2016-06-30


A farmácia

e a prostiputa



Antunes Ferreira

C
á fora há uma cruz verde iluminada e piscando onde passam GLICEMIA, TRIGLICÉRIDOS E COLESTEROL indicando as análises que ali se fazem. Depois o nome da farmácia, a data, a hora e a temperatura. Era uma das maiores que o Justino via, e ao entrar descobriu que abarrotava de gente. Um sujeito disse-lhe que era preciso tirar uma senha com o número que lhe anunciava o atendimento. Indicou-lhe a maquineta e explicou-lhe como funcionava, é só carregar no botão…


Felgueiras - Moncorvo



J
ustino Silva Gonçalves era transmontano natural da aldeia de Felgueiras junto a Moncorvo, onde também vivera toda a vida, 22 anos de idade, solteiro e as vizinhas consideravam-no um bom rapaz, temente a Deus, missa semanal. Terra curiosa, dentro dela não se apanham as chamadas do telemóvel...: ali vive o último cerieiro de Portugal. Pela primeira vez vinha a Lisboa. Para ele era tudo uma novidade, sentia-se como um boi a olhar para um palácio, era tudo enorme.



C
omo tinha combinado foi ao Bairro Alto para ver o primo Manel natural de Maçores, um bagaço de estalar e porque torna e porque deixa, puseram a escrita em dia. O primo indicou-lhe que devia ver a turística
Sem legenda

travessa do Cunhal das Bolas (Seria da família do chefe dos comunistas?) que até tinha tabuleta na parede e era pequena como tudo no bairro, Iria, tá claro, mas só na próxima visita à Capital.

Q
uando vinha embora Manel explicou-lhe que o Bairro Alto do antigamente era o que se chamava um antro de perdição, porque tinha muitas pegas e casas de passe juntamente com tascos e restaurantes onde as rameiras cantavam o fado, acompanhadas à guitarra pelo Zé Falcão e à viola pelo Chico Aventureiro. Porém muito desses “inconvenientes” estavam a desaparecer.


R
ameiras? São as mulheres da vida respondeu o Manel, e o Jaquim, com uns pontos de interrogação, o que é isso? São as protisputas como lhes chamam as pessoas finas e nós dizemos putas. Se galares alguma lembra-te do que te digo; toma cuidado e atenção.
Uma senhora dos seus...
E foi precisamente quando chegava à travessa da Queimada onde o Manel lhe tinha dito que era a Redacção da BOLA, que uma senhora dos seus cinquenta e muitos o convidara para dar uma queca.




P
orém em Felgueiras o Jaquim Gomes avisara-o que sem camisa-de-vénus não podia fazer nada e por isso fora à farmácia para comprar uma. Possa! A velhota a caminho dos cinquenta e muitos, carregada de pó de arroz e de outra porcaria que na televisão diziam que era meique âpe, as beiçolas pintadas de vermelho forte e pestanas postiças, dissera-lhe que não era preciso, que era muito cuidadosa e limpinha, lavava-se por baixo todos dias. Duvidoso, fora-se pelo Jaquim Gomes que era da aldeia e barbeiro, homem de saberes e sobretudo amigo. Mas ficou a ruminar: como era tão grande a desgraça, a austeridade, o desemprego e a fome que levavam uma gaja já muito fanada a prostiputar-se…


Estamos cá para isso



N
a farmácia coubera-lhe um papel saído da mánica  com o númaro 0169 e no mostrador na parede ainda ia o 0032. Safa, eram mais de cem númaros de diferença. Três horas e meia depois uma Senhora com ar de duquesa ou coisa assim que tinha o 0165, raio de lotaria, amanhã é que anda à roda, chegou-se ao balcão e disse ao empregado que queria comprar um batom mais primeiro precisava de experimentar para ver a cor exacta que costumava usar. Mas não queria abusar do tempo que lhe roubava. A atendedora, minha Senhora estamos cá para isso…





E
ntretanto aproximavam-se em alta velocidade as sete da tarde hora em que fechava o estabelecimento, o que aconteceu num instante. Pelo altifalante, uma voz maviosa informou: as senhas restantes ficam para amanhã respeitando a ordem deste dia. Por favor têm de trazer as senhas. Chiça! logo lhe havia de acontecer uma tal coisa, e a camioneta para Moncorvo saía às sete e meia. Estava perdido e estava perdida a camioneta. Telefonou ao primo Manel dando-lhe conta da chatice que tivera, ao que ele lhe respondeu: antes isso do ter partido uma perna. Dormes cá em casa, vestes um dos meus pijamas, escova de dentes e pasta há e mais, depois xixi e cama no quarto das visitas que agora não há nenhuma.


Um antro de perdição ou de salvação?



T
Iro e queda, assim aconteceu, ainda jantou umas postas de pescada frita com arroz de tomate que estava de lamber os dedos. No quarto das visitas deu consigo a fazer trabalhar a cachola. E resmoneou que não comprara o persebatibo, não comera a gaja e arranjara casa e comida. Lisboa era mesmo um antro de perdição, o Jaquim Gomes bem lhe dissera. Mas também de salvação, o primo Manel ? – não a capital.