2018-05-31

É DIFÍCIL TER UM IRMÃO MONGOLÓIDE (2) 




Antunes Ferreira
No fim-de-semana a tia Elsa tinha tudo arranjado para receber a mamã e o neófito – foi assim que ela me ensinou a dizer – que deviam chegar antes do almoço. Como ela não podia dar o peito ao Frederico pois tinha os bicos dos peitos pouco salientes já se tinham comprado umas duas latas grandes de leite em pó Nido da Nestlé para ser dado em biberão.

O maninho ia ficar no quarto dos pais num berço em madeira polida torneada que já vinha da avó Natália passara  para o Henrique, o primogénito em seguida para a mãe Maria de Fátima e depois para a mana Elsa, mana mais nova e o “inquilino” seguinte fora eu, quatro anos mais tarde a Leonor e agora o Frederico. Era mais uma cama pois tinha dormido nela até que chegara a Leonor ou seja aos meus quatro anos. Sempre pensei que era uma espécie de jaula como as do jardim zoológico só que sem grades por cima…
 
Carrinho de bebé
O enxoval estava um mimo. Para o baptizado o novo mano ia usar o fato/vestido que eu usara e para cúmulo da minha felicidade o padrinho seria eu. Nem queria acreditar. De resto e seguindo as determinações paternas no meu caderno de encargos constava ainda motorista do carrinho do bebé, mas sem carta de condução e lavar-lhe a chupeta sempre que ela caía no chão. Aliás o Frederico era um puto porreiro quase nem chorava e se o fazia mais parecia um miado de gatinho perdido da sua ninhada.

Mas o melhor de tudo eram os ensinamentos que a tia Elsa me fornecia sobre as “técnicas” de lidar com a criança. Era ela que lhe dava banho, depois de caído o cordão umbilical, também lhe mudava as fraldas, dava o biberão, apanhava a chupeta quando ela caía no chão e outras ao mesmo tempo que me ia ensinando depois de eu chegar do colégio. Sempre comigo a assistir, para ver, dizia ela como São Tomé... E além disso ainda me proporcionava tempo para brincar.

Porém não havia só obrigações; tinha a vantagem de ser o primogénito, um quarto só para mim ao lado do dos meus pais. E certa noite, quando me levantei para ir à casa de banho a fim de fazer chichi ouvi um barulho de discussão que vinha do quarto do casal. Fiquei alarmado. Nunca tal acontecera ou, pelo menos, ouvira. Sem fazer ruído sentei-me no chão e encostei o ouvido à porta. Sabia que era feio mas a curiosidade venceu. E pior, espreitei pela fechadura, os candeeiros das mesinhas de cabeceira estavam acesos e os pais discutiam num tom acentuado que ia aumentando de volume. A mãe sentada na cama e o pai andando para cá e para lá.

Consegui descortinar que o berço estava vazio e logo ouvi a explicação “Pelo sim pelo não, a Elsa levou o menino para o quarto dela para podermos elevar a voz se for necessário. É que pela primeira vez tenho de te dizer que a desgraça que nos aconteceu é por culpa tua!” O meu pai abriu muito os olhos e retorquiu num brado “Minha??? Porra!!!” Fiquei estarrecido pois nunca ouvira dizer tal palavra na nossa casa.

 
Será verdade?


Sim, sim, tu foste o culpado, com a mania de tropa de quereres ter mais um filho que seguisse a carreira militar já que o Armando não tem queda para isso e sabias muito bem que para mim com 37 anos a gravidez era de risco!!! E o Dr. Fontes bem alertou para o perigo,” Estava de vez o caldo entornado, Mas haveria mais. “Maria de Fátima (o pai Gilberto tratava a mamã por Fatinha…) com tal acusação cortaste a ponte que ainda nos ligava. Vou deixar-me de fingimentos. Mas também te quero dizer nas trombas que não gosto de ser corno e o puto não deve ser meu mas do teu amante o padre Júlio com quem andas a foder que nem uma vaca com cio… És uma puta! Eu já desconfiava! Falsa beata! Rata de sacristia!!!!” E como a mamã se tivesse levantado com os olhos esbugalhados de espanto o pai levou a mão direita atrás e deu-lhe duas chapadas com tal violência que a atirou sobre a cama!  

Para mim já bastava. Levantei-me num salto silencioso e entrei no meu quarto fechando de imediato a porta muito devagarinho. Mas ainda ouvi o pai bater com estrondo a porta do quarto deles. Abandonara o quarto com uma ultima ameaça “Nunca mais aqui entro!!!!” Meti-me na cama e não conseguia adormecer por mais que fechasse os olhos. Pelo que tinha escutado eu também fora parte da causa da doença do Frederico. Estava amaldiçoado e tinha de expiar esse pecado que por certo era quase mortal. Mas que berbicacho.

De manhã como era habitual o pai levou-nos ao colégio no carro dele mas durante o caminho foi-nos alertando que durante uns meses que não sabia quantos tinha de ausentar-se para o estrangeiro e por isso não podia transportar-nos “mas, certamente a vossa mãe pode fazê-lo usando o carro dela” e reparei que ele acentuara o possessivo. Estava o caldo esturrado, ou como dizia a Lucinda, que era a nossa cozinheira, tinha chegado o bispo ao fundo da panela.

...dormia sossegadinho



Quando voltamos do colégio o Frederico dormia sossegadinho e a mãe mais a tia Elsa chamaram-me à sala de estar. Enquanto a Leonor ficava no quarto dela a brincar às donas de casa com uma amiga a Rosinha filha dos nossos vizinhos e amigos Fonsecas. “Armando senta-te aqui ao pé de nós pois temos de conversar é um assunto muito sério mas desde já te digo que não fizeste nada de mal. Porém, a partir de hoje…”
(Continua)