dele, ao que o meu marido retorquio que não cometera nenhum crime, «por isso íamos embora» e, além do mais, não ia à bola com advogados, os quais eram todos uns burlões «que só sacavam guito aos clientes!» A coisa, sem dúvidas, começava muito bem.
Mendes da Silva tentou sossegar o Carlos com uma voz baixa e tranquilizante e - pasme-se - consegui-o. Depois, voltou-se para a Isabel Maria e pedi-lhe pra lhe contar o que se passara e se se continuava a passar acrescentando «que pergunta estúpida...» olhando significativamente para o meu esposo. Relatei-lhe tudinho, sem uma virgula ou um parenteses, tentando dar uma lógica à ilógica das diversas ocorrências. O médico ouvia-me com a maior atenção e ia tomando notas usando o teclado do computador que estava sobre uma mezinha ao lado da sua secretária.
Mendes da Silva levantou-se e pegando-me num braço, disse à enfermeira/assistente para tomar conta do paciente, levou-me para a sala ao lado, sentámo-nos e ele disse-me: «O senhor Vicente Marques vai ter de fazer umas análises para despistar o HIV, ou seja o Vírus da Imunodeficiência Humana que é no fundo um lentivírus que está na origem da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, SIDA, uma condição em seres humanos na qual a deterioração progressiva do sistema imunitário propicia o desenvolvimento de infeções oportunistas e cancros potencialmente mortais.»
«Mas eu não tendo a certeza de que o seu esposo é portador do HIV, à cautela e por deontologia medico-profissional, vou pedir essas análises, incluindo uma biopsia. Os senhores têm SNS? Têm. Muito bem. Se ele perguntar o porquê das análises, diga-lhe que (eu de seguida vou auscultá-lo com o estetoscópio) lhe detectei "alguma pequena coisa nos brônquios". Está perfeitamente clara, ou necessita de mais alguns dados?» Do que eu precisava era sair dali, depois de pagar a consulta, contra recibo (ai o sacana do IRS!) e irmos marcar as análises, se possível para o dia seguinte.
Rodeado de polícias e todo NU!
Durante nove dias, estive à espera do resultado das análises. Contudo, ocorreu, nesse período um evento profundamente lamentável. Explico. Habitamos num vivenda de dois pisos ao Restelo, com uma pequena piscina e vizinhos simpáticos, gentis e generosos. Tanto é assim, que nos dias do pino do calor vêm tomar uns banhos no nosso «tanque d'água...» O Carlos Manuel, cada dia que passava, mais asneiras cometia, mas numa quarta-feira, 13 de Agosto deu-se o pior: alertado pelo senor Venâncio, proprietário da vivenda mais próxima, fui a correr buscar o meu marido que se passeava pelo centro da rua, sorridente, rodeado de uns polícias e todo nu!!!!
Vieram finalmente os resultados - que nem os li, porque logo em seguida retiniu a campainha do telefone: «Estou?! Queria falar com a Senhora dona Isabel Maria, por favor.» «Sou a própria.» «Daqui é o Drº. Arruda, do Laboratório de Análises. Ontem, quando o médico do seu marido enviou a biopsia aqui para o laboratório, chegou também outra biopsia de um outro senhor Marques, o que originou uma grande confusão, e agora não sabemos qual é a do seu marido… e infelizmente, os resultados são ambos maus….»
Alzheimer é um puzzler a quem fala uma peça