2018-12-01


VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN - 19

Mas   
não é
burro!

Antunes Ferreira
Quando se lança um dado num pano verde há seis hipóteses para quem o joga, mas quando um árbitro atira uma moeda ao ar apenas existem duas que vão ditar a sorte do lado do campo em que cada equipa vai começar e quem vai dar o pontapé de saída. A sorte e o azar são os componentes que enformam a vida dos animais e não há com o escolhê-los – é como ter dentro de um saco opaco nove bolas negras e apenas uma branca e metendo uma mão nele tirar a branca é a sorte ou sacar uma das nove negras e é o azar.

Se acontece um novo coração bater num peito antigo não se trata apenas de um transplante à maneira pioneira de  Grote-Schuur, porque nem todos somos um  Christian Barnard – e felizmente que não. Pode arrancar-se o músculo cardíaco para substitui-lo por outro porque se arrancou uma esperança e em especial a ânsia de viver. Nada portanto nos prende à terra, nada nos impede de flutuar num espaço incolor, intangível, inodoro, intemporal porque já nem sabemos se somos o que somos ou o que pensamos que somos.

Tomo as rédeas da quadriga


Tomei então as rédeas a quadriga da saga onde era o protagonista pois o meu irmão Armando mais a Maria Rita andavam numa fona com a chegada do pimpolho, os arranjos lá em casa com o quarto dele, a decoração, num etc. de tirar o fôlego ao melhor maratonista queniano. Por certo reconhecerão que o estilo é um tanto diferente, mas como hão há dois homens iguais também não os há quanto à escrita, salvo quando acontece o plágio…  Mas para que se entenda o que acontecera há que rebobinar para se chegar a 2016 ano em que o azar bateu a sorte e por larga margem. Daí que tenha perguntado a quem ainda se sacrificava a ler esta saga se era preferível que começasse pelas boas coisas ou pelas más. E como não tinha ouvido respostas decidi iniciar-me pelas positivas. o interregno até ia decorrendo bem. Do Brasil vinham boas notícias, a Leonor dera à luz um neófito e o Patrick tinha vindo a Portugal e conseguira das Fundações Gulbenkian e Champalimaud fundos avultados para construir um hospital para apoio aos índios Guarani Kaoiwa e as obras já tinham começado numa parceria com a FUNAI e Brasília.


Sem legenda
Por outro lado, quando tínhamos regressado da Malásia havíamos decidido fazer um stopover  Pelo Brasil a fim de visitar a missão dos voluntários onde ficámos encantados com tudo o que vimos. Dali trouxe um jabuti-piranga,
um pequeno cágado cuja carapaça e escamas das patas são vermelhas para dar como recordação à Elena cujo estado ia-se agravando. À nossa chegada ficou contentíssima e começou a bater palmas e passou a chamar ao animal “meu filho”. Entretanto, cerca de rês meses depois quando fui visitá-la não me conheceu. Ia lá duas vezes por semana. Voltei no dia seguinte acompanhado do tio Miguel. Não nos ligou. O médico residente em conversa connosco confidenciou-nos que era Alzheimer no princípio. Não queria acreditar – mas era.



Para além dessa desgraça que me consumia tudo o resto que me dizia respeito parecia rolar sobre esferas e era o meu refúgio e terapêutica ocupacional. E assim, avançara numa ideia que me assaltara – criar uma empresa, ter uma organização por mim modelada sentir-me como Deus estendendo o Seu dedo para o Adão assim criando o homem reproduzido na obra-prima de Michelangelo, o fresco pintado no tecto da Capela Sistina do Vaticano. Para tanto comprei um andar antigo ali ao Príncipe Real remodelei-o para nele instalar o gabinete de consultadoria informática que seria a minha empresa. Estávamos em 2016 e era a altura ideal para tal empreendimento. Admiti o pessoal que entendi necessário para fazer uma PME, equipei-o com os instrumentos mais modernos – e começámos a trabalhar.

A obra-prima de Michelangelo


Aí contou a família e de que maneira, sobretudo com os seus conhecimentos para além do apoio moral e pessoal. Capital não era problema. Éramos abastados, e eu tinha o suficiente para arcar com as despesas inerentes ao investimento. Por isso os clientes tinham vindo chegando, o volume de negócios aumentava paulatinamente tivera que aumentar o espaço. Para tal tinha proposto ao senhorio, um senhor já bastante idoso comprar-lhe o prédio a pronto, sem recurso a crédito bancário nem a prestações. O Dr. José Figueiredo, viúvo, consultou o casal de filhos e aceitou a proposta. Escritura no notário e ponto final.

Mas antes de começarem as obras para a restauração e remodelação do imóvel reunimo-nos os quatro “machos” e as duas “fêmeas” para fazer o ponto da situação. Sobre a mesa estavam umas quantas ideias que após uma larga, frutuosa e amigável discussão decidimos pôr em prática. O prédio tinha quatro andares e cave. Esta seria destruída para ser feito um parque de estacionamento para as viaturas que utilizávamos – as nossas e as dos trabalhadores que connosco colaboravam. No rés-do-chão ficaria a recepção dos três escritórios que ali ficariam sedeados: o consultório/clínica do tio Miguel com mais três colegas de diferentes especialidades  incluindo um dentista. Este ocuparia o resto do rés-do-chão  e o primeiro-andar.

António Silva em "Sonhar é Fácil"


No segundo estabeleceriam o Armando e o tio Jaime uma agência de prestação de serviços de marketing e publicidade que este há muito tempo pretendia criar pois depois de abandonar o sacerdócio era a isso que se dedicara e com bastante sucesso, tinha de o reconhecer. O Armando declara-se farto de processos, tribunais, providências cautelares e quejandos e dissera que uns pareceres jurídicos ainda vá lá… Finalmente nos dois restantes eram os meus “domínios”. E com que orgulho antevia o que iria realizar. Todos temos o direito de sonhar, eu bem me lembrava de ver na RTP Memória o “Sonhar é Fácil” um filme de Perdigão Queiroga em 1951 como esse monstro sagrado do teatro e do cinema português chamado António Silva.

Foram quase dois anos e obras depois de mais de sete meses de aprovação pela Câmara Municipal do projecto que apresentei. Mas quando elas terminaram eu estava ufano e orgulhoso da obra feita e (por que não dizê-lo?) vaidoso… No dia da inauguração com a devida pompa e circunstância  enquanto recebia os inúmeros convidados ia ouvindo  os comentários que se trocavam “quem havia de dizer que o Frederico Saraiva Mendes com tamanha deficiência haveria de chegar onde chegou…”. Mas também ouvi o David que passara a trabalhar na “nossa”  agência, saltar que nem um boneco de Carnaval de dentro de uma caixa de embrulho e de surpresa. “Pois sim, ele é deficiente mas não é burro!”


(Continua)