É DIFÍCIL VIVER COM UM
IRMÃO MONGOLÓIDE – 10
Chega
o primeiro
“emprego”
Antunes Ferreira
A Estufa-Fria e o jogos do amor ficaram para trás e eis-nos quase
três anos depois em finais de 1971 quando o Frederico deu os primeiros passos
num “emprego” – leram bem num “emprego” – pois aproveitando o jeito que tinha
para os trabalhos manuais o David arranjara-lhe uma ocupação numa empresa que
produzia móveis para cozinhas, claro apenas para lhe dar algo para fazer. O
presidente dela tinha achado muita piada ao miúdo que já ia nos doze anos e era
muito simpático e bem disposto. E além disso tinha realmente uma queda para
usar os berbequins e outras ferramentas para trabalhar os laminados.
Mas na verdade não se tratava de “profissão” muito menos de
trabalho de menor na verdadeira acepção da palavra, era antes uma terapêutica
ocupacional. Frederico andava muito feliz com a sua nova vida que ocupava a
parte da tarde e quando chegava a casa era vê-lo e ouvi-lo a contar tudo o que
se passara na fábrica onde os operários o adoravam. Sempre sorridente como era
seu hábito era a coqueluche da malta e ainda por cima o “patrão” pagava-lhe
(uma quantia simbólica está visto para o satisfazer…) Estava nas suas sete
quintas.
Os progressos na fala eram também acentuados, lia perfeitamente e
o mais importante entendia o que lia o que deixava entusiasmado o tio Miguel
que dizia que não contava que ele fizesse tais progressos.
Já o antevia a usar gravata e de pasta debaixo do braço e acrescentava que não se tratava de optimismo... Mas, ponde de parte futurismos, tenho de referir que dentro das
limitações no que respeitava a deslocações era quase autónomo mas alguém sempre
o acompanhava quando saía não fosse o diabo tecê-las, Ia crescendo dentro da
normalidade possível e o tio médico que sabia que a esperança de vida de um
doente com a síndroma de Down variava entre os 50 e os 60 anos, não queria
fazer previsões quanto ao nosso Frederico dados os progressos que ele ia alcançando.
Já o antevia... |
Entretanto eu fora às sortes e ficara apurado para todo o serviço,
a guerra no Ultramar não dava muitas hipóteses aos mancebos como se dizia em
linguagem militar. No dia da minha inspecção dois indivíduos à minha frente
estava apoiado em duas muletas pois não tinha o pé direito. Os dois médicos –
um do quadro, o outro miliciano – deram-no como isento mas o coronel na reserva
que presidia à Junta deu-o como apurado para os serviços auxiliares pois disse
ele que “o mancebo podia perfeitamente estar sentado a uma secretária a
preencher papelada…” Só visto, contado ninguém acreditaria.
Neste período entre os inúmeros acontecimentos ocorridos o mais
importante terá sido o protagonizado pelo meu pai. Já tinha mencionado que por
castigo complementar fora de novo comandar uma companhia para Madina do Bué o
pior local da Guiné atacado dia sim dia sim pelo PAIGC de Amílcar Cabral. Ao
fim de uns longos onze meses de levar porrada de criar bicho a companhia fora
substituída por outra constituída por “maçaricos” (nome que se dava aos
soldados recém chegados sem experiência de combate, da mata, dos pântanos,
bolamas – o nome local e das terríveis abelhas assassinas) os quais ainda
ficaram muito piores que os que antecederam.
O general Spínola, Governador-geral e comandante-chefe ordenou a
retirada e a tropa do meu pai foi dar cobertura ao movimento. E quando a
companhia que voltava atravessava um rio numa jangada esta virou-se e aconteceu
o pior desastre de toda a guerra do Ultramar: 46 mortos, vários feridos e muito
material militar. Uma verdadeira desgraça. Com os turras sempre a atacar
gerou-se um pandemónio e no meio dele o meu pai foi atingido nas costas já não
conseguindo levantar-se. Foi evacuado de helicóptero para o Hospital Militar de
Bissau e dada a gravidade do seu estado para Lisboa onde foi operado à coluna.
Debalde. Ficou paraplégico, numa cadeira de rodas e por mais que a fisioterapia
em Alcoitão tentasse recupera-lo não deu em nada.
A mãe foi visita-lo aos pavilhões do anexo do Hospital Militar na
Infante Santo bem como a tia Elsa, o tio Jaime, o tio Miguel, a Leonor, os avós
e a Miquelina e a Odete Rita. Quando chegou a minha vez o Frederico pediu-me
para o levar. Um bico-de-obra. “Tu queres
mesmo ver o pai? Olha que ele está muito doente e não vai curar-se…”. O
mano, com os seus doze anos na altura, disse-me que sim que sabia o que tinha
acontecido ao pai na guerra e queria mesmo visita-lo para desejar-lhe as
melhoras. Perante a determinação dele fiz-lhe a vontade. E embora não fosse
longe, bem pelo contrário, apanhámos um táxi e depois de ter explicado ao
motorista que se tratava de uma pequena “corrida” o que não o deixou com muito
boa cara lá fomos.
Durante o pequeníssimo percurso Frederico foi muito calado, ao
contrário do que acontecia habitualmente e comecei a ficar preocupado, se
calhar não devia ter acedido ao pedido dele e tê-lo trazido. Mas então já não
ia chorar sobre o leite derramado. Mesmo assim quando chegámos à Estrela em
frente da basílica voltei a inquiri-lo sobre a visita ao que me retorquiu com
um modo brusco contra o que era o seu habitual “Já disse que quero!” Apaziguei os ânimos “Pronto, pronto, mano, não se fala mais nisso… Já cá não está quem
abriu a boca…” E por mor das moscas fiz um sorriso, ao que ele
correspondeu. Para compensar o chofer dei-lhe quinze tostões de gorjeta o que
lhe mudou rapidamente o fáceis…
Hospital Militar na Infante Santo |
Quando íamos pelo corredor que dava para o quarto do nosso pai
cruzámo-nos com o Olegário e o David que vinham de o visitar. Parámos e entabulámos
uma pequena conversa “Então que tal o
acharam? Está muito em baixo?” As minhas perguntas obviamente parvas só
podiam ter uma resposta piedosa “Olha
Armando, pensei que podia estar pior. Vai aguentando, mas não está bem-disposto
como é normal. A vossa mãe e tia Elsa estão lá a tentar dar dois dedos de
trela…” Mas, baixando a voz quase num sussurro segredou-me ao ouvido. “É preciso ter muito cuidado com ele,
falou-me em suicidar-se…” E o David, para desviar a conversa, falou
directamente para o Frederico: “Olá
campeão como passas, dá cá mais cinco, então vens ver o teu pai? Ele vai
gostar. Já estás um homenzinho…”
Despedimo-nos. E avançámos. Como seria?
(Continua)
Este é agridoce, FerreirAmigo.
ResponderEliminarSe o Frederico nos faz bem à alma, o que aconteceu com o teu pai revolta.
Porque é um de muitos que sofreram com a estúpida guerra no Ultramar.
Que marcou quem lá esteve e as famílias para sempre.
Porquê? Para quê??
Grande abraço para ti, beijos para a Raquel
Meu caro Coimbramigo
EliminarMuito obrigado pelo teu comentário como sempre muito assisado porque a guerra colonial (ou do Ultramar designação que geograficamente está correcta) para além de estúpida, aliás como todas elas, também foi criminosa porque foi contra povos.
Povos que como todos os outros tinham o direito a ser livres. Depois o que fazer da liberdade e como vivê-la isso era outra questão pois o problema era deles. Não quero sacudir a água do capote mas desde que comecei a pensar politicamente sempre pensei assim.
Daí o dilema com que vivi quando tive de ir para a guerra em Angola: ou desertava ou ia mesmo pois estava no exército. Pesava na decisão o facto de já termos Raquel e eu dois filhos de tenra idade, o Miguel com 18 meses e o Paulo só com três. Por isso como desertar? Por isso fui. Ou melhor fomos.
Porque a grande mulher que tenho não fez a coisa por menos, meteu-me mais os putos num avião (e ainda não trabalha na TAP...) e ala até Luanda. Quando desembarquei no porto da capital angolana lá estava ela. No "Niassa" a malta toda me invejava...
E agora uma correcção. A estória que vou escrevendo é pura ficção e não tem nada que ver com o meu falecido Pai, nem eu com o narrador Armando, ainda que eu também me chame Henrique Armando Antunes Ferreira... Para que conste e seja registado em acta... :-)))))
Triqjs e um abração deste teu amigo
Henrique, o Leãozão.
PS (Aqui é só Post Scriptum...) Pelas bandas do Leão continua a merda os candidatos quase são mais do que os eleitores... Cada dia que passa aparece mais um com propostas magníficas para salvar o Sporting. E o BdC está cada vez mais obnóxio, só lá vai com uma camisa de forca ou de força!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarConfesso que não gosto sequer de ouvir falar da guerra do ultramar. Uma guerra sem sentido que só existiu pela força e pela ganância de poder, de meia dúzia de fascistas que não respeitavam nada nem ninguém.
ResponderEliminarGostei muito de ler o que aconteceu ao menino.
Continuando a acompanhar a estória...
Deixando um abraço
Meu caro Gilamigo
EliminarPoizé, mas os gajos nem fascistas souberam ser, apenas um arremedo. Claro que houve o Tarrafal, a PIDE (que me brindou com uns afagos que me partiram duas costeletas), a Censura e o etc...
O puto Frederico lá se vai safando. Oxalá continue assim.
Muito obrigado
Um abração deste teu amigo e admirador
Henrique, o Leãozão
Boa, Henrique!... "nem fascistas souberam ser".
EliminarBeijinhos.
Guerras sempre nos apavoram e fazem doer, mas Frederico nesse capítulo já está em seu trabalho terapêutico e gostando bastante, feliz! abração,chica
ResponderEliminarMinha querida Rejanamiga/Chiquitamiga
EliminarDeixa pra lá essas coisas da guerra e foca-te no Frederico como fazes e muito bem. Obrigadérrimo.
Muitos qjs deste teu luso-amigo
Henrique, o Leãozão
A trissomia 21 ou Síndrome de Down, como já nos explicaste logo no início desta série, que penso ser ficção, é uma doença genética que tem a particularidade de favorecer quem dela sofre, com uma extrema sensibilidade, simpatia e meiguice. É fácil gostar do Frederico!
ResponderEliminarJá da malfadada guerra no Ultramar, prefiro não falar. Tenho recordações dolorosas.
Veremos como vai reagir o Frederico em presença do pai doente.
Obrigada pelo excelente texto, Amigo Henrique.
Logo que possas, solta essa boa disposição que há em ti...:)
Beijinhos com votos de bom fim-de-semana, para ti e tua Raquel.
Minha querida Janitamiga
EliminarComo tu me entendes, minha querida. Escrever, também o sabes, é uma paixão, é uma das minhas paixões. E este tema que escolhi - e em boa hora o fiz porque também por ele me apaixonei - tem-me dado grandes ensinamentos sobretudo no domínio da vivência e em especial da correspondência com aqueles para quem escrevo. Como é o teu caso.
Ficção também quer dizer engenho e arte como escreveu o nosso Luís Vaz que assim pretendia cantar e espalhar por toda a parte o que escrevia. Mas para me ajudar a mim mesmo a vida vivida tem-me dado uns empurrões que não enjeito. Sobre a guerra colonial e o que a rodeou e ainda a rodeia e rodeará isso tem-me sido fundamental.
Vou publicar um textículo em direi que cumprirei escrupulosamente o teu diktat: a malta saga vai entrar de féria durante quinze dias e no intervalo sairá um "coiso" (salvo seja) Mais risonho :-)))
Bfds e muitos bjs e qjs do casal Ferreira
Nesta guerra da Guiné ficaram lá muito jovens portugueses numa guerra inútil estúpida.
ResponderEliminarAs "terapêuticas ocupacionais" são muito importantes.
Um abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Meu caro Franciscamigo
EliminarE não só na Guiná mas também em Angola, em Moçambique e até no "Estado Português da Índia".
Pois são, muitas vezes tão importantes ou mesmo melhores do que os remédios receitados.
Um abração deste teu amigo
Henrique, o Leãozão
Pois como seria? Um Mundo incerto... Uma história muito interessante.
ResponderEliminarPubliquei hoje a história que me enviou tão amavelmente... Estes últimos dias antes de férias estão a ser complicados... em parte pela teimosia das pessoas...
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta
Minha querida Martamiga
EliminarMuito obrigado. Ora aqui está uma excelente ideia no meio desta brasa agostiniana. ir de férias, coisa que não faço pois... estou sempre nelas :-))) Vida de reformado é dura...
Boas férias e até à volta
Muitos qjs deste teu amigo e admirador
Henrique, o Leãozão
Boa tarde!
ResponderEliminarConvidamos-vos a ler o capítulo 4 do nosso conto escrito a várias mãos "Janelas de Tempo"
https://contospartilhados.blogspot.com/2018/08/janelas-de-tempo-capitulo-4.html
Excelente fim-de-semana
Saudações literárias!
Caros Amigos
ResponderEliminarJá lá fui e fiquei deslumbrado e até me permiti fazer um pedido/proposta... Fico à espera de resposta; oxalá seja positiva. Mas se for não, como disse a Dolores Ibarruti No pasa nada! Continuarei a visitar-vos e a comentar sempre que me for possível.
Qjs e abçs
Henrique, o Leãozão
Olá, estimado Henrique e Raquel!
ResponderEliminarMuito grata pela visita e palavras deixadas no meu blogue, palavras um tanto "exacerbadas" (não me fales em exacerbado, que eu lembro-me logo do nacionalismo, pensa Henrique -risos).
Como sempre, a sua escrita, "bebe-se" de um gole só e ficamos com "sede", ainda, ou seja, queremos mais. A vida tem imenso que contar e a sua é riquíssima, no bom e no mau, contudo estas duas vertentes, dela fazem parte.
Tenho acompanhado, razoavelmente, a história de ter de conviver e viver com um irmão mongoloide, o Frederico, mas tem conseguido prender-nos da primeira à última linha.
A guerra do Ultramar foi uma realidade, que não podemos, nem devemos apagar da nossa História. Cometeram-se erros crassos, outros, talvez não, mas foi o que foi.
Na sua pergunta, no final do texto, penso que o vosso pai irá dar um sorriso e um abraço ao filho e que ambos ficarão muito felizes.
Beijos e um feliz domingo, mesmo com este calorão.
PS: quanto aos "meninos" de Direito atravessarem a "terra de ninguém", também as meninas de Letras de há quase 30 anos, onde me incluo, iam, "assim como quem não quer a coisa", ao bar da vossa faculdade, tomar um Sumol ou comer um bolinho. Lindos e distintos, que vocês eram, digo eram, pke agora "aquilo" (estive lá há dias), não tem ponta por onde se lhe pegue, olhe nem nessa, que está a pensar, agora -risos. Andam a comer demasiado frango de aviário e depois é o que se vê - risos.
Minha querida Ceuzitamiga
EliminarOra muito bem cá estamos de novo juntos e felizes da vida pelo reencontro que foi, é e será para sempre - pelo menos pela minha parte e creio que pela tua também.
A vida é feita de encontros e desencontros mas também de encantos e desencantos ou seja de sins e de nãos todos os dias e temos de pensar que só temos uma (eu, pelo menos penso assim..) e por isso há que desfruta-la o melhor que pudermos.
Como diz o povo na sua infinda sabedoria ninguém fica cá para semente e por isso seguindo outra afirmação que diz que tristezas não pagam dívidas vamos em frente, corações ao alto e siga a marcha!... :-)))
Já basta de falar na malfadada guerra colonial. Como dizem os brasucas deixa pr´alá meu irmão...
PS - Há quase 30 anos? Ó Céu ainda és uma catraia, tens de me dizer quando largaste os cueiros... :-)) Poizé, frango de aviário, poem-se a jeito e depois chamam pela mãezinha éoké. Resumindo: já não já frangos como os d'antigamente... :-)))))))))))))
Muitos bjs e qjs do casal Ferreira
Só mais uma "coisinha". Estive a ler o seu lúcido e inteligente comentário deixado no blogue: "Quem conta um conto, acrescenta um ponto", e deixei também lá umas palavrinhas, que gostaria, e quando lhe apetecesse, que lesse. Têm toda a lógica, na minha opinião.
ResponderEliminarDias felizes!
Já lá fui e sinceramente até aplaudi.
EliminarEstou a seguir com imenso interesse esta narrativa. O Frederico é um verdadeiro guerreiro…
ResponderEliminarA história de África, com tantos estragos que fez. A Guiné, segundo dizem era a mais difícil…
Uma boa semana, meu Amigo.
Um beijo.
Minha querida Gracinhamiga
EliminarEstou muito feliz por de novo saber que estás a seguir esta estória e vou tentando levar o Frederico pelo caminho que em meu entender ele merece. Vamos lá ver até onde consegue chegar.
Na Guiné só estive depois do 25 de Abri em serviço do DN e aquilo era muito mau. E foi só em Bissau e no arquipélago de Bijagós. Pude imaginar o que terá sido durante a guerra... Péssimo!...
Muito obrigado e também para ti
Mil qjs deste teu amigo e grão admirador
Henrique, o Leãozão
HenriquAmigo.
ResponderEliminarReitero, que verve naravilhosa tu tens?
Estou sôfrego para saber a reação do Frederico ao ver o pai.
Lembranças para a querida Dona Raquel.
Meu casto Confradamigo
EliminarEstou vermelho de vergonha com o que me dizes. Sabes muito bem como sou envergonhado... :-)))
Ainda não sei como a cena vai decorrer. Quando começar a escrever algo sairá.
Muitos bjs e um abração do casal Ferreira