2018-09-21





Antunes Ferreira
Não sei como isto me aconteceu porque há muito tempo que não sucedia, mas vejo-me obrigado a condescender, as teclas têm razões que os próprios dedos desconhecem, que me desculpe o Monsieur Blaise Pascal a pseudo citação aliás canhestra numa adaptação que dá imenso jeito ao autor. Posto isto dito para a acta que hoje escrevo na primeira pessoa sobre tema que eu próprio vivi por ter estado no local da ocorrência mas de cujos trâmites não me recordo precisamente dada a minha tenra idade. Porém quem mos contou posso considera-la fonte mais do que fidedigna como é uso escrever nos periódicos. Vamos então à questão.

No Vale de Santarém mais exactamente na curva que antecede a Fonte dos Amores contada por Almeida Garrett onde a Menina dos Rouxinóis de olhos verdes quais esmeraldas – palavra d’honra que não é o eu que escreveu isto, foi o romântico – ficava o casarão da minha tia-avó Dona Etelvina Ferreira, solteirona militante com os seus setenta e muitos, no qual com os meus sete/oito/nove anos passava um mês mais coisa menos coisa das férias grandes no tempo em que as havia.

Um peru mamute


A propriedade urbana (assim rezava a escritura)  era também enorme  pois além da moradia contemplava um lagar de vinho com adega adjacente (dez tonéis enormes para dois mil litros) quatro figueiras duas pereiras, três damasqueiros e duas macieiras, mais uma horta e um galinheiro lá no fundo o quintalão  onde eram criados à tripa-forra todos os tipos de aves comestíveis e poedeiras desde galos e galinhas passando por patos e gansos  e fracas até se chegar aos diversos tipos de perus mesmo os perus mamute que me assustavam  quando arrasavam a asa às peruas. Coisas de namorados atiradiços.

En passant (Óbvio que podia grafar de passagem  mas um francesismo dá sempre um ar de erudição que ilumina a escrevinhadela e dia de trovoada) refiro que também tinha eu catrapiscado uma namoradinha a Berta, filha o feitor, o senhor Raimundo, amor de Verão, que dizia a senhora Maria Martins verão qu’isto passa e passou mesmo quando passei para a segunda classe e para as segundas férias. É aqui a altura de nomear a citada senhora, criada da minha tia-avó que, caso curioso e atá surpreendente, conseguia realizar a magia de ser mais velha do que a patroa, pelo que almas maldosas chegaram a chamar-lhe bruxa. Há gente para tudo. Outros mais evoluídos a nível cultural, como o senhor Jimbrinhas da Farmácia Bem-te-curo, apelidavam-na de pantomineira. Despeitados.

Um Ford T - o primeiro carro produzido em série


Num dia de Agosto o senhor Raimundo levou-me à garagem que era a antiga casa das carruagens e esteve a explicar-me com a maior paciência e para mim uma insigne sabedoria o que eram dois carros que lá estavam enferrujados e carregados de poeira que me pareceu ser do tempo dos afonsinhos a par duma charrete em que a Dona Etelvina e alguns de nós incluindo eu nos passeávamos na Feira de Santarém. Até apontei no bloco “Lusitano”  que levava sempre comigo, antecipando  o futuro repórter, os nomes dos calhambeques: um fáeton Hudson de 1917 e um Ford T de 1923. Hoje valeriam uma pipa de massa. Em euros, está claro.

Mostruário com as jóias 


A estória – a que aliás já me referi por algumas vezes ouvi contá-la à minha mãe que a dava como absolutamente verdadeira – tem a sua piada. Pelo Vale passava o senhor Freitas joalheiro ambulante com sede no Cartaxo (terra do meu pai) que corria todo o distrito. Carlos E o seu irmão Fernandes eram os sócios e proprietários da joalharia Anel Doirado base do negócio. Fernando geria a loja, Carlos ia para o terreno. Era paraplégico, não mexia as duas pernas e por isso usava uma cadeirinha de rodas à qual fora acoplado um motor Zündapp de dois cavalos nas costas da qual transportava uma mala metálica fechada com cadeado onde transportava um mostruário de madeira onde tinha os produtos para venda em prateleiras sobrepostas forradas de veludo vermelho. Com um engenhoso sistema de manivela rodava o mostruário/balcão para a sua frente, abria-o e expunha a mercadoria a fregueses e sobretudo freguesas.



A Senhora Dona Etelvina Ferreira (que era a segunda pessoa mais rica do Vale de Santarém com sete tapadas de vinha e nove prédios urbanos na terra alguns a cair) e a criada senhora Maria Martins eram clientes habituais do Freitas que por lá passava uma vez por mês e quando chegava tocava uma buzina e logo acorria o pessoal mais ou menos endinheirado. O vendedor era o verdadeiro artista pois já descortinava à légua as e os potenciais adquirentes e os sacanas dos mirones bem como os pilha-galinhas que contudo com ele não tinha muita sorte. Dizia que não havia bambúrrio que escapasse a uma Browning 22 que por causa das moscas trazia sempre debaixo da manta com que cobria as penas inúteis fizesse chuva ou sol – e as velhas embrulhadas num lençol como dizia o povo.

Porém chegou um mês em que ele não tocou a buzina porque não apareceu, se calhar está doente, dizia-se no Vale e dizia a Senhora Dona Etelvina Ferreira bem como a senhora Maria Martins. No mês seguinte, nada de Freitas, e trinta depois cadeirinha nem vê-la. E assim foi acontecendo durante seis meses. Não me diga minha Senhora, o pobrezinho deve ter dado a alma ao Criador lamentava-se a criada para a patroa. Por via disso, foram-se à igreja paroquial e encomendaram ao padre cura uma missa por alma do senhor Joaquim Manuel Freitas, o que aconteceu com responso e tudo.

A perninha do meio não é aleijadinha...


Mas, no mês que entrou, para espanto dos espantos, ao portão da propriedade ouviu-se a buzina. Podia lá ser? Seria o Freitas? Teria ressuscitado? Era. Açodadamente as duas foram-se ao novo Lázaro e a Senhora minha tia-avó perguntou-lhe: Mas que lhe aconteceu? Com estes meses todos sem aparecer julgámos que tinha falecido e até mandámos rezar uma missa pela sua alma… E o ourives ambulante: Credo, lagarto, lagarto, lagarto, longe vá o agouro, pagar e morrer quanto mais longe melhor, foi a minha Alzira que deu à luz o nosso sétimo filho e eu fiquei para ajudar os trabalhos em casa…

Foi a senhora Maria Martins quem não se conteve: Sétimo filho? Então o Senhor Freitas tem as duas pernas aleijadinhas salvo seja e já vai nos sete filhos? Retorquiu-lhe um Freitas impante com sorriso de dentadura postiça recheada de dentes de ouro naturalmente: Ó senhora Maria Martins a perninha do meio não é aleijadinha!..