2018-07-26


É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE – 9

Vem à baila

testamento

Antunes Ferreira
“Empernanço de pestana”? perguntou-me a Mafalda quando me ouviu pela primeira vez utilizar a expressão. “Que raio de coisa é essa?” E a moça carregou o cenho intrigada de maneira que não pude sustentar uma gargalhada. “Ainda te ris? Deixa-te de gozos e explica-me direitinho o que queres dizer com essa «coisa»!” O tom de interrogativo passara a imperativo o que significava que o caldo começava a entornar-se e uma zanga – aliás a primeira em dez meses de namoro – não calhava mesmo bem. Deitei água na fervura “Querida vou-te dizer o que a «coisa» significa. Quando a malta de Direito atravessa o que chamamos a «terra de ninguém», ou seja o espaço em frente da Reitoria fazemo-lo para ir ver as miúdas de Letras ou seja vocês.”

Estávamos no Jardim Botânico da Faculdade de Ciências deitados na relva por trás de um pimenteiro cuja tabuleta ostentava galhardamente Capsicum L. originária de Angola que dá gindundo ou piripiri muito picante por isso mais ou menos resguardados de vistas inconvenientes. Mesmo sem a influência do ardor da malagueta, quer eu quer a minha namorada eramos de sangue bastante quente e pesquisávamo-nos com alguma ansiedade enquanto trocávamos beijos de línguas ensarilhadas. Um verdadeiro ponto de rebuçado. As nossas mãos tinham partido à descoberta dos lugares mais recônditos dos corpos de ambos num frenesim que mesmo já não sendo novo era sempre entusiasmante. Parámos por momentos e eu prossegui entre arfar e sem parar as investigações manuais.

À descoberta dos corpos de ambos


“Como ali não podemos amar como aqui estamos a fazer apenas podemos olhar ou seja «comer» as moças com os olhos, ou seja com as pestanas e fingindo que estamos a usar as pernas… Percebeste agora, meu amor?” Claro que a Mafalda tinha percebido pois soltara uma cristalina gargalhada ao que fiz baixinho schiu, cuidado, podem ouvir-nos e descobrir-nos… Pelo sim pelo não abotoámo-nos, compusemo-nos, levantámo-nos e saímos com ar de quem tinha feito uma visita científica. Na relva ficara o testemunho dessa visita… Logo que nos fosse possível iríamos repetir pois já não dispensávamos as carícias e a excitação.

1966: as lágrimas do Ósébiu

Tenho obrigatoriamente de aqui fazer um breve ponto do que se passou neste interregno e para tanto socorro-me do diário que tinha começado a fazer quando haviam acontecido os trágicos acontecimentos que me tinham levado a crescer tanto em tão pouco tempo. E, óbvio, a participação do Frederico nos que aponto. Muitos foram, mas um com muita piada fora o Mundial de 66 tinha o miúdo sete aninhos. Seguiu a transmissão televisiva com a maior atenção e elegeu como herói o Ósébiu. Chorou quando ele chorou após perder o jogo com a Inglaterra e foi difícil consolá-lo, só um arroz doce lhe aplacou o desconsolo.

Mas foi também que me perguntou, pois continuava a achar que eu era o seu “chefe” por que razão havia pessoas brancas e pessoas pretas. Lá no colégio só havia meninos brancos mas haveria meninos pretos, ele dizia “castanhos”? Pensei em recorrer à História e contar-lhe o que se passara segundo a Bíblia com a Torre de Babel mas entendi que era muita areia para a camioneta do maninho. Então falei-lhe das diferenças dos climas entre as terras e blá blá blá. Ele não ficou muito convencido mas calou-se.

Outro foi o que se passou com o pai Gilberto já neste ano. Foi a primeira vez que o viu quando a RTP tentou entrevista-lo a propósito do processo que lhe fora levantado quando saía do Ministério do Exército o que ele recusara de imediato. Frederico voltou-se para a mãe e disse-lhe aquele senhog é o meu pai, não é? E pogque é que ele não vive cá em casa? E pogue é que ele não vai buscag eu na escola, os pai dos outgos meninos vai…
Vinha trazer o testamento...
Eu estava presente e não sabia o que dizer, a mãe também, de repente tocou a campainha da porta e apareceu a Odete Rita a anunciar que estava lá fora um senhor que nos queria falar e que entregara o cartão de visita dele onde se lia Tiago Silva Fernandes -  Advogado. Salvos pelo gong aliás pela campainha...

O causídico vinha para dar conhecimento do testamento que o meu pai fizera antes de partir para nova comissão também na Guiné. Fazia-o por ordem expressa dele pois declara-lhe eu queria ter a certeza de que a sua família ficaria bem ciente da sua última vontade dado que ia para um local muito perigoso e ninguém sabia o que o futuro lhe reservava. E passou a ler o documento através do qual após as formalidades habituais respeitando as disposições legais aplicáveis quanto a descendentes directos nomeava seu herdeiro o filho Frederico Miguel da Costa Saraiva Mendes e dado que era menor seria sua tutora a mãe Maria de Fátima Lencastre Albergaria Souto e Costa Mendes de quem estava judicialmente separado.

Chamaram-se a Miquelina e a Odete Rita para assinarem o documento como testemunhas após a minha mãe o ter feito, os cumprimentos da ordem e o advogado saiu. Ficámos a olhar uns para os outros. A cozinheira e a criada que tinham naturalmente lido o texto nem queriam acreditar, mas o senho capitão que ficou tão fodi…, perdão, chateado com o nascimento do menino Frederico nomeia-o seu herdeiro… disse a Miquelina com um ar incrédulo até tenho pele de galinha acrescentou a Odete Rita. A mãe atalhou: não vale a pena fazer disto uma tempestade num copo de água. A vida é madrasta, tem destas coisas que por vezes são difíceis de explicar. Vamos mas é às nossas vidas. E eu acrescentei. Como dizia a minha professora da quarta classe, a Dona Clélia, ponto final parágrafo. Na outra linha.

Fomos para o telefone, cada um à vez é claro, dar a novidade aos nossos mais chegados. Por último falei com a Mafalda. Depois de me ouvir ficou um bom bocado calada o que me levou a perguntar-lhe ainda estás aí? Ao que ela me respondeu: o teu pai é um bom pulha, olha amor, aqui para nós que ninguém nos ouve – a não ser que tenhas o telefone sob escuta pela PIDE – é um bom filho da mãe e eu corrigi esculpa interromper-te, tirando a minha avó, uma santa senhora, um filho da puta é o que ele é! Mas amanhã vamos até à Estufa Fria e depois conto-te tudo tin-tin-por-tin-tin… E ela do outro lado: Só???? E desligou. Raio da cachopa, que até  fiquei com as duas cabeças no ar…