2023-08-15

 

Um puto muito especial

*Do «Marco do Correio» à degolação

Antunes Ferreira

Querem que vos conte uma estória? Se me disserem que não, estou-me marimbando pois vou contá-la – sem espinhas. Sem favor, têm de se ir habituando, porque foi assim que, entre lençóis, os meus pais me produziram sem licença industrial. Chamo-me Henrique Armando Antunes Ferreira e a origem deste onomástico resulta da agregação do nome dos meus falecidos pai e padrinho: Henrique Silva Ferreira e Armando Antunes (irmão da minha mãe, Glória). Portanto Henrique Armando Antunes Ferreira. Donde, o «nome de guerra»: Antunes Ferreira. Meia-volta, volver, em frente, marche! – berra os oficiais e sargentos para os soldados devidamente organizados; nesta estória, eu sou um pelotão com um puto só. Vigarice.


O Telefunken comprado na Alemanha

Andava eu entre os seis e os dez anos, frequentava a escola Mouzinho da Silveira (1) desde a primeira até à quarta classes, era considerado um bom aluno – mas tinha o meu «violino de Ingres»: adorava música, e, em especial, cantar. Sem falsos ou petulâncias, as pessoas diziam que eu tinha uma bela voz e um ouvido sensível; e eu concordava e quase aos 82 anos (comemoro-os a 20 de Setembro) continuo a concordar… Pois, logo aos sete anos, ouvia com redobrada atenção tudo o que tinha o timbre musical num radiotelefonia Telefunken que o meu progenitor tinha comprado na Alemanha Ocidental, quando ali se deslocara em serviço profissional, pago pela FNPT (Federação Nacional dos Produtores de Trigo) empresa corporativa onde ele trabalhava.




Alberto Ribeiro - brilhantina e bigode tira-linhas

Esse Telefunken teve par mim uma enorme influência. Era com ele que eu passava os meus tempos livres (que eram bastantes e bons…) a ouvir todas as espécies de cantigas e canções, das quais, não sei porquê, me caiu no goto: o «Marco do Correio» interpretada por um cantor chamado Alberto Ribeiro, que tinha atrás dele um ror de miúdas. Era um tipo bem alinhavado, todo brilhantina e bigode tira-linhas. Nos espectáculos ao vivo, usava um smoking branco e sapatos de verniz. Donde, a multidão de jovens que, mais do que o aplaudiam, o adoravam! [(Dizia o meu padrinho que o «devoravam»); a propósito do primeiro-sargento Armando Antunes, foi ele que me inoculou o sportinguismo!]

Nesta altura, é absolutamente necessário divulgar-vos que de tanto ouvir a deliciosa canção, até a memorizei. E com tinham surgido dúvidas, na antevéspera do Natal, que sempre se comemorava  n nossa casa, eu, todo aperaltado, blazer azul de malha tricotado pela minha mãe, empertigadíssimo, disparei: 


... de portinha ao centro...

«Marco do Correio / De portinha ao centro / Não sabes, eu creio / O que tens lá dentro / Quantas raivas e desejos / Mil respostas e perguntas / Quantas saudades e beijos / E quantas lágrimas juntas / Marco do correio / Deixa-me espreitar / Deixa que eu não leio / Nem vou divulgar / Vá lá, não fiques zangado / Deixa-me ver por favor / A carta que tens ao lado / A carta do meu amor…» Foi um sucesso! A família bateu palmas (excepto as «madamas» que estavam na cozinha a preparar o peru, as massas para as filhoses e a minha tia Lurdes (Que formidável doceira!) a juntar os ingredientes para fazer o bolo-rei.

Numa estória há que localizar onde acontece. Morávamos na rua Filipe da Mata (2), 122, 2º. Esqd. No Dtº. morava a família Pombo: o seu chefe era o tenente bacalhoeiro, imediato do lugre «Santa Maria». A sua esposa, donda Lucinda Adélia Melo Pombo e duas filhas, a Alice Maria Melo Pombo e a Genoveva «Veva» Melo Pombo. A Alice, dada a excelente vizinhança entre nós e eles, fora minha madrinha e eu, quando começara a tentar falar, chamei-lhe (por que bulas?) Cáquica. E assim ficou. Para a Cáquica eu era o suprassumo, o Menino Jesus ressonando nas palhinhas. Fazia-me tudo o que eu que eu queria, desde os passeios ao Campo Grande até às visitas ao Jardim Zoológico. Eu era, então, o «menino nas mãos da bruxa» (salvo seja, que de feiticeira, Cáquica era um zero…)

O nosso prédio tinha cave, rés-do-chão dois andares com esquerdo e direito,  no terceiro havia só um apartamento onde habitava o capitão de Engenharia, retirado, Francisco Figueiredo Albuquerque  de Gouveia Mascarenhas y Constâncio, tinha pinta de nobre de ascendência espanhola e de pertencer aos quadros da PIDE... Perante tais insinuações, ele ficava de boca calada e sorri melifluamente. Comentva-se pela rua que era a «maneira sacana» de responder «sim». Também corria à boca pequena: «Cuidado, muito cuidado, que ele é, pelo menos, informador, pois quando sai da casa é para  escutar o que dizemos. Portanto, nada de falatórios!



Um gira-discos com rádio...

Eu gozava as Férias de Verão, longuíssimas; o meu irmão Braz era um miúdo maroto, mas de feitio bom; era dois nos mais novo do que eu. Pregava partidas com piada, mas inocentes. Com ele não podia alargar o clube de fãs do «Marco do Correio». Por isso, quando o capitão Albuquerque (nome pelo qual era o nome mais conhecido), tocou a campainha da nossa casa, eu, que estava sozinho a abri, deparei com ele que me sorriu e me propôs: («Menino Rico, siei que gosta de música e até de cantar. Por isso, venho convidá-lo a subir ao meu apartamento, pois tenho lá uma grande colecção de discos e o gira-discos-com-rádio, a fim de poder escolher e ouvir os seus preferidos. E como sei da sua predisposição pelo «Marco do Correio» tenho-o interpretado pelo Alberto Ribeiro que autografou a capa do disco, pois somos amigos.)

Convite aceite subimos ao apartamento do oficial e logo ele pôs o gira-discos a tocar o «Marco do Correio»; mas, eis senão quando eu senti que o Albuquerque tentava meter a mão dele na minha braguilha. Dei um salto e (porque aprenda na escola tudo no calão e nas asneiras pornográficas) gritei-lhe: «Ó seu cabrão, julga que isto é o-da-joana! Não me abuse! Vou contar em todo o prédio esta tentativa de merda!!!» Ele tentou ameaçar-me, dizendo que me metia numa grande alhada e que tomasse cuidado, pois ele era da PIDE!



Hospital de São José onde trabalha a Drª. Frederica 

Já nem o ouvia quando desci a quatro e quatro degraus, emocionadíssimo, com lágrimas a correrem-me pelas faces, vermelho como um pimentão, enfim, totalmente fod… ups, lixado! Parei à porta dos vizinhos de baixo (ele, o major Luís Rebelo Cartaxo, a esposa, médica generalista no Hospital de São José, de seu nome Frederica Lúcia da Costa Cartaxo e o filho, Aníbal João da Costa Cartaxo, estudante universitário de energia eólica) em casados quais tinha deixado, por uma tarde, o meu irmão Braz e toquei na campainha. Quem me atendeu foi a Drª. Frederica, que, ao ver-me naquele estado me mandou entrar, sentar-me num sofá, tentar descontrair-me e depois foi buscar-me um copo de água bem gelada, tirada do frigorifico, e trazia na mão uma embalagem individual com uma cápsula.

A custo sosseguei-me e a doutora, vendo-me, mais ou menos acalmado, perguntou-me qual seria o motivo da excitação que me trouxera à casa dela e dos seus familiares. Contei-lhe tintim-por-tintim o que se passara no aparamento do Albuquerque, inclusive o teor da minha resposta. A doutora Frederica abri os olhos e a boca, tal foi o espanto sobre o que eu acabara de contar. Porém, acrescentou: «Já me tinham chegado «coisas» de que ele recebia, com alguma frequência, diversos sujeitos e que, por isso devia ser «invertido»; agora «pedófilo» para mim é um espanto!!!

E continuou: «O meu marido está colocado no Quartel-Geral da Sub-região de Lisboa; vou relatar-lhe a tua odisseia para que ele possa tomar as diligências necessárias e URGENTES a fim de ser levantado um auto de corpo-de-delito contra o capitão que, embora esteja na reserva, continua a ser militar!» Deixei o Braz (que dormia a sua sesta) com ela e preparei-me par começar a minha via sacra, que seria dar conhecimento da sacanice a todo o prédio, tal como afirmara ao delinquente. Esperei na nossa casa pelos meus pais que, quase pela primeira vez, me chatearam: «Nós te tínhamos ordenado para não sair de casa ou da escola com estranhos!  Etc., etc.» Nos outros vizinhos, as tónicas eram a indignação, o nojo e   revolta. O senhor Renato, reformado dum ministério chegou a sugerir um enxurro de porrada ao filho da puta!

 

Bem vestido mas... sem cabeça

Passaram-se dois das, e, do Albuquerque népia.  O sôr Alfredo, que era o nosso porteiro não o tinha visto sair. Estaria doente no apartamento? Mais 24 horas, o relógio de cuco fez cucu-cucu, e o porteiro, que já tocara à campainha e batera energicamente na porta, decidiu chamar um guarda da PSP para que esse testemunhasse que iriam arrombar a maldita porta. E quando entraram de supetão (o polícia, o Alfredo e o Renato) estacaram perante um quadro horripilante: o capitão Francisco Figueiredo Albuquerque de Gouveia Mascarenhas y Constâncio, bem vestido e barbeado, estava sentado, mas… SEM CABEÇA!!!!!!!!! Esta encontrava-se no chão, o meio de uma larga poça de sangue já seco, cheio de vermes e de moscas! Só enão repararam que na parede em frente do cadáver, (já em decomposição, e daí o cheiro nauseabundo que empestava a sala) estava colado um papel A4 onde, a caneta de ponta de feltro gorda, se podia ler: ASSIM MORREM OS TRAIDORES!!!!

O agente da PSP, face à horrível cena, afirmou: «Isto agora já não é comigo, é com a judite. Vou-me embora, mas antes telefonarei para a Pêjota.» Como no prédio havia pucos telefones e o senhor Renato tinha um, foi da casa dele e o tipo da PSP relatou à Judiciária a ocorrência, após o que saiu a assobiar o «Marco do Correio». Eu fui para a cama, no dia seguinte tinha escola. O que se passo, contou-me o sôr Alfredo, enquanto me acompanhava é à Mouzinho da Silveira (1). Umas boas horas depois do telefonema apareceram dois cidadãos eu se identificaram como agentes da Polícia Judiciária, a quem competia (e continua a competir) a averiguação de crimes e mais outras delinquências.

Apresentaram-se: Horácio Fagundes, inspector e António Ramalho, subinspector, antigo sargento de Cavalaria.  O busílis da questão era encontrar os «visitantes» do degolado. Bem procuraram e por todo o apartamento e nada encontravam. Aí entrou na cena o Ramalho: «Como podem ver está ali ao canto, um cofre antigo; pode ser que lá encontremos alguma coisa…» O Horácio Fagundes retorquiu: «Pois, a merda é abri-lo.» De novo o subinspector: «Já lá vão uns anos prendi um tal Manel da Mana, (especialista em cofres). Se o gajo ainda está vivo, pode ser que com uns €€€…»


«Tenho encontrado pior...»

Chamou-se o homem que estava vivíssimo-da-costa – que veio. Trazia uma maleta metálica, onde, certamente guardava as suas ferramentas. O cenário mereceu-lhe um abanar de cabeça negativo «Que negócio! Tenho visto muitas porras, mas, como esta, é a primeira!» Perante o desditoso cofre comentou «Tenho encontrado pior, mas este não é mau; preciso de ficar sozinho para não me distraírem, desculpem-me.»

Três horas depois abriu a porta onde se encontrava o cofre já de porta aberta. «Não foi fácil, nem difícil, é todo vosso!» «Quanto nos custou a sua intervenção miraculosa?» «Pilim, nenhum, mas um uísque simples só com duas padras de gelo caía bem» o «malandro» não gastara tanto na abertura do cofre, também dera uma volta por parte da casa a farejar o que daria de encontrar, e que, futuramente, talvez pudesse «levar». Descobrira uma garrafa de Black Bushmills recém encetada e estava tudo dito. Mas não estava. Bebido e feito.

O recheio do cofre revelou-se a caverna do Ali Babá. No meio de papéis bem arrumados, o Fagundes gritou «Eureca!!» Estava um caderninho de capa preta onde, no seu interior, o ex-capitão organizara três colunas: NOME, MORADAS e CIFRÕES. Estava ali tudo o necessário. Horácio Fagundes, secundado pelo experiente António Ramalho andou a convocar, nome atrás de nome os que constavam do caderninho. Atingiam o desespero, quando chegou, finalmente um advogado, o dr. Martins Henriques, que lhes conta dum «parceiro» chamado Óscar Viana, confesso apaixonado pelo capitão.

Óscar era um do poucos que já fora ouvido, mas apresentara um álibi esfarrapado. De novo presente ante os investigadores, foi-se abaixo: «Sim, fui eu quem o degolou… foi uma traição que ele me fez, amantizando-se com outro, um pasteleiro, vejam só, pasteleiro, pasteleiro, o que o Jorge Costa é, mas é mesmo, um paneleiro. Ir para a cama com um sujeitinho sujo não se faz a um apaixonado, como eu. Levei uma foice bem afiada e deu-me um gozo quando tive de mudar a roupa, pois a primeira estava ensopada de sangue.  E só para terminar este depoimento, não me arrependo do que fiz! Agora, estou, finalmente, feliz.»    

O prometido é devido; o sôr Alfredo foi-me pondo ao corrente de tudo o que se passava. E eu, com dez anos, perguntava-me o que teria a ver una canção como o «Marco do Correio» e uma degolação. Mas tinha. A vida tem cada una, que cada duas são um par...                                                                                                                       

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(1)          José Xavier Mouzinho da Silveira foi um estadista, jurisconsulto e político português e uma das personalidades maiores da revolução liberal, operando, com a sua obra de legislador, algumas das mais profundas modificações institucionais nas áreas da fiscalidade e da justiça. Preso durante a Abrilada, tornou-se intransigente defensor da Carta Constitucional pelo que teve de se exilar em 1828. Regressou ao Parlamento em 1834 para defender a sua obra legislativa, mas exilou-se de novo em 1836. Retirou-se da vida política durante os seus últimos dez anos de vida.       

(2)        Luís Filipe da Mata foi um político republicano, vereador da primeira Câmara Municipal de Lisboa republicana (1908) e deputado e senador no Congresso da República. Também era membro da Maçonaria.