2018-08-02


É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE – 10


Chega
o primeiro
“emprego”


Antunes Ferreira
A Estufa-Fria e o jogos do amor ficaram para trás e eis-nos quase três anos depois em finais de 1971 quando o Frederico deu os primeiros passos num “emprego” – leram bem num “emprego” – pois aproveitando o jeito que tinha para os trabalhos manuais o David arranjara-lhe uma ocupação numa empresa que produzia móveis para cozinhas, claro apenas para lhe dar algo para fazer. O presidente dela tinha achado muita piada ao miúdo que já ia nos doze anos e era muito simpático e bem disposto. E além disso tinha realmente uma queda para usar os berbequins e outras ferramentas para trabalhar os laminados.

Mas na verdade não se tratava de “profissão” muito menos de trabalho de menor na verdadeira acepção da palavra, era antes uma terapêutica ocupacional. Frederico andava muito feliz com a sua nova vida que ocupava a parte da tarde e quando chegava a casa era vê-lo e ouvi-lo a contar tudo o que se passara na fábrica onde os operários o adoravam. Sempre sorridente como era seu hábito era a coqueluche da malta e ainda por cima o “patrão” pagava-lhe (uma quantia simbólica está visto para o satisfazer…) Estava nas suas sete quintas.


Os progressos na fala eram também acentuados, lia perfeitamente e o mais importante entendia o que lia o que deixava entusiasmado o tio Miguel que dizia que não contava que ele fizesse tais progressos.
Já o antevia...
Já o antevia a usar gravata e de pasta debaixo do braço e acrescentava que não se tratava de optimismo... Mas, ponde de parte futurismos, tenho de referir que dentro das limitações no que respeitava a deslocações era quase autónomo mas alguém sempre o acompanhava quando saía não fosse o diabo tecê-las, Ia crescendo dentro da normalidade possível e o tio médico que sabia que a esperança de vida de um doente com a síndroma de Down variava entre os 50 e os 60 anos, não queria fazer previsões quanto ao nosso Frederico dados os progressos que ele ia alcançando.

Entretanto eu fora às sortes e ficara apurado para todo o serviço, a guerra no Ultramar não dava muitas hipóteses aos mancebos como se dizia em linguagem militar. No dia da minha inspecção dois indivíduos à minha frente estava apoiado em duas muletas pois não tinha o pé direito. Os dois médicos – um do quadro, o outro miliciano – deram-no como isento mas o coronel na reserva que presidia à Junta deu-o como apurado para os serviços auxiliares pois disse ele que “o mancebo podia perfeitamente estar sentado a uma secretária a preencher papelada…” Só visto, contado ninguém acreditaria. 

Neste período entre os inúmeros acontecimentos ocorridos o mais importante terá sido o protagonizado pelo meu pai. Já tinha mencionado que por castigo complementar fora de novo comandar uma companhia para Madina do Bué o pior local da Guiné atacado dia sim dia sim pelo PAIGC de Amílcar Cabral. Ao fim de uns longos onze meses de levar porrada de criar bicho a companhia fora substituída por outra constituída por “maçaricos” (nome que se dava aos soldados recém chegados sem experiência de combate, da mata, dos pântanos, bolamas – o nome local e das terríveis abelhas assassinas) os quais ainda ficaram muito piores que os que antecederam.
 
Fora evacuado de helicóptero 
O general Spínola, Governador-geral e comandante-chefe ordenou a retirada e a tropa do meu pai foi dar cobertura ao movimento. E quando a companhia que voltava atravessava um rio numa jangada esta virou-se e aconteceu o pior desastre de toda a guerra do Ultramar: 46 mortos, vários feridos e muito material militar. Uma verdadeira desgraça. Com os turras sempre a atacar gerou-se um pandemónio e no meio dele o meu pai foi atingido nas costas já não conseguindo levantar-se. Foi evacuado de helicóptero para o Hospital Militar de Bissau e dada a gravidade do seu estado para Lisboa onde foi operado à coluna. Debalde. Ficou paraplégico, numa cadeira de rodas e por mais que a fisioterapia em Alcoitão tentasse recupera-lo não deu em nada.

A mãe foi visita-lo aos pavilhões do anexo do Hospital Militar na Infante Santo bem como a tia Elsa, o tio Jaime, o tio Miguel, a Leonor, os avós e a Miquelina e a Odete Rita. Quando chegou a minha vez o Frederico pediu-me para o levar. Um bico-de-obra. “Tu queres mesmo ver o pai? Olha que ele está muito doente e não vai curar-se…”. O mano, com os seus doze anos na altura, disse-me que sim que sabia o que tinha acontecido ao pai na guerra e queria mesmo visita-lo para desejar-lhe as melhoras. Perante a determinação dele fiz-lhe a vontade. E embora não fosse longe, bem pelo contrário, apanhámos um táxi e depois de ter explicado ao motorista que se tratava de uma pequena “corrida” o que não o deixou com muito boa cara lá fomos.

Durante o pequeníssimo percurso Frederico foi muito calado, ao contrário do que acontecia habitualmente e comecei a ficar preocupado, se calhar não devia ter acedido ao pedido dele e tê-lo trazido. Mas então já não ia chorar sobre o leite derramado. Mesmo assim quando chegámos à Estrela em frente da basílica voltei a inquiri-lo sobre a visita ao que me retorquiu com um modo brusco contra o que era o seu habitual “Já disse que quero!” Apaziguei os ânimos “Pronto, pronto, mano, não se fala mais nisso… Já cá não está quem abriu a boca…” E por mor das moscas fiz um sorriso, ao que ele correspondeu. Para compensar o chofer dei-lhe quinze tostões de gorjeta o que lhe mudou rapidamente o fáceis…

Hospital Militar  na Infante Santo


Quando íamos pelo corredor que dava para o quarto do nosso pai cruzámo-nos com o Olegário e o David que vinham de o visitar. Parámos e entabulámos uma pequena conversa “Então que tal o acharam? Está muito em baixo?” As minhas perguntas obviamente parvas só podiam ter uma resposta piedosa “Olha Armando, pensei que podia estar pior. Vai aguentando, mas não está bem-disposto como é normal. A vossa mãe e tia Elsa estão lá a tentar dar dois dedos de trela…” Mas, baixando a voz quase num sussurro segredou-me ao ouvido. “É preciso ter muito cuidado com ele, falou-me em suicidar-se…” E o David, para desviar a conversa, falou directamente para o Frederico: “Olá campeão como passas, dá cá mais cinco, então vens ver o teu pai? Ele vai gostar. Já estás um homenzinho…”

Despedimo-nos. E avançámos. Como seria?
(Continua)