2023-08-10

 



Eu matei um branco...

 

*Quando no musseque acontece a maka

 

Antunes Ferreira

Acabei de publicar o post que se segue:

Em Luanda, nos tempos do antigamente, ou seja, no regime colonial (que o salazarismo rotulara de “ultramarino” …) os musseques envolviam a capital, mas dela fazendo parte, tal como os afilhados paupérrimos dependem dos padrinhos riquíssimos. Nesses bairros habitavam maioritariamente pretos (como então se dizia, hoje politicamente correcto negros) quantos (minoritários) brancos moravam lá, especialmente uns poucos donos de comércios gerais, desde a caixa de fósforos até à fuba de yuca (mandioca em dialecto angolano) cuja farinha é utilizada para preparar o funje (massa parecida com a cola de sapateiro, salvo seja…)?

 

Sambizanga um musseque problemático

Era no Sambizanga, que já lá iam uns bons onze ou doze anos (estava-se em 1978, em plena guerra no mato), que o Adão Ngunza, com a ajuda de uns amigos, contruíra a sua casa-de-pau-a-pique, onde vivia com a sua mulher Miquelina – mas, infelizmente, sem filhos. Mas, mesmo assim, davam-se perfeitamente bem. Ele era estucador e com o surto da construção que acontecia em Luanda, não lhe faltava trabalho, enquanto ela era lavadeira de roupa de brancos, médios e ou ricos e até de alguns pretos enriquecidos sabe Deus como… 

 

Quase todas as estórias começam com o tradicional «Era uma vez» e esta não podia passar por tal bordão apenas localizava-la no musseque já referido. Seja-me, agora, o momento asado, para apresentar outra das personagens que têm lugar proeminente no desenrolar do estranhíssimo evento; trata-se do comerciante português Manel Videirinho, 56 anos, viúvo, natural de  

Freixo de espada à cinta; uma vila (melhor dizendo; um município);  onde os homens que não trabalham nas leiras próprias ou nos dos vizinhos; os «patrões», na farmácia «Boa Saúde» do senhor Simplício, que não era farmacêutico, mas desenrascava-se, até dava umas injecções porreiraças, com o ajudante a afiar a agulha numa correia de sapateiro; mas nunca houvera sequer uma inflamação; muito menos uma infecção.  


Brasão de armas do Corpo de 

Intervenção da PSP de Angola

Havia alguns casos problemáticos, e para tentar manter a ordem, se tivesse havido maka, ou prender um qualquer bandido acusado de eventual crime grave, a PSP de Angola só entrava neles em grupo e fortemente armados com automáticas; no que concerne os militares iam de jeep até às bordas dos musseques, seguindo depois a pé armados de G3 em busca de desertores ou de outros crimes militares alegadamente graves. Uma rotina que se repetia quase diariamente. Os moradores olhavam; suspeitosos, tais movimentos das autoridades. Na sua totalidade não compreendiam o porquê que uma ou duas ou mesmo   quantos se contam pelos dedos duma mão levavam ao que consideravam excessos autoritários.

 

Aqui, para que se entenda o intento desta estória, entro eu no palco e vou elucidar por que o faço; tinha desembarcado do navio «Uíge» No porto de Luanda e fora-me apresentar ao comandante da CCS-QG, unidade onde fora colocado, e recebido pelo comandante, capitão do quadro permanente Ricardo Torres Rosa Ornelas. Este esclareceu-me tudo o que eram as minhas funções na unidade e, dados os meus conhecimentos em matérias jurídicas colocou-me (aliás como acontecera no RI1, na Amadora) no «gabinete de Justiça e Abonos de Família». Pedi-lhe autorização para dar uma volta pela Companhia, para me ambientar, ao que ele prontamente acedeu.

Coluna militar em Nambuangongo 
 

Acompanhado pelo oficial de dia (que em meu entender, devia ser oficial de noite…) visitámos as casernas, muito pouco agradáveis, os quartos pra os oficiais, suficiente e para os sargentos, mais ou menos médios, as cozinhas, as instalações sanitárias e o quarto (se assim se pode chamar) para o oficial de dia e para o oficial de prevenção. E o alferes miliciano, Justino Manuel da Rocha Silva, comentou para mim: «E tens muita sorte, podias ir parar no mato; eu, antes de vir par cá estive onze meses entre Zala e Nambuangongo! Foda-se! Está tudo terminado; como diria um guia duma agência de turismo: «Demos uma visita guiada pela Companhia de Comando e Serviços do Quartel-General de Angola…».

 

Vai daí, perguntei-lhe: «É tudo? Não há prisão?» Justino arregalou os olhos, decerto nunca lhe haviam posto tal pergunta; e meio encabulado: «Temos uma enxovia e só com um preso… creio que não queiras visitá-lo?» No entanto, eu queria, e lá fomos. Era um antro escalavrado, de uma única frincha gravada de barras metálicas enxofradas, no meio de paredes escuras ponteadas de grafites estranhas, a preto, com um chão tão sujo como os muros. E no meio daquela merda estava acocorado no chão, um preto vestindo apenas uns calções (que deveriam ter sido cor de cáqui, mas agora semelhavam trapos de limpar qualquer coisa) Ao ver-nos, levantou-se, devia ter mais dum metro e noventa, sujíssimo, um cabelo e umas barbas patriarcais, e sem dizer palavra fez uma continência certa.

 

Estou preso porque matei um branco...

Ignorando o Justino, perguntei-lhe: «Como te chamas? Qual é a tua unidade? Há quanto tempo estás qui? E por que motivo estás preso?» Respondeu-me de imediato: «Estou preso porque eu matei um branco. A minha unidade era o RIL. Chamo-me Adão Ngunza e estou aqui pra cima de treze meses. O meu tenente quer saber mais alguma maka?» Apenas lhe respondi que ia analisar o caso e iria dar-lhe conhecimento do que se estaria a passar. Porém, ordenei-lhe que saísse dali, fosse tomar muitos banhos, cortar o cabelo e a barba, fosse ao depósito da Intendência, buscar pares de roupa interior, fardas, cinturões, botas e boinas, e só depois de apresentável se apresentaria no meu Gabinete.

 

O Justino, espantadíssimo foi a passo de corrida ao gabinete do capitão Rosa Ornelas com quem esteve reunido mais de uma hora. Entrementes, um novo Ngunza aparecia-me junto à porta do meu estaminé, bateu-me a continência e perguntou: «Meu tenente, apresenta-se o soldado 20789/75, Adão Ngunza. Posso entrar?» Mirei-o de alto a baixo – impecável. Mal podia acreditar. «Podes, sim, faz o favor de entrar.» Assim o fez, mantendo-se num hirto sentido ao que lhe disse «Podes estar à vontade; para já ficas ao serviço, como ordenança, deste gabinete. Quero-te aqui todos os dias da semana, menos aos domingos, às sete horas da manhã que é mais fresquinho. É o que eu faço. Agora, deves ter muitas coisas a tratar, por exemplo com a tua mulher, pois não tens filhos. Vai para o Sambizanga e até amanhã.»

 

«Sem escolta, meu tenente?» «Não te vais pirar, portanto, segue sozinho; como já te disse, até amanhã.» Mal o Ngunza fez meia-volta entrou-me, afobado, o Justino: «O nosso comandante quer falar contigo e já!» Fingi arrumar uns papeis que havia na minha secretária e disse-lhe: «Mas que puta de pressa! Se a mãe dele esperou nove meses para o por no Mundo, bem pode o nosso capitão esperar por mim uns momentos, enquanto eu arrumo esta papelada.» Justino, embasbacado, sem palavras, engoliu em seco: «Tu é que sabes as linhas com que te coses…» e saiu. Tirei-me dos meus cuidados e lá fui ao meu destino.

 

Bati à porta do gabinete do comandante e de dentro veio uma voz autoritária: «Entre!» Entrei e quase me fugiu a língua para lhe atirar «um faz favor caía bem…», mas contive-me. O capitão Rosa Ornelas a quem fiz a continência e me mantive em sentido, não me disse o tradicional «À vontade.» Entrou logo a matar: «Então o tenente Rocha Fernandes, acabado de chegar da metrópole, instala-se aqui, e sem mais nem menos, começa logo a dar ordens sem o meu prévio conhecimento. Mas que raio de oficial da Polícia Judiciária Militar, com responsabilidades a dobrar, julga que pode fazer?»


Se Maomé  não vai à montanha..

Comecei a explicar-lhe o acontecido e, seguindo as minhas palavras, só então me convidou a sentar-me num dos sofás que ali tinha. Quando terminei, «E agora, Rocha Fernandes, qual vai ser a sua próxima diligência? E, entretanto, toma um uísque comigo? Com gelo, sem ou com água com soda?» Parecia-me, com o uísque com soda, que estava enterrado o machado de guerra dos Sioux. E afirmei-lhe, convictamente, que iria reabrir o auto de corpo de delito. «Aí é que está o engulho, o processo parece ter-se perdido…» Retorqui-lhe que se Maomé não vai à montanha…, ao que, se bem entendi, o Rosa Ornelas não percebeu. «Vou ao Tribunal Militar, julgo que ao II, que é mesmo aqui ao lado, tenho lá um amigo de Vila Nova da Cerveira e tento, com a ajuda dele, pescar alguma merda.»

 

«Pois, ó Jacinto, dê cá um abraço, isto foi um mal-entendido, e desejo-lhe a maior sorte do Mundo! E, se faz favor, vá dando-me conta do que acontecer.» Estava lançada a primeira pedra dum edifício. Que se viria a revelar extremamente complicado. Mas no II Tribunal Militar de Luanda, por artes de berliques e berloques e com o auxílio do furriel miliciano Manel Caracol, (um alentejano de Beja) consegui descobrir o malvado do processo «esquecido» no fundo duma gaveta. Por ele pude aperceber-me do que realmente se passara, o qué, aliás, confirmei com as declarações do Ngunza a quem fiz as perguntas a que me respondeu exactamente com os termos do processo.

 

De acordo com o prometido (e o prometido é devido) relatei tudo ao Rosa Ornelas, que não se cansava de me felicitar. E fora assim: «No Sambizanga, o comerciante Manel Videirinho andava a galar a Miquelina, a mulher do Adão Ngunza. Ela dava-lhe com os pés. Contudo, numa tarde de Verão, um mormaço, aproveitando que o Adão estava de serviço no RIL, Videirinho entrou pela casa-d-pau-a-pique e quis-se pôr em cima da Miquelina. Mas, ó sorte bastarda, o Ngunza saíra mais cedo e deu com a cena. O comerciante, apanhado com as calças em baixo, ainda quis revidar, mas o soldado agarrou num banco de pau e deu-lho na cachimónia. O gajo caiu logo, morto, jorrando sangue e miolos. O Adão foi entregar-se na unidade mais próxima, a CCS/QG!» O resto estava tudo dito e escrito.

 

Gabriela e Nacib na telenovela «Gabriela, 

Cravo e Canela». Os deputados da Assembleia 

da República interrompiam os trabalhos 

para assistir a ela...

Resumindo e concluindo: o Adão Ngunza foi a julgamento e dadas as circunstâncias, foi absolvido. Tem hoje um rancho de filhos: duas meninas e três rapagões. Fui padrinho deles todos. Resolvi ficar em Luanda e concorri a um lugar no novíssimo supermercado de Luanda, o Jumbo (Pão de Açúcar), da propriedade da SUPA (Super Mercados de Angola) do português Valentim dos Santos Diniz, radicado há muitos anos no Brasil. Continuo solteiro, mas tenho um «arranjinho» com uma mulata que, como dizia o saudoso Garrincha «a cara faz parar o tráfego!», chama-se ela Gabriela, mas não é a do Jorge Amado, nem tem cravo e canela.