É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE - 7
Um chefe de esquadra à rasca
Antunes Ferreira
No dia seguinte a primeira coisa que o tio Miguel que logo pela
manhã cedo chegara a nossa casa foi saber junto da vizinhança se alguém vira
alguma coisa e podia testemunhar o que se passara. A dona Leocádia, uma senhora
viúva que morava no apartamento em frente do nosso assistira a tudo através do
ralo da porta tendo ficado admiradíssima com o que se passava e estava pronta
para o declarar. Até se benzera ao ver o senhor Capitão metido naquelas
andanças. Assim disseram outros inquilinos o principal dos quais fora o senhor Belchior
reformado da Carris que vivia no rés-do-chão direito e usava uma cadeira de
rodas, passava o dia debruçado no parapeito da janela e até estivera no paleio
com os magalas que conduziam as “Matadores” da Segunda Guerra.
Logo em seguida a minha mãe, o tio Miguel e eu fomos à esquadra de
Santa Marta onde o chefe enquanto estivera no Exército tinha sido subordinado do
meu pai e ali apresentámos queixa. Quando a mãe se identificou o guarda de
serviço foi dizer ao chefe quem era a participante e de imediato ele veio ao
balcão e convidou-nos a entrar para o seu pequeno gabinete, tendo mandado
buscar cadeiras para nós e fiquei a pensar que devia ser todas as que havia na instalação.
Com ar afável o chefe Roberto virou-se para a minha mãe e disse
respeitosamente Vossa Excelência Senhora
Doutora Maria de Fátima que deseja deste seu humilde servidor? E a mãe
muito séria Senhor chefe venho participar
que a minha casa foi assaltada ontem pela tarde tendo sido dela retirados
vários bens cujo valor ainda não pude calcular mas que oportunamente farei aqui
chegar, Roberto uniu as mãos como se rezasse e perguntou se tinha
suspeitos. Pelo contrário, tenho culpados
e posso apresentar testemunhas presenciais dos factos.
O polícia ficou à rasca, ia caindo da cadeira, Senhora Doutora está a fazer uma declaração
muito séria e por isso, pedindo-lhe antecipadamente desculpa da pergunta, tem a
certeza disso? Bem vê, a senhora é a esposa de um oficial bem conhecido cujas
virtudes e aprumo são do domínio público e que vai partir para Angola em defesa
do solo sagrado a Pátria. Houve um silêncio de cortar à faca, cortado
apenas por umas moscas que zumbiam o que levou um guarda a entrar no gabinete, filha da pu… de varejeira! Ó Simões dobre-me
essa língua, está aqui a esposa do senhor capitão Saraiva Mendes…
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Camião "Matador" |
E virando-se para a minha mãe, o chefe Roberto dizia a Senhora que… E ela sem papos na
língua pois senhor chefe o assaltante foi
o meu marido acompanhado de um sargento e de mais militares usando dois camiões
do Exército de acordo com testemunhas de marca “Matador”. O polícia
levantou-se num pulo, abriu os braços explodiram-lhe os olhos, tingiu-se-lhe a
face da cor de tomate maduro, tirou um lenço do bolso das calças, limpou a
testa perlada de suores e voltou a sentar-se. O senhor Capitão Saraiva Mendes? Pode lá ser? Podia. E com frases
curtas e sintéticas a mãe corroborada pelo tio Miguel resumiu a ocorrência
perante o siderado agente da autoridade.
E a terminar veio a última
declaração da minha mãe. Eu não quero
mover uma acção contra o meu marido do qual adianto estou a tratar da separação
já que pela Igreja não posso divorciar-me. Pretendo apenas que seja registada a
queixa, ouvidas as testemunhas, ouvido o arguido ou seja o capitão Gilberto
Saraiva Mendes e quem ele indicar e depois destas diligências concluídas
dar-me-ei por satisfeita requerendo cópia do processo e propondo o seu
arquivamento, proposta que deverá ser dada conhecimento à parte contrária. Roberto
apenas disse que não estava dentro da sua competência assim proceder mas que ia
dar conhecimento dela aos seus superiores e depois informaria em conformidade.
O tio Miguel esclareceu que o assunto passaria a correr por intermédio do
advogado da Senhora e que esta oportunamente o comunicaria.
Dali rumámos á Baixa, mais precisamente à rua dos Sapateiros para
irmos à Loja Sol dos irmãos Mesquita onde a família comprava todos os
electrodomésticos lá para a casa a fim de repor os que o meu pai tinha levado.
Ora nós tínhamos sido dos primeiros a possuir televisor logo que a RTP começara
a transmissões experimentais da Feira Popular em 1957 e por isso o meu pai fora
logo comprar um televisor Grundig que custou a enormidade de quatro contos e
quinhentos escudos. O salário de um capitão mal passava dos quatro contos…
Porém o senhor Raul Mesquita esfregou as mãos de contente quando a
mãe lhe fez a encomenda para ser entregue “hoje
mesmo da parte da tarde, há sempre gente em casa”. Um frigorífico Bosch,
aquecedores diversos, Um fogão-forno De Luxe da Fábrica Portugal, um
esquentador Vulcano, tudo coisa fina, do melhor que havia e para rematar a
compra um móvel Philco com televisor, rádio e gira-discos. Um cheque (com
cobertura e um sorriso malandreco), ó
minha Senhora, saiba Vosselência que eu nunca duvidaria da qualidade de um
cheque passado por si.
Passámos pelo colégio para trazer de volta a casa a Leonor e o
Frederico. Este vinha todo impante: trazia uma folha de papel branco com uns
gatafunhos feitos com lápis de cores. Era a sua primeira “obra artística”.
Arrisquei um tanto receoso Maninho o que
é? O catraio pianou, os dentes reluziram é pussôa. Dei uma gargalhada e insisti é a Nela? A Maria Manuel era a educadora por quem ele tinha uma
adoração que de resto era correspondida pois ela adorava-o. É muto munita. Eu gosto muto. Então
estendi-lhe a mão, ele estendeu-lhe a mãozita dele e eu fingi que não a
segurava bem, deixei-a cair o que motivou uma barrigada de riso do Frederico e
minha, era uma brincadeira muito frequente que dava sempre esse resultado. Finalmente
um bacalhau bem “abanado” e mais gargalhadas e mais guinchos a roçar a
histeria. Pronto. Vamos comer e depois deitar.
Entretanto tinham chegado os da Loja Sol e começaram a entrar as
compras e a instalar o esquentador. Também tinham aparecido o Olegário e o
David com o intuito de ajudar a arrumar a casa depois de terem entrado os novos
componentes. E foi justamente este que trouxe a novidade. O meu pai ia embarcar
para Angola daí a duas semanas no Vera Cruz um grande paquete, o maior de
Portugal.
(Continua)