*Quando os pombos levam na anilha
Antunes Ferreira
Era uma
garrafa. E trazia algo dentro dela; tinha sido arrojada pelas últimas ondas
e estava meio enterrada na areia húmida calcada por inúmeros pés de tamanhos
diferentes nus e ou calçados de sandálias, sapatos, havaianas ou solas de pneus
afeiçoadas a extremidades humanas, bem como patas de animais, sobretudo de
gaivotas. Sebastião agachou-se e pegou nela. Vidro verde escuro próprio de
vinho tinto. O oceano levara-lhe o rótulo – se o tivera alguma vez.
Outono
tardio com frio bastante para usar samarra e boné de marinheiro com uma
âncora bordada mas tudo muito gasto por via do uso prolongado. Sebastião Joaquim Marques de Carvalho, alcunhado O Marques do Pombal não só pelo nome mas
também porque era um columbófilo, filiado na Federação Portuguesa de
Columbofilia não era um destacado elemento daqueles cujos resultados eram
motivo de orgulho nacional a nível de pombos-correios.
Registavam-se um campeão
olímpico (havia Jogos Olímpicos Columbófilos), vários segundos e terceiros
lugares nessas competições e noutras como por exemplo as que englobavam as
ibero-americanas de línguas românicas, outras intercontinentais e em todas a
columbofilia portuguesa não deixava os seus créditos em mãos alheias.
Como estava desocupado (tinha sido despedido) Sebastião levara consigo o Press Release
da Federação e ia lendo que em
Portugal são realizadas corridas de pombos entre Fevereiro e Junho de cada ano,
sendo que nos restantes meses existem outras competições columbófilas,
nomeadamente os dérbis. O número de pombos está estimado em 4,5 milhões!
A columbofilia é a uma modalidade
desportiva relacionada a corridas entre pombos-correio. Os columbófilos (criadores de
pombos-correio) potencializam as capacidades físicas e de orientação dessas
aves para participação em campeonatos. Os animais desenvolvem velocidades
máximas entre 87 km/h e 102 km/h em distâncias que podem chegar a
mais de 1.200 quilómetros,
A prática
está regulada oficialmente.
Nomeadamente pelo Lei 36767 de 26 de Fevereiro de 1948
(Lei de protecção ao pombo-correio): Determina que é necessário estar inscrito
na Federação Portuguesa de Columbofilia para poder ter pombos-correio ou
comprar anilhas oficiais e que o dever de quem encontrar um pombo-correio
extraviado é comunicá-lo de imediato à Federação Portuguesa de Columbofilia,
que tratará de identificar o proprietário a fim de se proceder à recuperação do
pombo. Após a recepção da comunicação emitida pela Federação, o proprietário
dispõe de 15 dias (corridos) para a efectiva recuperação do pombo.
Mas, o que é, afinal esta ave tão admirada? O atual pombo-correio é o resultado de
cruzamentos de algumas raças belgas e inglesas, efectuadas na segunda metade do
século XIX. Esse padrão de pombo foi continuamente selecionado a fim de apurar
duas características principais: a capacidade de orientação e um morfético
atlético.
Por agora Sebastião guardou o boletim informativo, pegou na garrafa que aparentava
ser muito velha e dirigiu-se a um bar restaurante que existia logo acima da
praia e onde se encontravam apenas dois velhos clientes jogando gamão e um par,
também da terceira idade, ocupado com o dominó. Mandou vir uma bica e um pastel
de nata, ao que o patrão o aconselhou a optar pelos de feijão feitos pela
mulher dele e acabados de sair do forno. Assim foi.
O lacre que tapava o gargalo da garrafa estava intacto, apenas um tanto amarelecido
pelo sal do mar. O dono do estaminé, sôr Malaquias emprestou uma faca da
cozinha para abrir o lacrado e poder-se extrair o conteúdo. Tratava-se dum
papel, melhor dizendo uma mensagem em castelhano antigo datada de 17 de Marzo
de 1756 oriunda de Montevideo e assinada por Don Fernando Cruces Carrasco.
Nela o autor relatava: “Estoy atrapado aquí en esta isla
por
haber llamado hijo de puta al gobernador general de la provincia, lo que es
verdad.
Pero
la sentencia que me ha dado el tribunal es de por vida y aislada para siempre.
¡Mierda!
Por
eso escribo este mensaje que arrojo al mar con la esperanza de que alguien lo
lea y venga a salvarme. Espero y confío en Dios Nuestro Señor,”
Era o Outubro de 2021, distavam
265 anos entre a entrada da missiva na garrafa e a sua saída ali no Beira
Mar do sôr Malaquias; não havia nada a fazer, a não ser acolher a proposta
do proprietário: para comemorar o achado podíamos beber umas bejecas com uns
nacos de salpicão de Freixo de Espada à Cinta que era a terra dele. Excelente.
E foi então que os
temas se cruzaram. De Freixo era também natural o sacana que me despedira por
causa dos pombos correio. E logo o valente Gustavo Malaquias: “Sei quem é o
pássaro bisnau. É o engenheiro Artur Margaride, que dizem que é maricas…” E
acrescentou: “Eu, pelo menos, não punha as mãos no fogo por ele; já na
escola primária onde andámos juntos se falava…”
Sebastião percebeu. Sem qualquer intenção premeditada tinha
perguntado no escritório, na frente do Margaride, se era verdade que os pombos
correio levavam mensagens na anilha. Ao que o Silvestre da Tesouraria comentara
com ar sardónico: “Na anilha? Tás a gozar com quem?”