VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN - 24
Maldito
o toro
verdadeiro
assassino!
Antunes Ferreira
Era uma sexta-feira, 13 negra como um tição e
eu tentava encontrar antes do mais explicação para o azar que costuma ser
associado à data. E estava a pensar qual teria sido a sua origem. Alguns diziam
que esta ligada ao cristianismo pois a última ceia de Jesus com os seus 12
discípulos resultava em 13 à mesa e era uma sexta-feira. Outros ligavam-na a
uma história de origem nórdica, onde o deus Odin teria realizado um banquete e
convidara outras doze divindades. Loki, deus da discórdia e do fogo, que não
teria sido convidado para reunião, ao ficar ao saber do banquete, armou uma
confusão que terminou com a morte de um dos convidados. Diz a superstição que
um encontro com 13 pessoas sempre termina em tragédia. E caindo a sexta-feira,
nem pensar quanto mais falar.
Uma prática repetida ano após ano era usar uma
árvore verdadeira, um abeto nórdico nada de plástico como os que se vendiam nas
grandes superfícies, nas lojas dos chineses, por toda a parte. Falcatruas
embelezadas. Havia quem utilizasse pinheiros mansos mas não era a mesma coisa.
Na Quinta dos Anjos, que o tio Miguel possuía ali junto a Seia há muitos,
muitos, muitíssimos anos, talvez mais de um século, tinham sido plantados
abetos que se davam bem com o clima. E logo que chegava o Natal, o meu pai ia
lá com uma camioneta da tropa cortar um e trazia-o para a nossa casa onde era
enfeitado com todos os requintes. Normalmente levava dois soldados para o
ajudar.
É terrível, é horrível! |
A mãe Fátima quando me aproximei dela disse-me
logo que eu vinha com cara de caso e pediu-me para não lhe esconder nada porque
alguma coisa tinha acontecido e pelo que lia nas minhas faces era ocorrência
gravíssima. (Como é que as mães pressentem que algo mal se passa com os filhos? Sexto sentido maternal?) Perante isto não tinha outra alternativa senão proceder como o tio
Miguel me recomendara, mas ela não foi nisso. “Frederico, as consequências desse desastre devem ter sido calamitosas.
De tanto sofrer ao longo da minha vida fui-me habituando às piores notícias.
Houve mortes e feridos?”
Não podia refugiar-me no talvez ou no nim, por
isso tive de optar pela verdade respondendo-lhe pela afirmativa mas era preciso
esperar tão pacientemente quanto fosse possível pelos esclarecimentos que
depois o tio Miguel, tal como me prometera nos iria dar. Entrementes telefonei
ao David e ao Olegário tendo-os posto ao corrente do que já sabia. Duas horas
depois chegou o tio Jaime, pois o tio Miguel ficara no local do acidente para
prestar declarações às autoridades e acompanhar as diligências que estavam a
decorrer. Tinham comparecido os Bombeiros Voluntários de Seia com um desencarcerador, o INEM, uma VMER, a Guarda
Republicana e depois um magistrado do Ministério Público.
Mas que se passara e como se encontravam os
ocupantes da viatura sinistrada? – era a pergunta que todos nós fazíamos ao
mesmo tempo embaralhando o pobre tio Jaime que já de si vinha engasgado, pelo
que pediu “Por favor fale um de cada vez,
senão não consigo dizer nada!...” Amansados
um tanto, acalmados não, como seria possível? Ele passou a relatar tão
pausadamente quanto lhe foi possível: “Íamos
a subir para Seia, o Armando à frente e nós atrás e tudo ia nos conformes.
Adiante do Armando ia um camião carregadíssimo de toros de madeira quiçá de
pinho ou de eucalipto, mas muito grossos. De repente vimos espantados o camião
dar uma guinada talvez para escapar de outra viatura, a mim pareceu-me uma VAN,
não garanto, já caíra a noite e chovia muito.”
Espalhando-se pela estrada!... |
Expectantes
quase nem respirávamos, o que mais me impressionava era a aparente serenidade e
conformação da mãe e ele prosseguia: “Os
toros talvez mal presos, sabe-se lá, soltaram-se e disparam-se quais projécteis
para trás enquanto outros se espalhavam pela estrada num trovão medonho! Um
deles entrou pelo para-brisas do carro do Armando levou tudo à frente e ficou
atravessando o automóvel saindo pelo vidro traseiro. Maldito toro verdadeiro assassino! A Maria Rita que
naturalmente ia no lugar do pendura e o Gilbertinho que ia no banco traseiro,
mesmo atrás dela nem souberam que tinham morrido. Foi melhor assim, Deus me
perdoe, ao menos não sofreram para morrer…”
Não me consegui conter: “E o Armando?” O tio Jaime pôs as mãos em jeito de oração: “Graças a Deus ainda existem milagres e
este foi um deles. Do tremendo impacto, mas graças ao airbag pelo que o médico
da VMER disse após a primeira observação no local tinha umas costelas partidas
bem como os dois braços e uma perna, além de muitas equimoses mas tudo
recuperável. Revelou ainda que o tratamento iria levar o seu tempo, deveria
precisar de uma ou duas operações, mas o diagnóstico definitivo só o poderiam
fazer no Hospital de Santa Maria para onde seria transportado pelo INEM e que
ele o acompanharia na ambulância.”
Dei por mim a matutar enraivecido e dorido:
Mas que raio de Deus é este, dando de barato que exista, se nem a festa do
nascimento do Seu Filho permite que seja comemorada sem problemas?
(Continua)