Testículos
ou
tomates…
Antunes Ferreira
N
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a sala de espera do dentista onde me encontrava desde o
Quaternário (impressão minha dada o atraso do ilustre clínico pois a consultava
marcada para as 15:00 TMG e com o decorrer lento do tempo, já eram 22:30 também
TMG) entrou um senhor preto de sobrancelhas brancas, de óculos escuros, idoso, vestindo um fato branco e
sobraçando uma pasta Camel de cabedal puro. Do animal que o fornecera bem
contra vontade, eu não fazia a mínima ideia; não sou especialista em couros, mas
posso afiançar que não era imitação em plástico.
A
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empregada do
atendimento, perguntada pelos doentes se o doutor já chegara, há horas que
respondia que não, mas estava quase. Havia mais pessoas à espera do
odontologista todas com cara de caso, lendo as tradicionais revistas de há dez
meses – se não mais – jogando em smartfones, telefonando para um familiar que
se encontrava na Patagónia, alguns ouvindo música através de auriculares, outros
ainda classificando o atrasado com vocábulos impublicáveis mas com os quais as parceiras e os parceiros concordavam.
Enfim, o habitual.
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Um senhor preto |
O
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senhor preto que
entrara (que em linguagem politicamente correcta devia ter chamado africano,
mas há-os também brancos, mestiços, mulatos e similares, por isso fico na minha
e também porque sei que negro nos EUA é pejorativos, eles dizem black people)
depois de se ter informado na menina do balcão deitou os olhos pela assistência
em busca de cadeira. Mas, ai, estavam todas ocupadas…; por via disso o cliente
num gesto de grande dignidade e alguma esperança decidiu-se por esperar de pé.
N
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o assento ao lado do meu encontrava-se um sujeito da minha colheita
de quarenta que falava em decibéis bastante menos simpáticos. De quando em vez baixava
o tom da voz e consultava o relógio, aliás um Rollex verdadeiro e em ouro, e
murmurava um qualquer comentário mas mesmo assim perfeitamente audível. O
médico atrasado creio que não gostaria de ouvi-lo até pelos calões que o
cavalheiro usava. No entanto ouviam-se uns tem toda a razão.
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Torquemada num auto-de-fé |
A
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empregada levantou-se
e foi abrir a porta de entrada pela qual penetrou um homem com cara de
assassino, ainda por cima mal disposto: era o estomatologista. Nem as boas
noites deu, muito menos pediu desculpa do atraso. Há homens assim e por isso
falei com os meus botões que o senhor Darwin tinha razão. Entrou no seu gabinete
do tipo inquisitório qual Torquemada preparando mais um auto-de-fé.
M
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esmo assim renasceu a esperança no atendimento embora
bastante tardio e a gente entreolhou-se; uma senhora obesa avançou
convictamente: era a primeira da lista de marcações que um computador
apresentava. Nisto tocou o intercomunicador, a empregada travou a cliente e
chamou o senhor de fato branco. Fechada a porta do consultório já com o cidadão
lá dentro, o meu colega de assento falou alto e bom som que andara na guerra do
Ultramar e para ele os pretos apenas eram alvos das G3.
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Que uma mina... |
N
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ão se ouviram aplausos mas a concordância era evidente;
porém a recepcionista respondeu que o senhor de fato branco e pasta Camel também
andara na guerra colonial vestindo a farda do exército português e fora lá que
uma mina lhe partira os maxilares e arrancara quase todos os dentes por ter-lhe
rebentado na cara. E acrescentou que ainda fizera mais estragos: cegara-lhe uma
vista partira-lhe uma perna e também ficara sem os testículos. Por isso passara
à frente da restante clientela. Fez-se um silêncio na sala. E do fundo dela
surgiu uma voz: agora é que vamos ver quem tomates - pretos?’