2018-12-07

VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN - 20


Antunes Ferreira
O reverso da moeda é quase sempre o negativo e por isso o mais difícil de mostrar; mas o prometido é sempre devido e eu Frederico Saraiva Mendes tinha-me perguntado se deveria começar pelo que de bom acontecera ou pelo contrário pelo mau. Tinha escolhido a primeira premissa  cabia-me então o odioso. Mas, já lá iríamos. Tínhamos de ir por partes porque a encomenda é tamanha que não me permitia avanços desmesurados porque há sempre pedras que parecem nascer nos caminhos que se seguem e é sempre mais fácil e empolgante subir do que cair, sobretudo de escantilhão.

A empresa seguia à bolina manobrada de forma segura comigo ao leme  e o David como piloto, o tio Jaime  encarregado das relações públicas e o Olegário dos contactos com os clientes e os novos para quem passaríamos a trabalhar. Os resultados eram por isso muito satisfatórios e fechadas as contas do primeiro exercício o saldo foi interessante e não teria sido mesmo positivo se não tivesse sido o montante que tínhamos investido no início da actividade. Mesmo assim ficámos satisfeitos e fizemos uma pequena comemoração.

Mas debaixo dos pés se levantam os trabalhos e nesse caso aconteceu o impensável. Não há bela sem senão. O Olegário começou a emagrecer, a definhar e na dava muito cansado. Dizia que era uma gripe muito forte, mas não tinha febre. Ficámos todos preocupados, principalmente e como natural o David. O meu primo iniciou a via sacra de médico para médico de exame em exame e a dada altura surgiram suspeitas de algo grave estava a acontecer. E estava. Estava com SIDA, a terrível síndrome da imunodeficiência adquirida que como se sabe é uma doença do sistema imunológico humano causada pelo virus de imunodeficiência humana (VIH), normalmente transmitida por via sexual mas também por outras acções.

Sangue infectado na Malásia
Ora a fidelidade entre os dois amantes não podia ser posta em causa. Veio entretanto a descobrir-se que fora uma transfusão de sangue a que ele se sujeitara na Malásia onde tivera de baixar a um hospital por ter sofrido um ataque de malária. O hospital negou que tivesse sangue contaminado, mas passados tantos meses e a tamanha  distância como seria possível provar que assim tinha sido? Felizmente que no nosso país que foi considerado pela Organização Mundial de Saúde um caso exemplar neste domínio o meu primo começou logo a ser tratado e ainda continuava a sê-lo.

E que dizer da adopção que a Maria Rita e o Armando  finalmente concretizaram? O sonho que almejaram durante anos tornara-se realidade palpável, o bebé passou a fazer parte da vida deles – e que parte!  – submergindo tudo o que os rodeava, qual eucalipto engolindo a vegetação inerme sugando-lhe a água e assassinando-lhe as raízes. O miúdo fora baptizado com o nome do avô Gilberto e desde que chegara a casa infernizava-lhes as noites. Eu bem os avisava para não o passearem ao colo pelo quarto, mas respondiam sempre que o coitadinho se não tivesse miminhos então quando os haveria de ter? Quando for para a tropa?

Jarra da Vista Alegre

Depois de rolar no berço o puto sentou-se e começou logo a deitar para o chão os brinquedos que pejavam o chão da cama com grade para onde fora transferido. Mas o maior gosto dele era partir tudo, berloque ou urso de peluche que lhe  chegasse às mãozitas rezassem-lhe pela alma  pois eram tiro e queda.  Puseram-no no chão e aí é que foram elas. Primeiro a rastejar, depois a gatinhar objecto onde deitasse a mão era certo e sabido trás e menos uma jarra de loiça de Vista Alegre, um candeeiro indiano em forma de Buda que o tio Jaime trouxera de Damão, uma caixa chinesa com uma bailarina que dançava ao som duma música aliás chata – canecos, vassoura, pá do lixo. E o pior é que o gaiato gostava de fazer mal.

E os papás/avós babosos deixem brincar o menino. Partiu o quê? Há de vir mais. Só a graça que ele encontra nessa brincadeira nos enche de alegria… E eu pensava para mim, não fora o diabo tecê-las umas palmadas no rabo seriam um bom remédio e um aviso: assim o gajo já não mexia onde não podia mexer e não partia o que não podia partir. Mas isso era eu que não era pai e nunca o poderia ser. Se o fosse os filhos fiariam mais fino. O Bertinho (detesto diminutivos, para mim era sempre o Gilberto) tinha mau feitio mesmo quando catraio de fraldas. Mal sabia que este presságio estava correcto!

Sem legenda


Foi um dilúvio de lágrimas sem arca nem Noé quando o seu menino foi para creche e depois para o Jardim de Infância. A Maria Rita e a avó Maria de Fátima encarregaram-se de abastecer as glândulas lacrimais e destapa-las em quantidades inauditas… E logo começaram os problemas, Nos primeiros dias o meu irmão ia busca-lo e a coisa corria bem. Mas passada uma semana a directora pediu-lhe para no dia seguinte vir preparado para falar com ela. Assim aconteceu e fui uma conversa complicada. O Gilberto, nos seus quase quatro anos era uma criança problemática, começou a Dr.ª Josefina Martins.

Armando estava muito abananado quando me contava o funesto encontro com ela pois que tinha passado por momentos muito difíceis ao ouvir o que a Senhora tinha para lhe dizer e até que ficara envergonhado face às afirmações que ouvia. Explicou-me. A directora começara por lhe pedir desculpa pelo incómodo que lhe causara com o pedido de ali se deslocar mas não havia outra maneira de colocar o problema porque era daqueles que não se podiam tratar pelo telefone.

“Compreendes Frederico que logo ali eu arrebitei as orelhas e fiquei de pé atrás; mas que raio de começo de conversa… O que se seguiria? Tás a ver a minha inquietação?” Óbvio que estava, por isso nem precisei de lhe dizer para continuar porque o meu irmão não se detivera.  “Sr. Coronel, o vosso filho é um miúdo muito inteligente, muito esperto, mas infelizmente também é de muito mau feitio. E por favor, não me interrompa. Eu sou muito frontal, sou pão, pão, queijo, queijo, e tenho de lhe dizer isto, o Gilberto é vingativo, é agressivo, é implicativo, é autoritário!”

Levara doze pontos!


Eu, Frederico Saraiva Mendes, só pude perguntar-lhe se ela dera exemplos do que apontara, ao que o Armando fez que sim com a cabeça e indicou que o filho/neto por dá cá aquela palha ou mesmo sem qualquer motivo batia nos outros putos, mordia-os, arranhava-os, rasgava-lhes os cadernos e os desenhos, borrava-os, riscava-os com tamanha ferocidade que chegava a rasgar o papel! E não contente com isso fora ao armário onde se guardavam os materiais de limpeza e com um pau de vassoura agredira uma menina na cabeça de tal forma que ela tivera de ser levada ao hospital onde levara doze pontos!

Daí que ela directora não via outra saída se não os pais retirarem o Gilberto do Jardim Escola “voluntariamente”; a não ser assim passariam pela vergonha da criança ser expulsa pelos motivos que ela acabava de lhe apresentar. O que seria uma escandaleira! “Não tive outro remédio, Frederico. Agora, o maior problema é, antes de tudo, contar à Maria Rita, à mãe e à família mais chegada o que se está a passar. Depois procurar uma nova instituição para o colocar. Estou fodido!” Quis perguntar-lhe – o que para mim parecia o mais importante – como iria proceder como o Gilberto. Mas, para quê? Já sabia que tudo ficaria em águas de bacalhau!
(Continua)