Pardais muito atiradiços
Estória
de tomates
Antunes Ferreira
Curioso, há
termos e temas que podem suscitar alguma celeuma, pelo seu significado, pela
sua semântica, pela sua duplicidade, até mesmo pela má intenção com que uma
palavra é utilizada. Corriqueiras são as calinas afirmações de que a pescada
(peixe, substantivo) também é pescada (verbo) ou o vestido (vestuário,
substantivo) que igualmente é vestido (verbo). Mas, não foi isso que nos fez
vir aqui; foi mais a utilização de um comestível na gíria do calão – os
tomates. Passe-se à horticultura. O tomate é o fruto do tomateiro (Solanum
lycopersicum; Solanaceae). Da sua
família, fazem também parte as beringelas, as pimentas e os pimentões, que integram a
família das Solanáceas, além de algumas espécies não comestíveis. A palavra
portuguesa tomate vem do castelhano tomate, derivada do náutle (língua asteca) tomatl. Esta apareceu pela primeira
vez na imprensa em 1595. As espécies são originárias das
Américas Central e do Sul; a sua
utilização como alimentos teve origem no México, espalhando-se
por todo o mundo depois da colonização das Américas pelos europeus.
Ora, como é sabido, tomates
são em calão português corrente, mais ou menos soft, os testículos dos
homens que se prestam a ditos sobejamente conhecidos e usados: «Aquele gajo tem
um par de tomates!» que o mesmo é dizer que o cidadão em causa é destemido, é
valente, é audaz, é etc. Pelo contrário, se um sujeito perante uma situação mais
delicada, mais complexa ou até mais perigosa, se encolhe, diz-se que «o tipo
não tem tomates para aquilo…» A estória que hoje se conta reporta-se ao fruto
do tomateiro que pode ser comido cru, por exemplo em saladas, ou cozinhado em
caçarola, frigideira, forno, etc., e/ou recheado de diversos condimentos. Um
país onde o tomate é muito consumido é a Itália, onde é utilizado em diversas
recitas seco e frito, como nas pizzas.
Posto isto, chega de blá,
blá, blá, e vamos ao cerne da questão. A
cena decorre inicialmente numa aldeia com pretensões a vilória, mais
precisamente numa rua transversal à principal, ponteada de vivendas com largos
quintais onde os proprietários costumavam ter hortas, que os legumes,
contrariamente ao que apregoavam os senhores do movo Governo, estavam pela hora
da morte e umas couves, nabiças, feijões verdes, espinafres, cenouras, cebolas,
alhos e… tomates eram sempre muito apreciados e mastigados sem grandes
investimentos, apenas alguns cuidados. A pacatez da pequena localidade (com um
letreiro afixado junto à tabuleta do nome dela «Dizemos não ao nuclear»
iniciativa da Junta da Freguesia) reflectia-se no ram-ram das tardes
soalheiras.
Acontece que a menina
Etelvina Soares da Conceição, viúva de 54 anos, mas ainda dentro do prazo de
validade, decidira plantar na sua horta tomateiros de coração de boi pois os
frutos eram os da melhor qualidade. Mas, ó vida desengonçada, apenas os ditos
tomates surdiam vermelhos que eram um regalo vinham os pardais e impiedosamente
bicavam-nos, não escapando sequer um exemplar. Etelvina experimentou um
espantalho feito de velhas roupas cruzadas, braços e pernas e uma bola de plástico como
cabeça; desavergonhados as aves fizeram dele poleiro para tomarem balanço e
atacar os tomates da viúva (honny soit qui mal y pense)!
Mas, fatal como o destino, na vivenda ao lado o vizinho era o vereador Manuel Sebastião Gonçalves, solteirão de 62 anos, que também tinha uma plantação de tomates que cresciam belos e gordos mais vermelhos do que os antigos comunistas e, espanto dos espantos, imunes aos ataques pardalícios. Podia lá ser! Etelvina da Conceição ao fim de três anos não se conteve e foi perguntar ao Sebastião qual o truque para salvar os tomates dele (os frutos, claro). «Minha cara vizinha, o caso é muito simples. Conhece a loja de ferragens do senhor Fernandes, aquele velhote simpático?» Não conhecia ela, mas não tinha problema.
«Eu fui lá e comprei uns tomates de chumbo iguais aos naturais. Antes dos verdadeiros crescerem boto lá os falsos, os pássaros atacam-nos, lixam os bicos, desistem e quando os verdadeiros estão prontos é só colhê-los. Olhe só: são de tão boa qualidade que a Heinz já me tem comprado uma bela quantidade para produzir o ketchup!»
«O senhor Gonçalves acha que o Fernandes ainda
terá os frutos chumbo-salvadores?» E o vizinho, deitando uma nesga dum olho
apreciador para o decote etelvinesco: «Pode ter a certeza, é só lá ir e comprar
uns quantos e ficam logo resolvidos os seus problemas tomateiros.» Meu dito,
meu feito, Etelvina foi direitinha à loja; atrás do balcão estava sentado numa
cadeira de palhinha o Jacinto Fernandes, proprietário da baiuca, com os seus 76
anos. Ao ver entrar a cliente, o velhote levantou-se, com bastante dificuldade.
«O que deseja minha Senhora?»
E a Etelvina: «Ó senhor Fernandes,
tem tomates de chumbo?» O tendeiro tossicou: «Saiba Vossa Excelência que é mais
reumático…»
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NOTA DO AUTOR: A estória não é original
– mas parece-me ter a sua piada…