*Guarda-fatos um lugar de
corrupção
Antunes Ferreira
Revolta.
José Joaquim Mendes Rocha, onze anos, aluno bem-comportado, notas médias,
frequentava a Escola Secundária Miguel Torga, safava-se no Inglês., mas o que
não aparava eram os ataques descabelados contra o eu idolatrado Cristiano
Ronaldo. Até já andara à pera com o Manel Costa, três anos mais velho do que
ele (e não se saíra mal de todo, apenas um olho negro e uns arranhões sem
importância, mas o sacana também levara para contar) depois dele ter dito
cobras e lagartos sobre o melhor do Mundo.
Porém
agora tinha havido aquela merda no Qatar, a selecção voltara com o rabo entre
as pernas, tudo por causa do Fernando Santos que deixara no banco o Cristiano,
colocando em seu lugar um tal Gonçalo Ramos – que, aliás não se portara mal,
com um hat trick contra a Suíça – quando no seu entender deviam alinhar os dois
juntos! Mas ir busca-lo ao banco como barco de salvação dera o que dera: um
regresso miserável com palmadinhas nas costas à guisa d prémio de consolação.
Foda-se!
O pai, Joaquim Gonçalves Martins, que era delegado de saúde
dos Ultrapharma passava a semana e por vezes quinze dias fora de casa e era a
esposa, Laurinda, que acompanhava o Quim Zé no dia-a-dia e principalmente no
estudo. Era uma balzaquiana, 34 anos, loira oxigenada, um pedação de mulher que fora balconista
no El Corte Inglés que deixara par casar com o Joaquim Martins.
Diziam
as colegas – há sempre lingas viperinas e mal-intencionadas, invejosas,
ciumentas ou puramente maldosas especialmente nos locais de trabalho – que já
ia prenha do chefe da secção. Mas, pelos visos, Joaquim não ligara e tinham
casado n igreja de São João de Deus, ali na Praça de Londres, ela vestida de
branco com um raminho de rosas branca, ele de fato preto e gravata cinzenta.
Sete
meses depois na “fábrica d crianços”, a Alfredo da Costa, nascera um pimpolho, “prematuro”,
mas tão perfeito no acabamento que nem necessitara de incubadora: o Quim Zé.
Católicos praticantes, missas dominicais, naturalmente o gaiato fora educado
dentro dos princípios cristãos. Obviamente também neste particular acompanhado
pela mãe Aurélia.
Aqui começa
a cena negra desta estória onde reina o sossego e a felicidade – exceptuando o
desassossego do filho perante os ataques ao seu ídolo futebolístico – que
decorreu junto uma gondola do supermercado onde a Laurinda habitualmente se
abastecia. Estava ela em bicos d pés a tentar alcançar uma embalagem de
edulcorantes em pó na prateleira de cima e não conseguia chegar lá quando
aconteceu o imprevisto.
Um jovem cavalheiro, alto e desempenhado, ali ao lado, adiantou-se
e perguntou-lhe o que desejava. Laurinda respondeu-lhe com um meio sorriso, que
não usava o açúcar por isso pretendia agarrar o pacote grande do Hermesetas. “Com
certeza.” Falou o sujeito que estendeu o braço, retirou o produto e
entregou-o à Laurinda: “Sempre que precisar de qualquer coisa é só contactar-me.”
E entregou-lhe u cartão d visita
profissional.
Só então ela nem reparou que na lapela do senhor havia uma cruz. Agradeceu-lhe enquanto ele lhe dizia
que no cartão que lhe dera tinha o número do smartfone pessoal e repetiu que em
caso de necessidade era só ligar-lhe. Despediram-se e foram cada um à sua vida,
sem pensar mais no encontro fortuito.
Mas o leito solitário começava a minar a paciência e o
baixo ventre da Aurélia. O recurso ao dedo não lhe acalmava o ânimo, comprou um
vibrador, à sorrelfa, na Sex Shop da Rua Augusta, mas depressa se aborreceu dele e o guardou entre as roupas
intimas. E o Joaquim cada vez se ausentava mais demoradamente, as sequelas da
Covid estavam p'ra durar e ela continuava em ardores aumentando dia após dia.
Era um Agosto muto quente e ela ao arrumar a secretária deu de cara cm o cartão de visita em cursivo Raul Silveiro Ph 912 098 732 E por que não telefonar-lhe? Ele fora tão simpático… Mas talvez tivesse alguém que? No entanto, não faria mal tentar…Tentou. Bendita a hora em que o fez. Que tal um cafezinho aqui em minha casa? Amanhã pelas cinco da tarde? Não é um chá. Como fazem os ingleses…
O problema era o Quim Zé que não fora aprovado ara o ATL e
portanto estava em casa. O café morreu nas xicaras, as roupas caíram
desmanteladas pelo chão e todo nus na cama saciavam as abstinências de ambos
insofridas. Para que não assistisse a tal espectáculo sexual Laurinda prometendo-lhe mundos e fundos metera o miúdo no guarda-fatos.
De repente e quando estavam a ponto de atingir mais um orgasmo,
ouve-se uma chave a meter-se na porta da entrada. “É o meu marido!” E
para o amante: “Pega na tua roupa e sapatos e mete-te no guarda-roupa! “Assim
aconteceu. Ela entrou na casa de banho, vestiu-se e foi preparar alguma coisa
para comer par o marido que na pressa de voltar nem tinha almoçado.
Dentro
do armário o puto vendo entrar um companheiro falou: “Está aqui muito
escuro!” E o cavalheiro: “Schiu. Fala baixinho, podem ouvir-te.!”
Quim Zé na sua: “Mas, porra, está qui muito escuro!” O cidadão, em
desespero: “O que queres para estares calado?” Num sussurro, o catraio; “Muito pouco. Uma camisola da equipa do
Cristiano assinada por ele que é o meu ídolo…” Apaziguando: “Depois
de amanhã vais tê-la.”
Saiu o Joaquim Martins para uma bica no café, saiu o senhor
do guarda-fatos e por fim o Quim Zé que, dois dias depois pela CLOVO recebia a
ansiada camisola. O certo é que o cagaço não lhes serviu de emenda, o desejo era mais forte e a Laurinda e o Raul persistiram nos embates ultra sensuais cada vez mais entusiásticos. E
por duas vezes mais repetiu-se a cena do guarda-fatos e da chantagem do “está
muito escuro” delas resultando uns calções e uma bola ambos rubricados pelo
craque. Quim Zé descobrira um novo vocábulo: ccorrupção.
Já em Outubro Aurélia, quando Quim Zé voltara da escola
perguntou-lhe há quanto tempo não se confessava. “Não sei bem mamã, mas
julgo que anda praí há uns seis meses…” Ela não se conteve: “Filho,
somos bons católicos, não podes ser assim. Amanhã mesmo vais a São João de Deus
e confessas-te.”
Ajoelhado junto ao confessionário, Quim Zé olha em redor e comentou em voz suficientemente alta: “Está aqui muito escuro…” E o digno sacerdote levantou-se exasperado: “Não me venhas outra vez com essa!!!!!!”
Tropeçar no Natal
Tropeço no Natal e confesso: não sei como
safar-me. Trata-se duma daquelas coisas a que não se pode esquivar, parecia mal,
o calendário de parede ou secretária, dos antigos, digital, dos modernos, é
implacável, não se compadece com hereges como eu, manda-nos às urtigas para não
ir abaixo de Braga ou mais popularmente à merda com um carrinho de mão.
Com a mesa plena
de azevias, filhoses, coscorões, sonhos, fritos de abóbora, bolo-rei,
bolo-rainha, lampreia de ovos, bacalhau espiritual, caril de gambas, balchão de
carne de porco, sarapatel, bebinca, doce de grão, jalebi, cake à goesa, (a casa
e a família são luso-indianas) é fartar não vilanagem mas ferreiragem &
anexos, pois agora vem da cozinha o peru made in Pão de Açúcar que fazê-lo em
casa já vai, ver se está corado ao longo da noite, uma trabalheira para a dona
Raquel…É uma Alfarrobeira de cunho doméstico.
À meia-noite rasgaram-se
metros de papel colorido para se trocarem as prendas da praxe. Tudo sempre
igual, a imaginação gastasse com a fuga dos euros das algibeiras substituídos pela
voracidade do cotão, assunto discutido à mesa por entre garfadas.
Mas o clímax está
na Ucrânia, no Natal apagado, pois que o filho da putina mandou cortar a luz e
por isso as casas estão às escuras. A nossa empregada ucraniana pões água na
fervura: o Natal deles é apenas em Janeiro. Quem sabe, talvez até lá?... Para
quê roubar-lhe a réstia de esperança?
Tropeçarei no Ano Novo que aí vem? Pelo andar da
carruagem, melhor dizendo, pelo andar dos ponteiros dos relógios, vem à superfície
o meu péssimo pessimismo: será difícil ser pior deste miserável que está à beira
da cova sem coveiro disponível. Nem o Papa Francisco lhe valeu.
Duas imagens, a mesma
felicidade
Separam-nas umas dezenas de anos e ambas – sendo a sua
publicação actual – nos deixa tão enlevados como nos momentos
em que foram tiradas. A primeira ocorreu na sacristia do mosteiro dos
Jerónimos (para "assassinar" o registo do acto) poucos minutos depois de consumado o “crime” que iria
durar todos estes anos que mencionei na nota que publiquei acima sobre o “casório”. Naturalmente é a preto e branco. A
cor estava nos nossos corações.
A segunda já colorida aconteceu num dia como o de ontem ou seja
de aniversário do nosso matrimónio, ainda os netos eram crianças e
adolescentes. Duas gerações de Antunes Ferreiras como que a testemunhar a
felicidade dos avós. Perdoar-me-ão a exibição mas o orgulho contou mais alto…