É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO
MONGOLÓIDE – 9
Vem à baila
testamento
Antunes Ferreira
“Empernanço
de pestana”? perguntou-me a Mafalda quando me ouviu pela primeira vez
utilizar a expressão. “Que raio de coisa
é essa?” E a moça carregou o cenho intrigada de maneira que não pude
sustentar uma gargalhada. “Ainda te ris?
Deixa-te de gozos e explica-me direitinho o que queres dizer com essa «coisa»!”
O tom de interrogativo passara a imperativo o que significava que o caldo começava
a entornar-se e uma zanga – aliás a primeira em dez meses de namoro – não
calhava mesmo bem. Deitei água na fervura “Querida
vou-te dizer o que a «coisa» significa. Quando a malta de Direito atravessa o
que chamamos a «terra de ninguém», ou seja o espaço em frente da Reitoria
fazemo-lo para ir ver as miúdas de Letras ou seja vocês.”
Estávamos no Jardim Botânico da Faculdade de Ciências deitados na
relva por trás de um pimenteiro cuja tabuleta ostentava galhardamente Capsicum
L. originária de Angola que dá gindundo ou piripiri muito picante por isso mais
ou menos resguardados de vistas inconvenientes. Mesmo sem a influência do ardor
da malagueta, quer eu quer a minha namorada eramos de sangue bastante quente e
pesquisávamo-nos com alguma ansiedade enquanto trocávamos beijos de línguas
ensarilhadas. Um verdadeiro ponto de rebuçado. As nossas mãos tinham partido à
descoberta dos lugares mais recônditos dos corpos de ambos num frenesim que
mesmo já não sendo novo era sempre entusiasmante. Parámos por momentos e eu
prossegui entre arfar e sem parar as investigações manuais.
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À descoberta dos corpos de ambos |
“Como ali
não podemos amar como aqui estamos a fazer apenas podemos olhar ou seja «comer»
as moças com os olhos, ou seja com as pestanas e fingindo que estamos a usar as
pernas… Percebeste agora, meu amor?” Claro que a Mafalda tinha percebido
pois soltara uma cristalina gargalhada ao que fiz baixinho schiu, cuidado, podem
ouvir-nos e descobrir-nos… Pelo sim pelo não abotoámo-nos, compusemo-nos,
levantámo-nos e saímos com ar de quem tinha feito uma visita científica. Na
relva ficara o testemunho dessa visita… Logo que nos fosse possível iríamos
repetir pois já não dispensávamos as carícias e a excitação.
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1966: as lágrimas do Ósébiu |
Tenho obrigatoriamente de aqui fazer um breve ponto do que se
passou neste interregno e para tanto socorro-me do diário que tinha começado a
fazer quando haviam acontecido os trágicos acontecimentos que me tinham levado
a crescer tanto em tão pouco tempo. E, óbvio, a participação do Frederico nos
que aponto. Muitos foram, mas um com muita piada fora o Mundial de 66 tinha o
miúdo sete aninhos. Seguiu a transmissão televisiva com a maior atenção e
elegeu como herói o Ósébiu. Chorou quando ele chorou após perder o jogo com a
Inglaterra e foi difícil consolá-lo, só um arroz doce lhe aplacou o desconsolo.
Mas foi também que me perguntou, pois continuava a achar que eu
era o seu “chefe” por que razão havia pessoas brancas e pessoas pretas. Lá no
colégio só havia meninos brancos mas haveria meninos pretos, ele dizia
“castanhos”? Pensei em recorrer à História e contar-lhe o que se passara
segundo a Bíblia com a Torre de Babel mas entendi que era muita areia para a
camioneta do maninho. Então falei-lhe das diferenças dos climas entre as terras
e blá blá blá. Ele não ficou muito convencido mas calou-se.
Outro foi o que se passou com o pai Gilberto já neste ano. Foi a
primeira vez que o viu quando a RTP tentou entrevista-lo a propósito do
processo que lhe fora levantado quando saía do Ministério do Exército o que ele
recusara de imediato. Frederico voltou-se para a mãe e disse-lhe aquele senhog é o meu pai, não é? E pogque é
que ele não vive cá em casa? E pogue é que ele não vai buscag eu na escola, os
pai dos outgos meninos vai…
Eu estava presente e não sabia o que dizer, a
mãe também, de repente tocou a campainha da porta e apareceu a Odete Rita a
anunciar que estava lá fora um senhor que nos queria falar e que entregara o
cartão de visita dele onde se lia Tiago Silva Fernandes - Advogado. Salvos pelo gong aliás pela
campainha...
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Vinha trazer o testamento... |
O causídico vinha para dar conhecimento do testamento que o meu
pai fizera antes de partir para nova comissão também na Guiné. Fazia-o por
ordem expressa dele pois declara-lhe eu queria ter a certeza de que a sua
família ficaria bem ciente da sua última vontade dado que ia para um local
muito perigoso e ninguém sabia o que o futuro lhe reservava. E passou a ler o
documento através do qual após as formalidades habituais respeitando as
disposições legais aplicáveis quanto a descendentes directos nomeava seu herdeiro
o filho Frederico Miguel da Costa Saraiva Mendes e dado que era menor seria sua
tutora a mãe Maria de Fátima Lencastre Albergaria Souto e Costa Mendes de quem
estava judicialmente separado.
Chamaram-se a Miquelina e a Odete Rita para assinarem o documento
como testemunhas após a minha mãe o ter feito, os cumprimentos da ordem e o
advogado saiu. Ficámos a olhar uns para os outros. A cozinheira e a criada que
tinham naturalmente lido o texto nem queriam acreditar, mas o senho capitão que ficou tão fodi…, perdão, chateado com o
nascimento do menino Frederico nomeia-o seu herdeiro… disse a Miquelina com
um ar incrédulo até tenho pele de galinha
acrescentou a Odete Rita. A mãe
atalhou: não vale a pena fazer disto uma
tempestade num copo de água. A vida é madrasta, tem destas coisas que por vezes
são difíceis de explicar. Vamos mas é
às nossas vidas. E eu acrescentei. Como
dizia a minha professora da quarta classe, a Dona Clélia, ponto final
parágrafo. Na outra linha.
Fomos para o telefone, cada um à vez é claro, dar a novidade aos
nossos mais chegados. Por último falei com a Mafalda. Depois de me ouvir ficou
um bom bocado calada o que me levou a perguntar-lhe ainda estás aí? Ao que ela me respondeu: o teu pai é um bom pulha, olha amor, aqui para nós que ninguém nos ouve
– a não ser que tenhas o telefone sob escuta pela PIDE – é um bom filho da mãe e eu corrigi esculpa interromper-te, tirando a minha avó,
uma santa senhora, um filho da puta é o que ele é! Mas amanhã vamos até à
Estufa Fria e depois conto-te tudo tin-tin-por-tin-tin… E ela do outro
lado: Só???? E desligou. Raio da
cachopa, que até fiquei com as duas
cabeças no ar…