2024-10-27

 

 




 Pela primeira vez a tropa

 

Um problema bicudo

 

Antunes Ferreira

Pela madrugada, Jacinto acordou, estremunhado, com o som estridente duma corneta – depois saberia que se tratava de um cornetim, enquanto lhe berravam aos ouvidos. «Levantar, levantar, levantar!!!» e o abanavam violentamente. «Mas que raio???» Ao seu lado um resmungo: «Sacanas!!!». Só então se apercebeu que estava deitado com outros três marmanjos em cima de palhas, numa barraca que momentos após saberia que em linguagem militar era de «três panos»! Estava-se em 1962, um ano depois de ter começado a guerra em Angola.

 


Era o despertar para um exercício nocturno (diziam eles, os mandões), aliás o primeiro entre os muitos que se sucederiam para mal de quê? Dos seus pecados? – perguntava-se Jacinto enquanto atabalhoadamente ia calçando as botas sem polainitos??? também saberia o que eram e para que serviam… e já de pé formava a duas colunas com o Guedes à sua frente e o Martins atrás (salvo seja).

 

Foi então que o alferes que comandava o pelotão mandou: «Firme! Sentido! Armas na bandoleira, terno de garupa, em frente, marche, acelerado!!!» Madrugada fora, de princípio a trote (mas sem cavalo) passando a galope continuado a pé que Jacinto se deu conta de que se encontrava metido num saralho do carilho (modo de falar tipicamente militar que começava a aprender naquela malfadada hora entre a lua que se apaga e o sol que se acende).

 

Pelas cinco da madrugada votaram, esfalfadíssimos, a tempo de satisfazer as necessidades, fazer a barba e ao toque do clarim avançar para o pequeno-almoço: um quarto d pão casqueiro, barrado com margarina, e no copo de alumínio uma mistela que dizia o soldado que a distribuía tirada dum caldeirão. E, ala que se fez tarde, de novo o clarim, uma sessão de GAM – a que o sargento instrutor chamou ginástica de aplicação militar.

 

Sempre com a mesma farpela uma espécie de fato macaco de tecido zuarte que em pouco tempo a malta cognominou «fato de suar». Entrou-se na rotina: de manhã GAM, almoço, de tarde instrução de armas. Jacinto aprendeu – a tropa ensina tudo. Tinha-lhe calhado a arma de cavalaria, mas, como atrás já disse, sem qualquer réstia equestre a não ser um conjunto de correias aplicáveis outrora aos corcéis : o terno de garupa.


 

Conjunto que desde a fatídica madrugada Jacinto passou a usar todos os dias, excepto aos fins-de-semana quando estes não lhe eram cordos porque tina as botas mal engraxadas ou um botão mal pregado na farda de saída.

 

Mas, não ficaria por aqui se não referisse a primeira experiência gastronómica que o nosso soldado-cadete experimentou. Foi ao jantar da primeira noite; dê-se alguma ordem nesta salgalhada militar. Logo no pequeno-almoço as coisas deram um tanto para o torto:  Um café (?) com leite (?) e um quarto de pão casqueiro com um cheiro de margarina. Depois o almoço: carne de vaca – por certo reformada – com cimento, aliás, puré de batata.

 

Entre este menu e o jantar decorrera a instrução de armamento, uma trapalhada, montar e desmontar diversos tipos de armas individuais desde as espingardas Mauser (alemã, do tempo da II Guerra Mundial) até às então novas FN (automáticas, belgas), pistolas-metralhadoras FBP (de fabrico português) e Uzi (produzidas em Israel) pistolas Walther e Parabellum (ambas alemãs).

 

Enfim chegou a hora da janta à luz (?) de Petromax – bacalhau com batatas e grão, supostamente com azeite (óleo) e um ovo cozido para quatro marmanjos/soldados-cadetes. No meio do desalento, a malta ainda tece o desplante de tentar jogar ao berlinde com os grãos, que parecia que nem tinham sido cozidos. O problema, entre gargalhadas, era que os ditos tinham bicos…