Uma moldura dourada
*Do campo à construção civil
Antunes Ferreira
Ná, amanhar
a terra não era pra ele essa era que era essa e que viesse o mais pintado
dizer-lhe o contrário, passar-lhe as mãos pelo lombo, segredar-lhe aos ouvidos
falinhas mansas e logo veria qual a resposta que receberia. Porra! Seria o
menos agreste porque a alternativa rondaria termos que fariam corar um árbitro
de futebol objecto de calorosos insultos dos espectadores do estádio quando
marcara um penalti contra os donos da cada no último minuto do prolongamento de
sete minutos.
Silvério
dos Santos Segismundo, para os amigos o Triple Esse, herdara dos pais –
falecidos num desastre de avião quando iam passar férias a Punta Cana, na
altura da aterragem, só se conseguiram identificar pelos registos dentários –
umas leiras de terreno a atirar para o grandote onde vicejava uma cevada dística,
outras com macieiras, pereiras, figueiras e até diospireiros e ainda uns
vinhedos.
Porém,
desde criança que nada daquilo lhe despertava o menor interesse para
grande consternação dos pais Manuel e Palmira Segismundo que não viam nele nem
o sucessor das terras que iam comprando aos vizinhos para aumentar o pecúlio,
nem muito menos, o filho, aliás único, disposto a dar-lhes – pelo menos e não
era pedir muito - um neto que perdurasse
o nome da família.
Silvério
era o que se pode dizer um farrista nato. Dormia de dia e vivia de
noite. Moças era um vai-e-vem delas, loiras, morena, assim-assim, mas todas a
puxar para a brincadeira, nenhuma apontada pra a igreja ou quando muito para o
registo civil. Despiam-se naturalmente, faziam o que lhes dava na real gana, o
Silvério era um gajo fixe, pagava uns copos, usava camisinha, tudo bem.
Feito o
funeral com o que supostamente restava dos corpos, o Três Esses pôs-se
em campo para se desfazer das propriedades o mais brevemente possível. Na vila
sede das terras encontrou vários interessados e em pouco tempo realizou
negócio. Juntou os seus pertences meteu tudo numa mala de rodinhas e num saco
de mão, despediu-se de quem bem entendeu e ala para Lisboa, no intuito de
começar uma vida nova.
Habilitações
não eram muitas apenas completara os doze anos do ensino elementar e não
estava interessado em abrir um estabelecimento pois não se achava interessado
(nem tinha queda) para o comércio. Depois de arrendar um andar na Alta de
Lisboa – talvez viesse a comprar um outro mais espaçoso, dependendo da forma
como a vida lhe correria – entrou em contacto com um primo (afastado) de seu
nome Julião Matias Moreira, da mesma aldeia e que também viera tentar nova vida
na capital.
A pandemia
tinha aparentemente passado já não se usava a maldita máscara e foi de
cara descoberta que se encontraram num restaurante para almoçar e trocar opiniões.
Julião estava bem na vida dedicara-se à construção civil e conseguira
ultrapassar a Covid 19 sem grandes danos ainda que nem tudo tivesse sido rosas
“e como sabes Silvério todas as rosas têm espinhos…” Mas, enfim, com muitos
despedimentos à mistura, o imbróglio podia ter sido muito mais fodido!”
Conversa
puxa conversa e o recém chegado deu por si a propor ao primo se não lhe
calharia bem entrada de umas massas para
aumentar o capital da empesa que passaria a ser uma sociedade. Julião achou
muito interessante a proposta do primo e ficou de a estudar juntamente com os
seus advogado e contabilista, depois de ter conhecimento do montante em euros
que o Silvério estava disposto a colocar.
Combinaram
um jantar com todos presentes e as opiniões foram no sentido de que a
concretização da ideia tinha pés par andar. Restava saber qual a situação da “Sempre
a Construir” – a empresa do Julião – em termos financeiros pois uma
coisa era a palavra do proprietário, outra eram os papéis da firma, os dos
bancos com os quais ela trabalhava, enfim qual a situação no mercado e
finalmente se se chegasse a bom porto qual a posição que o Silvério assumiria.
Tudo se
resolveu – e a bem. As construções (que, aliás, nunca tinham estado
totalmente paradas) recomeçaram e em breve retomaram a actividade em força.
Silvério descobrira pela primeira vez na vida, que estava no que gostava de
fazer e era vê-lo todos os dias nas obras falando com os capatazes, convivendo
com os pedreiros, estucadores, carpinteiros pintores e até com os serventes.
Os
resultados foram-se sucedendo num crescendo cada vez melhor e a
sociedade ia de vento em popa; os bancos avançavam com os avales aos empréstimos
e a carteira de títulos engordava a olhos vistos, os fornecedores dos materiais
de construção não punham quaisquer reticências na entrega atempada de tijolos,
de cimento, de vara de aço, de tudo o que era necessário para erguer um novo
edifício de uma recente urbanização.
A
divulgação das actividades da empresa carecia de alguém que percebesse
do assunto e portanto o Silvério, através de um cliente, entrou em contacto com
uma agência de publicidade a “Estamos na Onda” onde conheceu a
responsável pelos assuntos referentes à construção civil, uma morena de 26
anos, divorciada, com todas as curvas no devido lugar, um par de pernas de
fazer parar o trânsito a um cego e outro par mais acima, sum usar sutiã. E que nádegas!
Dois meio hemisférios redondinhos e firmas! E quanto a palminho de cara, Deus e
os pais dela tinham acertado em cheio!
Chamava-se
a joia Madalena Figueiredo Ramalho, era licenciada pela Universidade
Lusíada e livre como um passarinho saído da gaiola. Combinaram um almoço de
trabalho para se darem a conhecer e ele explicar-lhe o que pretendia da agência
e, em especial dela. O repasto decorreu no melhor dos mundos e ficou logo
aprazado um novo encontro para a Lena (ela preferia que ele assim lhe chamasse)
lhe apresentar um plano d trabalho.
Ora
acontecia que Silvério na sequência dos encontros com potenciais
associados começou a pensar que a sociedade com o primo Julião andava por bons
caminhos mas que ele podia bem assumir uma empresa própria que lhe rendesse
mais dividendos. E numa das reuniões com
a Lena expôs-lhe a sua ideia – e para espanto ela achou-a com pés para
andar. Daí a uma conversa com o sócio que resultou numa separação amigável
tanto mais que o Silvério, homem de palavra assegurou que não roubaria
quaisquer clientes à sociedade.
Desta maneira Silvério tratou de avançar com a ideia
no que foi ajudado pela Lena. Esta, face às novas solicitações, deixou a
agência de publicidade para se dedicar à instalação do novo empreendimento.
Julião percebeu a jogada e aceitou-a, tanto mais que o sócio lhe prometia que
não roubaria quaisquer clientes. E Silvério era homem de uma só face, honesto e
cumpridor. Os encontros entre Silvério e Lena deixaram de ser esporádicos –
passaram a ser quotidianos. Dos planos de trabalho, dos almoços a dois, de
repente estavam o apartamento do Silvério na cama.
Noites
tórridas de pele contra pele, tal como tinham vindo ao Mundo – mas
obviamente mais crescidos. Ela revelava-se um portento e ele acompanhava-a no
desvario que se prolongava pela madrugada. Lena mudara-se para o apartamento do
Silvério e entre as caricias empolgantes iam empurrando a nova empresa que em
boa hora nascera pois os resultados estavam à vista.
O
escritório rapidamente se alargou com a entrada de novos colaboradores a
quem os proprietários pagavam acima da média do mercado e proporcionavam
regalias para os manter satisfeitos e com bons resultados. Já Silvério e Lena
pensavam em abrir uma delegação no Porto e talvez noutras cidades do país,
quiçá meso na Madeira e nos Açores.
Pensavam em
ter filhos, mas para já não, o trabalho ocupava-os os dias e as noites
eram um hino ao amor galopante, descobrindo-se cada vez mais, havia sempre uma
novidade sensual, e quando no fim de mais um corpo a corpo, suados, estendidos
na cama, lado a lado, tocando beijos e tocando-se nos pontos mais sensíveis
eram a imagem da satisfação sexual e emotiva.
Por essa
altura decidiram que o T3 já não satisfazia as suas necessidades.
Precisavam de dar encontros com amigos, clientes e potenciais compradores de
casas em urbanizações em que se tinham especializado. Donde decidiram mandar
construir uma vivenda grande com três pisos, garagem para quatro viaturas,
piscina e até court de ténis. Só o salão dava para 50 (por extenso cinquenta)
pessoas.
O miminho
da mansão – pois com tal dimensão e atributos como se lhe havia de
chamar? – era a casa de banho do quarto do casal uma suite toda em mármor
branco e preto, com a sanita e o bidé em porcelana Roca e todas as ferragens
desde as torneiras até ao chuveiro (à parte) em metal dourado. Com jacúzi
incorporado, naturalmente e com o chuveiro em diversas opções. Uma maravilha.
Decidiram –
ainda que faltassem uns pequenos arranjos, nada de especial – passar a
primeira noite em casa para fruir dela com uma noite de loucura desenfreada,
sem regras nem limitações Mal pensavam para o que lhes estava guardado. O
próprio Silvério dava uns toques aqui e ali. Quando chegou à casa de banho
decidiu pintar de dourado o assento e o tampo da sanita para condizer com os
metais. E assim meteu mãos à obra. Ainda acabava de pintar o aro da sanita r
deixava-o secar e por isso pegou na lata de tinta e no pincel e dirigiu-se à
garagem onde tinha montado uma mini oficina.
Nisto tocou
o telefone fixo, ou melhor uma das extensões que havia pela casa.
Atendeu: era um fornecedor de materiais de construção com o qual iniciou uma
longa conversa. Entretanto a Lena preparava uma campanha sobre a abertura da
futura delegação na cidade invicta. E, como aliás era hábito dela, o local mais
recolhido e sossegado era a casa de banho. De resto era domingo e ninguém a
iria incomodar.
Sentada
calmamente na sanita, depois de fazer um xixi começou a ler os
apontamentos que tinha com ela e de tal modo se embrenhou no tema que os
minutos foram passando enquanto ela de esferográfica i anotando na margem das
folhas novas ideias e corrigindo outras. Sentia-se bem consigo mesmo e o
trabalho corria-lhe às mil maravilhas.
Porém
quando pôs um ponto final nas laudas de papel e ia levantar-se não
conseguiu fazê-lo. Ó diabo, estava colada pela tinta dourada ao aro da sanita.
Bem se esforçou para se levantar, mas nada. Chamou pelo Silvério, porém este
agarrado ao telefone e ainda por cima na garagem não a ouvia. Só meia hora
depois e após muitos gritos ele apareceu e espavorecido tentou levantá-la da
sanita. Debalde.
Silvério
tentou desenrascar-se, foi buscar uma chave de parafusos, desenroscou o
aro da sanita e levou cuidadosamente pela mão a sua Lena para o quarto do casal
e disse-lhe para se deitar de barriga para baixo enquanto ele ia tomar as
necessárias providências para resolver o berbicacho. Foi ela que lhe lembrou
que no frigorífico duplo da cozinha estava preso com um imã um anúncio/aviso
distribuído pelas caixas dos correios.
Rezava
assim: “Manuel Varandas. Vai a casa com deslocações pagas sete dias
por semana. Encarrega-se de assuntos diversos desde reparações de electrodomésticos
até instalações eléctricas, alvenaria, canalizações e outros. Contactos: Dois
números de telefone, um fixo, outro telemóvel”. Silvério ligou-lhe e
disse-lhe que o assunto era delicado, pouco dado para falar ao telefone e que
pagaria o que fosse necessário para que o homem viesse o mais rapidamente
possível.
“Dentro de uma hora, o mais tardar, estou aí.” E o prometido
foi cumprido. Levado ao quarto do casal o Varandas perante o quadro que se lhe
deparava disse para o Silvério: “O senhor vai desculpar-me o comentário.
Concordo que o traseiro é muito interessante; mas daí a emoldurá-lo acho um
tanto exagerado…”