2018-09-27


VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DA SÍNDROME DE DOWN - 14





Antunes Ferreira
Eram oito horas da manhã e já me encontrava a arrumar os papéis que estavam em cima da secretária do meu gabinete no  Supremo Tribunal Militar. Chegara cedo depois de no outro dia ter voltado já pela noite com a Maria Rita no último voo da Ibéria de Barcelona  onde tínhamos ido receber a última desilusão na clínica do professor Pau Puigbó o mais reputado ginecologista europeu, especialista em reprodução in vitro. Já estávamos habituados a negas mas mesmo assim vínhamos muito tristes.

O dia começara com uma madrugada cinzenta ameaçando chuva, estávamos em Novembro nada mais natural, a meteorologia (quando eramos putos na brincadeira dizíamos mentirologia…  porque quase nunca acertavam) ameaçava chuva grossa  com trovoada especialmente nas terras altas com possibilidade de queda de neve nas terras por força do já célebre anticiclone situado a noroeste do arquipélago dos Açores, fórmula calina. Meu dito, meu feito. E, realmente pelas sete da matina começou a cair uma carga de água que nem uma robusta arca do Noé aguentaria à superfície.

Chovia a potes! Lembrava-me da explicação da minha professor de inglês no colégio sobre a estranha expressão dos bifes que diziam:  The weather is crazy, two hours ago it was sunny but now it’s raining cats and dogs! Essa “coisa”  explicava a dr.ª  Marina Santana não significava literalmente que estava a chover gatos e cães do céu, e sim que está chovendo torrencialmente. E a malta ria-se na galhofa enquanto a setôra tentava impor a calma e apaziguar os ânimos. E acentuava que a expressão inglesa se podia traduzir como “O tempo está maluco, há duas horas estava um dia de sol e agora chove a potes!”


Chovia a cães e gatos, oops, a potes...


Só de sair do carro e chegar à porta do edifício a correr apanhara uma molha que até o porteiro me dissera: “O meu capitão doutor está que nem um pinto!... Vá secar-se…, olhe que ainda apanha uma constipação lixada que pode dar em pneumonia e agora com as viroses ou bactérias ou essas merdas, desculpe-me a palavra, que por aí andam, ainda arranja um trinta e um do caral…go”. Sosseguei o Simões que tinha sido meu segundo sargento antes de ser “promovido” a “almirante” (a farda de porteiro com galonas doiradas e tudo a isso levava…) e subi para o meu gabinete.

Foi então que bateram à porta. Resmunguei para os meus botões “Tão cedo e já me estão a chatear…” , mas, em voz alta: “Entre!” Era o Frederico com cara de pau. Chegou-se à minha frente deu-me os dois beijos da praxe e disse-me que tinha um caso muito grave para me contar. Tentei desdramatizar a situação e primeiro que tudo pedi-lhe que se sentasse no sofá duplo que ali tenho tomando eu lugar ao lado dele, “Então, mano, diz-me lá o que se passa, mas vai com calma, tá?” Frederico, olhos nos olhos desfechou, tão tranquilo quanto possível: “A Leonor anda metida na droga.” 


Anda metida na droga...


Fiquei entre o estupefacto e o estarrecido. “Mas, tens a certeza?  E ele com um ar pesaroso “Absoluta, mano, absoluta, aliás ela já mo confessou; nem queria acreditar embora já desconfiasse que havia mouro na costa e a Elena também pensava assim.” E continuou encanto torcia as mãos mas com uma voz serena “Nem tu nem a Maria Rita podiam ter dado conta do que se passava, ultimamente iam tão pouco lá por casa assoberbados com os vossos problemas e tão grandes que eles são, a mãe continua muito distraída   e ainda bem para não se pôr  a matutar em coisas tristes  que não se apercebeu do que se estava a passar… ” 

Não queria acreditar no que ele me estava a revelar. A nossa família pelos vistos não tinha direito ao sossego.  Eram umas atrás de outras. E novamente o Frederico estava no olho do furacão. “Bom, Armando, senta-te e acalma-te se te é possível que eu vou contar-te a estória toda abreviando-a porque senão estaríamos aqui até ao fim do mês. Isto tudo teve a sua origem no filho da puta do namorado!” Se estava pasmado duplamente plasmado fiquei pois nunca ouvira o Frederico dizer palavrões. Mas ele prosseguiu com aparente tranquilidade: “O gajo toca guitarra eléctrica num grupo qualquer que se julga melhor do que os Beatles e de manhã já acorda passado, situação que conserva religiosamente durante todo o dia e toda a noite!”

Resumindo, a Leonor começara a faltar às aulas no Conservatório onde estudava piano. Ligara-se ao tal sacana de seu nome “artístico” Golfo que dizia que    também que estudava lá mas apenas galara a moça que tinha ido na conversa dele. Daí às passas fora um pulinho (palavras dela quando confrontada por ele Frederico) e depois seringa, cocaína, anfetamina,
Sem legenda

LSD, enfim uma panóplia do diabo. A Leonor passara a dormir ou melhor e aí o Frederico acentuava com ar muito carregado “foder com o filho da puta e não sei que mais!” Já falara com os tios Miguel e Jaime e com a tia Elsa e no dia seguinte a Leonor iria dar entrada na Casa de Retiro e Recuperação Anjo da Guarda situada acima da Malveira da Serra onde iria começar com a Metadona, tratamento de desintoxicação que o tio Miguel acompanharia a par  com os médicos da instituição. Era cara mas tudo indicava que valia a pena. E para nós o dinheiro não era problema.

E era tudo, o Frederico calou-se e eu fiquei assarapantado olhando para ele. “E tu, mano, tomaste a teu cargo isso tudo? Desenrascaste-te? É certo que eu e a Maria Rita andávamos muito ocupados e muito tresmalhados, mas se soubéssemos o que estava a acontecer logo participaríamos no que fosse preciso e era muito. Nunca, mas nunca te deixaríamos só. Tiveste o apoio dos tios e da tia, mas iniciativas foram tuas. Para mim foste um herói.” E  não me contive, levantei-me, ele também e abraçámo-nos forte e demoradamente, corriam-nos lágrimas pelas faces quase tão grossas como as cordas de agua que não paravam de cair lá fora. Que raio de dia! Que filho da puta de dia! – disse para o Francisco, porque a partir de então já o podia fazer, depois do que ele  dissera.

Daí que tivesse de adiar os papéis que estavam sobre a minha secretária pelo que chamei o meu adjunto e o escrivão e pedi-lhes o favor de tratarem das formalidades necessárias para o adiamento de alguns processos bem como fiz uma delegação de poderes específica como meu substituto formal ao adjunto. Fui de seguida falar com o juiz presidente do Tribunal e dei-lhe conta do que se passava explicando-lhe que por motivos imperiosos da minha vida pessoal tinha de ausentar durante uns dias não sabendo quantos. Mas, logo que tivesse tudo resolvido com a rapidez possível apresentar-me-ia. Apresentei-lhe o Frederico. Já podia sair com ele.


Com a mão na...


Duas tarefas para começar me aguardavam: falar e despedir-me da Leonor e informar a mãe do que se estava a passar. Depois, bem, depois desejava ir encontrar o tal Golfo que o Frederico também me informara que além de todas as “qualidades” que me referira também era grafiteiro. Talvez o encontrasse não com a mão na massa mas na lata de tinta de pressão ou no    marcador. Bonita ia ser a “conversa”. Teria de me conter, mas se o cabrão levantasse a grimpa estava mesmo fodido – partia-lhe os cornos! Mesmo a pensar retomava o linguajar de caserna.

Mas, acima disso tudo pairava a imagem dum Super-Homem sem capa nem kripton que dava pelo nome de Frederico e que levava com ele a síndrome de Down. Quem diria?