VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN - 19
Mas
não é
burro!
Antunes Ferreira
Quando se lança um dado num pano verde há seis hipóteses para quem
o joga, mas quando um árbitro atira uma moeda ao ar apenas existem duas que vão
ditar a sorte do lado do campo em que cada equipa vai começar e quem vai dar o
pontapé de saída. A sorte e o azar são os componentes que enformam a vida dos animais
e não há com o escolhê-los – é como ter dentro de um saco opaco nove bolas negras e apenas uma branca e metendo uma mão nele tirar a branca é a sorte ou
sacar uma das nove negras e é o azar.
Se acontece um novo coração bater num peito antigo não se trata
apenas de um transplante à maneira pioneira de Grote-Schuur,
porque nem todos somos um Christian
Barnard – e felizmente que não. Pode arrancar-se o músculo cardíaco para substitui-lo por outro porque se arrancou
uma esperança e em especial a ânsia de viver. Nada portanto nos prende à terra,
nada nos impede de flutuar num espaço incolor, intangível, inodoro, intemporal
porque já nem sabemos se somos o que somos ou o que pensamos que somos.
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Tomo as rédeas da quadriga |
Tomei
então as rédeas a quadriga da saga onde era o protagonista pois o meu irmão
Armando mais a Maria Rita andavam numa fona com a chegada do pimpolho, os
arranjos lá em casa com o quarto dele, a decoração, num etc. de tirar o fôlego
ao melhor maratonista queniano. Por certo reconhecerão que o estilo é um tanto
diferente, mas como hão há dois homens iguais também não os há quanto à
escrita, salvo quando acontece o plágio… Mas para que se entenda o que acontecera há
que rebobinar para se chegar a 2016 ano em que o azar bateu a sorte e por larga
margem. Daí que tenha perguntado a quem ainda se sacrificava a ler esta saga se
era preferível que começasse pelas boas coisas ou pelas más. E como não tinha ouvido
respostas decidi iniciar-me pelas positivas. o interregno até ia decorrendo
bem. Do Brasil vinham boas notícias, a Leonor dera à luz um neófito e o
Patrick tinha vindo a Portugal e conseguira das Fundações Gulbenkian e
Champalimaud fundos avultados para construir um hospital para apoio aos índios
Guarani Kaoiwa e as obras já tinham começado numa parceria com a FUNAI e
Brasília.
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Sem legenda |
Por
outro lado, quando tínhamos regressado da Malásia havíamos decidido fazer um stopover
Pelo Brasil a fim de visitar a missão dos voluntários onde ficámos
encantados com tudo o que vimos. Dali trouxe um jabuti-piranga,
um pequeno cágado cuja carapaça e escamas das patas são vermelhas para dar como recordação à Elena cujo estado ia-se agravando. À nossa chegada ficou contentíssima e começou a bater palmas e passou a chamar ao animal “meu filho”. Entretanto, cerca de rês meses depois quando fui visitá-la não me conheceu. Ia lá duas vezes por semana. Voltei no dia seguinte acompanhado do tio Miguel. Não nos ligou. O médico residente em conversa connosco confidenciou-nos que era Alzheimer no princípio. Não queria acreditar – mas era.
um pequeno cágado cuja carapaça e escamas das patas são vermelhas para dar como recordação à Elena cujo estado ia-se agravando. À nossa chegada ficou contentíssima e começou a bater palmas e passou a chamar ao animal “meu filho”. Entretanto, cerca de rês meses depois quando fui visitá-la não me conheceu. Ia lá duas vezes por semana. Voltei no dia seguinte acompanhado do tio Miguel. Não nos ligou. O médico residente em conversa connosco confidenciou-nos que era Alzheimer no princípio. Não queria acreditar – mas era.
Para
além dessa desgraça que me consumia tudo o resto que me dizia respeito parecia
rolar sobre esferas e era o meu refúgio e terapêutica ocupacional. E assim, avançara
numa ideia que me assaltara – criar uma empresa, ter uma organização por mim
modelada sentir-me como Deus estendendo o Seu dedo para o Adão assim criando o
homem reproduzido na obra-prima de Michelangelo, o fresco pintado no tecto da
Capela Sistina do Vaticano. Para tanto comprei um andar antigo ali ao Príncipe
Real remodelei-o para nele instalar o gabinete de consultadoria informática que
seria a minha empresa. Estávamos em 2016 e era a altura ideal para tal
empreendimento. Admiti o pessoal que entendi necessário para fazer uma PME,
equipei-o com os instrumentos mais modernos – e começámos a trabalhar.
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A obra-prima de Michelangelo |
Aí
contou a família e de que maneira, sobretudo com os seus conhecimentos para
além do apoio moral e pessoal. Capital não era problema. Éramos abastados, e eu
tinha o suficiente para arcar com as despesas inerentes ao investimento. Por
isso os clientes tinham vindo chegando, o volume de negócios aumentava
paulatinamente tivera que aumentar o espaço. Para tal tinha proposto ao
senhorio, um senhor já bastante idoso comprar-lhe o prédio a pronto, sem
recurso a crédito bancário nem a prestações. O Dr. José Figueiredo, viúvo,
consultou o casal de filhos e aceitou a proposta. Escritura no notário e ponto
final.
Mas
antes de começarem as obras para a restauração e remodelação do imóvel
reunimo-nos os quatro “machos” e as duas “fêmeas” para fazer o ponto da
situação. Sobre a mesa estavam umas quantas ideias que após uma larga, frutuosa
e amigável discussão decidimos pôr em prática. O prédio tinha quatro andares e
cave. Esta seria destruída para ser feito um parque de estacionamento para as
viaturas que utilizávamos – as nossas e as dos trabalhadores que connosco colaboravam.
No rés-do-chão ficaria a recepção dos três escritórios que ali ficariam
sedeados: o consultório/clínica do tio Miguel com mais três colegas de
diferentes especialidades incluindo um
dentista. Este ocuparia o resto do rés-do-chão
e o primeiro-andar.
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António Silva em "Sonhar é Fácil" |
No
segundo estabeleceriam o Armando e o tio Jaime uma agência de prestação de
serviços de marketing e publicidade que este há muito tempo pretendia criar pois
depois de abandonar o sacerdócio era a isso que se dedicara e com bastante
sucesso, tinha de o reconhecer. O Armando declara-se farto de processos,
tribunais, providências cautelares e quejandos e dissera que uns pareceres
jurídicos ainda vá lá… Finalmente nos dois restantes eram os meus “domínios”. E
com que orgulho antevia o que iria realizar. Todos temos o direito de sonhar,
eu bem me lembrava de ver na RTP Memória
o “Sonhar
é Fácil” um filme de Perdigão Queiroga em 1951 como esse monstro
sagrado do teatro e do cinema português chamado António Silva.
Foram
quase dois anos e obras depois de mais de sete meses de aprovação pela Câmara
Municipal do projecto que apresentei. Mas quando elas terminaram eu estava
ufano e orgulhoso da obra feita e (por que não dizê-lo?) vaidoso… No dia da
inauguração com a devida pompa e circunstância
enquanto recebia os inúmeros convidados ia ouvindo os comentários que se trocavam “quem havia de dizer que o Frederico Saraiva
Mendes com tamanha deficiência haveria de chegar onde chegou…”. Mas também
ouvi o David que passara a trabalhar na “nossa”
agência, saltar que nem um boneco de Carnaval de dentro de uma caixa de embrulho
e de surpresa. “Pois sim, ele é deficiente mas não é burro!”
(Continua)