VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR
DE SÍNDROME DE DOWN - 17
Antunes Ferreira
Quando o sol começava a morrer como em todos os dias acontece
borrando o horizonte dum laranja ensanguentado no Verão, eu, sem nada para
fazer, começava também a ser hora de pensar em voltar a casa. Sentado no
restaurante-bar da mesma estação de serviço de autoestrada onde sempre parava
refugiava-me no nada. Estava-se em 2012,
dois anos mais do que constara da última entrada no meu Diário. Assim acontecia
comigo mas entre a vontade de me meter no automóvel que apesar de estar à
sombra devia ser uma sauna e pedir mais um café cheio numa chávena escaldada,
optei pela última. Entretanto entrara um casalinho que depois de pedir qualquer
coisa no balcão fora sentar-se na mesa junto ao canto mais afastado e
penumbrado da sala. E de imediato puseram as respectivas mãos direitas debaixo
da mesa. A decisão estava tomada(muito a contragosto…) logo tive um trabalhão para
me levantar – a inércia e o far niente
são muito pesados… – chegar ao balcão e fazer o pedido dizendo ao empregado que
entretanto ia à casa de banho.
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"Está um calar de ananases.." |
O casalinho que mirei de esguelha tinha voltado aos seus trabalhos
manuais. Ambos tinham as braguilhas abertas (daí o canto mais canto e escuro…)
e ambos tinham as respectivas mãos direitas ocupadas no que elas continham ou seja os dois se masturbavam
enquanto as esquerdas se afadigavam a massajar os mamilos por baixo das
tichartes, pois ela não trazia sutiã o
que era perfeitamente descortinável. Desse relance também me pude aperceber que
– caso raríssimo nos dias que corriam – usavam alianças; donde lua-de-mel top.
Entrara um grupo de raparigas em fato de treino com o nome de um
clube regional, mais uns cavalheiros que deviam ser treinadores, dirigentes e
claques. Era malta do futebol feminino e tinham vencido por isso faziam um
cagaçal danado. Estava desfeito o sossego. Bebi a bica, paguei e segui para
Lisboa. Fora uma tarde mal passada e logo eu que gosto dos bifes bem passados…
Já no Hyundai tentei afastar a preocupação que me levava a alhear-me da
realidade, porque a condução exigia o maior cuidado e além disso eu não gostava
– nunca gostara – de conduzir.
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Na incubadora |
Mas havia dois motivos que me levavam a esse estado, o primeiro
dos quais dizia respeito à adopção. Tinha falhado a tentativa dos gémeos
pretitos pois a “burrocracite”
ocasionara tamanho atraso que outro casal mais cujo processo se encontrava mais
adiantado fora o feliz contemplado com os petizes. Em segundo lugar a Maria
Rita, incansável, descobrira na Maternidade Alfredo da Costa um bebé de sete
meses, prematuro, numa incubadora filho duma timorense que morrera durante o
parto e não tinha qualquer parente em Portugal. Do pai – nem pó.
Tínhamos o processo pronto, inclusive já havíamos concluído o Curso
de Formação para progenitores conditio
sine qua non incluída nos trâmites sem a aprovação da qual nada feito. Daí
o nervosismo que era o que afinal a origem da minha (e da dela) preocupação. Se
tudo corresse bem alcançaríamos finalmente o nosso desiderato. Só então daríamos
por inteiramente justificado o longo percurso que havíamos feito, os obstáculos
que tínhamos ultrapassado, a persistência – e por que não a teimosia – em que
nos tínhamos empenhado para alcançar o objectivo tão almejado: ter um filho nosso,
como se fora carne da nossa carne, sangue do nosso sangue.
Uma vez mais o Frederico acompanhava-nos e tentava sossegar-nos
com o carinho e a gentileza que nele eram habituais. Nunca poderia
agradecer-lhe tudo o que estava a fazer por nós e obviamente a Maria Rita
também. Fora preciso “fintá-lo” para aquela fuga isolado mas eu precisava de
estar só para conversar comigo mesmo no solilóquio onde a verdade tinha de impor-se
num jogo de tudo-ou-nada. Nem à minha esposa dera conta dessa minha decisão. E
estava de volta não completamente convencido de que encontrara o caminho certo
ainda que estava perto, muito perto de o fazer.
Por outro lado, no Brasil desenrolara-se um romance inesperado. A
Leonor encontrara entre os outros voluntários um médico natural da cidade de Malaca
na Malásia, mais propriamente no Kampung
Portugis ou seja o Bairro Português
chamado Patrick Silva que tinha sido Regedor
do bairro (assim dizia nos seus antigos cartões de visita) e só depois se
formara já em Portugal na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Apaixonaram-se e tinham decidido casar-se na igreja do bairro português durante
as Festas di San Pedro e di San Juang as maiores que ali
decorrem.
E assim tinha acontecido. Toda a família voou para lá, foi um
evento magnifico que durou uma semana com um ritual antigo respeitando a
tradição aliás de acordo com o tio Jaime que estivera em Damão o papiá que ali
se fala é muito semelhante e os usos e costumes também. Os padrinhos vão buscar
a noiva a casa dos pais (ali por empréstimo…) levam-na à casa dos pais do noivo
onde ele não a pode ver e só depois de dois dias se vão encontrar já no templo.
Meteu um copo de água (o Frederico que foi o padrinho da mana Leonor sugeriu
que seria melhor dizer muitos copos de vinho…e outros) leitões e muito peixe
tudo assado envolvido em folhas de bananeira. A principal ocupação dos "portugueses" é a pesca. Claro, tinha de ser o mar, sempre presente. Pareceu-me que estava o bairro
inteiro, pois os participantes eram mais que muitos…
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É ver os trajes regionais... |
Boas recordações, até a Maria Rita, eu, a mãe, os tios Elsa, Jaime
e Miguel andámos a cantar e dançar o vira, a chula, o malhão e o corridinho com
os ranchos folclóricos locais que se exibiram em honra dos noivos. È preciso r
até ao Oriente para ver o prestígio angariado pelos portugueses do antigamente.
Por cá não se faz a menor ideia do verdadeiro patriotismo de gente que nunca
veio a Portugal mas que se considera “portuguesa”! O discurso de abertura da
festa esteve a cargo do “patriarca” da comunidade, o Sr. George Bosco Lázaro, com 82 anos que falou no
português mais ou menos arcaico difícil de entender para nós, mas valeu, como é
uso dizer, a intenção. O mais comovente foi que antes de ele perorar foi cantada a “Portuguesa”. Chegaram-me
as lágrimas aos olhos. Não é vergonha um homem chorar!
Voltei à realidade quando o smartfone tocou. Como ia em alta-voz
ouvi a Maria Rita: “Meu querido: Está
feito! Já temos o nosso menino” Só temos de esperar mais dois, três meses para que saia da
incubadora e levá-lo para casa, para a nossa casa!”
Só pude responder-lhe
por entre um soluço de contentamento: “Meu amor, parabéns, parabéns aos dois e ao nosso filho…”
(Continua)