2018-12-16


VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN - 24

 Maldito

o toro
verdadeiro
assassino!






Antunes Ferreira
Era uma sexta-feira, 13 negra como um tição e eu tentava encontrar antes do mais explicação para o azar que costuma ser associado à data. E estava a pensar qual teria sido a sua origem. Alguns diziam que esta ligada ao cristianismo pois a última ceia de Jesus com os seus 12 discípulos resultava em 13 à mesa e era uma sexta-feira. Outros ligavam-na a uma história de origem nórdica, onde o deus Odin teria realizado um banquete e convidara outras doze divindades. Loki, deus da discórdia e do fogo, que não teria sido convidado para reunião, ao ficar ao saber do banquete, armou uma confusão que terminou com a morte de um dos convidados. Diz a superstição que um encontro com 13 pessoas sempre termina em tragédia. E caindo a sexta-feira, nem pensar quanto mais falar.
 O facto é que a anterior semana tivera todos os ingredientes para se devastadora e só de a recordar ficava muito transtornado e com pele de galinha enquanto suores frios me percorriam e na testa perlavam-me gotas de ansiedade. Costumar dizer-se que depois da tempestade vem a bonança, mas esta não a descortinava e se viesse não seria tão depressa quanto pretendia. Mas afinal o que acontecera? Algo terrível por certo para me causar tão grande comoção. No entanto pressagiava que esta que ia começar não seria melhor e resmoneava o porquê desse pessimismo. Tal como na antiguidade o grego Pytheas que descobrira o Sol da meia-noite fora considerado um mentiroso também eu receava que o que antevia fosse uma hedionda falsidade – mas que afinal se viria a revelar uma verdade cruenta! 
 Cada dia que passava era menos um na contagem decrescente para o Natal e embora os ânimos familiares não estivessem muito inclinados para festas, o 24/25 de Dezembro era sempre especial, tínhamos o hábito de há muito arreigado de juntar à mesa os familiares mais próximos numa convivência que era mais uma comunhão que metia Missa do Galo. À consoada era imprescindível o bacalhau com batatas, couves e ovos cozidos e os fritos da época, coscorões, rabanadas, filhoses, frutos secos e coisas dessas. Para o almoço do dia 25 não podia faltar o peru recheado com uma receita sagrada e “secreta” da Avó Maria do Rosário que ela deixara por testamento à nossa mãe. Naturalmente fazia-se o Presépio e a Árvore de Natal. E, óbvio, havia as prendas.
 
Árvores de Natal
"verdadeiras"
Uma prática repetida ano após ano era usar uma árvore verdadeira, um abeto nórdico nada de plástico como os que se vendiam nas grandes superfícies, nas lojas dos chineses, por toda a parte. Falcatruas embelezadas. Havia quem utilizasse pinheiros mansos mas não era a mesma coisa. Na Quinta dos Anjos, que o tio Miguel possuía ali junto a Seia há muitos, muitos, muitíssimos anos, talvez mais de um século, tinham sido plantados abetos que se davam bem com o clima. E logo que chegava o Natal, o meu pai ia lá com uma camioneta da tropa cortar um e trazia-o para a nossa casa onde era enfeitado com todos os requintes. Normalmente levava dois soldados para o ajudar.
 O mano Armando tomara o encargo, mas agora já não dispunha dos militares e portanto deslocou-se no seu automóvel lá no domingo 15 acompanhado da Maria Rita e do Gilbertinho que parecia ter entrado nos eixos. Os tios Miguel e Jaime seguiam atrás deles numa carrinha de caia aberta para trazer a árvore. Eu tinha ficado em Lisboa pois contava ir visitar a Elena que piorava dia após dia, o que viria a acontecer, aliás sem grande resultado pois a minha mulher continuava amorfa, sem qualquer tipo de reacção tive a certeza de que não me conheceu pois não me ligou nenhuma. Se amarfanhado fora, devastado vinha.
 Já em casa e porque fazia bastante frio – o Instituto Português do Mar e da Atmosfera previa temperaturas muito baixas, queda de neve nas terras altas e possivelmente na zona litoral centro… – acendi a lareira enquanto pensava para com os meus botões que seria muito giro que nevasse em Lisboa. Foi precisamente nessa altura que tocou o meu smartfone e mal atendi logo percebi que acontecera coisa gravíssima. Era o tio Jaime:
É terrível, é horrível!
Frederico, se estás em pé senta-te já! Aconteceu uma grande desgraça, a tua cunhada Maria Rita e o teu sobrinho Gilberto acabam de falecer! É terrível, é horrível! Tens de aguentar e para já não digas nada à tua mãe, ou antes vai preparando-a diz-lhe que aconteceu um enorme desastre na estrada e por enquanto foi o que pudeste saber através de um telefonema que acabaste de receber. Daqui a pouco sigo para casa e então vou tentar explicar a tragédia! E por enquanto por favor não me perguntes mais nada!”

A mãe Fátima quando me aproximei dela disse-me logo que eu vinha com cara de caso e pediu-me para não lhe esconder nada porque alguma coisa tinha acontecido e pelo que lia nas minhas faces era ocorrência gravíssima. (Como é que as mães pressentem que algo mal se passa com os filhos? Sexto sentido maternal?)  Perante isto não tinha outra alternativa senão proceder como o tio Miguel me recomendara, mas ela não foi nisso. “Frederico, as consequências desse desastre devem ter sido calamitosas. De tanto sofrer ao longo da minha vida fui-me habituando às piores notícias. Houve mortes e feridos?”

Não podia refugiar-me no talvez ou no nim, por isso tive de optar pela verdade respondendo-lhe pela afirmativa mas era preciso esperar tão pacientemente quanto fosse possível pelos esclarecimentos que depois o tio Miguel, tal como me prometera nos iria dar. Entrementes telefonei ao David e ao Olegário tendo-os posto ao corrente do que já sabia. Duas horas depois chegou o tio Jaime, pois o tio Miguel ficara no local do acidente para prestar declarações às autoridades e acompanhar as diligências que estavam a decorrer. Tinham comparecido os Bombeiros Voluntários de Seia com um desencarcerador, o INEM, uma VMER, a Guarda Republicana e depois um magistrado do Ministério Público.

Mas que se passara e como se encontravam os ocupantes da viatura sinistrada? – era a pergunta que todos nós fazíamos ao mesmo tempo embaralhando o pobre tio Jaime que já de si vinha engasgado, pelo que pediu “Por favor fale um de cada vez, senão não consigo dizer nada!...”  Amansados um tanto, acalmados não, como seria possível? Ele passou a relatar tão pausadamente quanto lhe foi possível: “Íamos a subir para Seia, o Armando à frente e nós atrás e tudo ia nos conformes. Adiante do Armando ia um camião carregadíssimo de toros de madeira quiçá de pinho ou de eucalipto, mas muito grossos. De repente vimos espantados o camião dar uma guinada talvez para escapar de outra viatura, a mim pareceu-me uma VAN, não garanto, já caíra a noite e chovia muito.”


Espalhando-se pela estrada!...

Expectantes quase nem respirávamos, o que mais me impressionava era a aparente serenidade e conformação da mãe e ele prosseguia: “Os toros talvez mal presos, sabe-se lá, soltaram-se e disparam-se quais projécteis para trás enquanto outros se espalhavam pela estrada num trovão medonho! Um deles entrou pelo para-brisas do carro do Armando levou tudo à frente e ficou atravessando o automóvel saindo pelo vidro traseiro. Maldito toro verdadeiro assassino! A Maria Rita que naturalmente ia no lugar do pendura e o Gilbertinho que ia no banco traseiro, mesmo atrás dela nem souberam que tinham morrido. Foi melhor assim, Deus me perdoe, ao menos não sofreram para morrer…”

Não me consegui conter: “E o Armando?” O tio Jaime pôs as mãos em jeito de oração: “Graças a Deus ainda existem milagres e este foi um deles. Do tremendo impacto, mas graças ao airbag pelo que o médico da VMER disse após a primeira observação no local tinha umas costelas partidas bem como os dois braços e uma perna, além de muitas equimoses mas tudo recuperável. Revelou ainda que o tratamento iria levar o seu tempo, deveria precisar de uma ou duas operações, mas o diagnóstico definitivo só o poderiam fazer no Hospital de Santa Maria para onde seria transportado pelo INEM e que ele o acompanharia na ambulância.”

Dei por mim a matutar enraivecido e dorido: Mas que raio de Deus é este, dando de barato que exista, se nem a festa do nascimento do Seu Filho permite que seja comemorada sem problemas?
(Continua)