2019-02-06



SANGUE EM GOA

Primos a 8 mil quilómetros



«No fundo, pouco interessa saber
se a faca tem sentimentos
,o que interessa é que corte bem»
Pepetela

Antunes Ferreira
Tudo começara com uma chamada via Skype. Estava a navegar tranquilamente na blogosfera – um passatempo que se transformara numa mania quase uma dependência quando fora alertado para uma chamada para meu espanto vinda de Goa. Não fizera a menor ideia de quem se tratava e qual o motivo desse contacto inopinado mas aceitara com a curiosidade correspondente. Mas, com mil diabos…

Antes de prosseguir com a estória quero apresentar-me o que para mim representa o mínimo da boa educação e desta que recebi desde miúdo uso e abuso quotidianamente. Chamo-me Diogo Manuel Santos Bragança, sou Inspector-chefe da Polícia Judiciária reformado, tenho 48 anos, viúvo sem filhos, nascido em Lisboa e vivo na bairro do Restelo das casas económicas (?) acima das quais ficam as vivendas do pessoal com massas antes escudos hoje euros, muitas embaixadas e etc.


Que vinha fora de mão!


Quando tinha 28 anos estava casado com a Maria Eduarda, farmacêutica de 27 que já estava grávida de seis meses, uma menina que se iria chamar Cristina como a minha mãe que  seria a madrinha. Tínhamos ido passar o fim de semana a casa dos pais dela em Castro Verde e quando íamos a entrar no acesso à A2 um filho da puta que vinha desembestado fora de mão matou-ma bem como a nossa futura filha. E o gajo safou-se, bem como eu, ele com um braço partido em dois lados, quatro costelas e várias contusões e equimoses e eu com a fractura das duas pernas, traumatismo craniano e também contusões e equimoses. Para mim duas operações e três semanas de hospital; fui ilibado de quaisquer culpas no acidente. 

Mas, no fundo culpabilizei-me ainda que sem razão e esse sentimento perseguiu-me anos a fio. Entretanto como era considerado um excelente profissional fui progredindo na carreira e finalmente encontrei-me no topo dela. Pelo caminho e no aspecto sentimental tivera duas ou três namoradas mas nenhuma me convencera e todas tinham ido à vida. Porém a pouca sorte parecia não se afastar de mim. Tal como o fado cantava, tinha o destino traçado – e ele, pelos vistos, não seria famoso.

A patalogista forense Nikki debruçada sobre um cadáver

O que me ajudara a tornar-me um internautodependente fora o facto de ter criado um blogue com o título um tanto pomposo «Os casos do reformado em caso» pelo qual se podia ver a adoração que tinha pelo advogado/investigador Perry Mason uma imortal criação no domínio do policial pelo Erle Stanley Gardner. De resto na minha biblioteca que era bem abastecida a literatura policial tinha, naturalmente, lugar destacado. Além disso seguia cuidadosa e atentamente as séries temáticas da FOX CRIME e da AXN, a principal das quais era “The Silent Whitness”,"A Testemunha Silenciosa" pelas madrugadas. Ninguém me obrigava a levantar-me a toque de alvorada e a dona Perpétua que era minha governanta, ou melhor fac totum não se atrevia a acordar… Nunca!

Quando a ligação se estabeleceu eram três da madrugada no ambiente de trabalho surgiu um senhor goês que me pareceu de meia idade e que me disse logo ”Bom dia primo!” Passei-me. Primo? Eu? Porra! Mas de onde saía este gajo e logo a chamar-me assim? Devo ter feito uma tal cara que o homem prosseguiu “Não se amofine! Chamo-me Salviano Francisco Xavier  Albuquerque de Noronha e Braganza com z porque agora por cá a família teve de deixar cair o cê cedilhado que não se encontra nos teclados… Mas claro que somos da mesma ascendência. Primos muito afastados, mas… primos!”

Penso que fiz um sorriso de circunstância enquanto digeria tão rapidamente quanto possível essa carilada (vinda de Goa uma tal novidade tinha forçosamente de ser… caril) e retorqui “Pois muito me diz e tenho de confessar que não estava à espera de uma tal coisa às tês horas da manhã…” E o primo Salviano “O primo desculpe mas os fusos horários são uma maçada, por certo acordei-o, faz-me o obséquio volte para a cama que eu depois torno a ligar-lhe. É que preciso mesmo da sua ajuda. E sendo da família…”  

Em resumo acabava de ser fodido a oito mil quilómetros de distância via Skype e ainda por cima por um alegado primo que não sabia que existia mas que pelos vistos era mesmo meu primo ainda que sem exibição de árvore genealógica muito menos certidão de idade mas na ocasião seria difícil… “Não te preocupes meu caro Salviano – e logo acrescentei para reforçar os laços familiares ora descobertos – nós por cá entre primos tratamo-nos por tu e assim farei se não te importares…”  E ele de imediato “Por aqui usamos mais você, mas vamos habituar-nos pode continuar, primo Diogo. E se não se vai deitar vou explicar-lhe sucintamente ao que venho dar-lhe este incómodo. Trata-se de um mistério…”

Olá, mistérios eram comigo, eram desde sempre a minha profissão, a minha vida, o curso de direito servira-me de muleta para a investigação e agora surgia-me um ainda por cima em Goa, que com Damão e Diu constituíam o antigo Estado Português da Índia até que a 18/19 de Dezembro de 1961 a então União Indiana a invadiu com a intenção de o libertar do alegado colonialismo português. “Muito bem, Salviano, diz-me o que pretendes de mim pois estou completamente ao teu dispor!”


O enorme riso dele...


O enorme riso dele no centro de uma barba e bigode bem aparados foi resplandecente. Na face morena carregada os olhos brilharam-lhe tanto quanto os dentes branquíssimos. “Tinha absoluta certeza de que o primo Diogo aceitaria o encargo e por isso tenho já tudo preparado. Quando pode vir? Não quero incomoda-lo; gostaria que fosse tão breve quanto lhe fosse possível, mas não queria desviá-lo de qualquer assunto mais premente que já tenha programado e…”

Atalhei-lhe o discurso, nestas coisas o pragmatismo é o mais importante, como dizem os brasucas conversa mole para encher pneu não dá certo, “Por mim, pode ser já hoje, talvez amanhã a fim de deixar arrumadas algumas coisas, poucas, não tenho nada de especial para me ocupar é só fazer as malas comprar os bilhetes do avião e…” Só que desta feita foi o Salviano que me interrompeu pedindo-me muitas desculpas de o fazer pois estava tudo óquei, só precisava de reconfirmar a reserva dos bilhetes na Emirates – Lisboa /Londres /Londres /Mumbai / Mumbai / Dabolim na Air India para o dia seguinte. Ele estaria à minha espera no terminal goês.

Fui deitar-me e sonhei com coqueiros e praias com água quente a 28/29º.

(Continua)



NE - Este é o primeiro episódio de um conto (?) policial que decorre em Goa onde o autor (que como é sabido é terra de que é fanático...) se encontra. Trata-se de uma primeira tentativa neste género de literatura, mas duas circunstâncias me levam a isso: primeiro, tal como o protagonista sou um "doido" pelo policial e segundo porque há sempre uma primeira vez. Oxalá não me espalhe...

*A foto do cabeçalho representa uma prática goesa: à noite e à beira-mar convive-se, bebem-se uns copos à luz de pequenas velas ou candeias. Podem crer que é lindo...