2018-10-23


VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DA SÍNDROME DE DOWN -15



Antunes Ferreira
Três acontecimentos para mim significativos num só dia: 5 de Outubro de 2000. Um novo século, a implantação da República em 1910 e o dia do meu aniversário. Ainda por cima mais uma data redonda – completava 50 anos. Desde a última vez que estive convosco quantas coisas se passaram, quantos dramas aconteceram na minha vida, quantos momentos felizes ocorreram, em suma quantas voltas deu a vida. A vida que num momento é mãe, no seguinte é madrasta, hoje acaricia, amanhã mata.

Relógios digitais

Volte-se, porém atrás, independentemente do arrancar das folhas de um qualquer calendário que esse sim inexorável não para, não se compadece com satisfação ou com sofrimento, cadenciado pelos ponteiros de um relógio analógico ou de um digital. Cada vez mais as máquinas vão tomando conta de nós, cada vez mais vão-nos escravizando, cada vez mais vão substituindo a nossa inteligência pela sua inteligência informatizada. E contra isso não há gladiador por mais forte que valha aos homens.

Estava-se na altura em que tinha de informar a minha mãe de que a Leonor tinha sido apanhada na teia terrível da droga e também despedir-me da minha irmã antes dela partir para a Casa do Retiro e Recuperação Anjo da Guarda e ainda tentar encontrar o tal Golfo para lhe dar uns sopapos coisa pequena até lhe rebentar os fagotes. Mas, antes disso tudo, tinha de conversar com o Frederico que era sem dúvida o mais importante desta cegada para que juntos desatássemos o nó górdio que se estabelecera. Ele próprio já me dissera que precisava de falar comigo e portanto assim aconteceu.

Sem legenda

As folhas outonais rodopiavam numa dança louça pautada pelo vento enquanto um céu carregado prenunciava chuva talvez trovoada quando nos sentámos no Porto de Santa Maria em frente do mar no Guincho para um almoço que seria mais de paleio do que comida mas que nos fez muitíssimo bem pois saboreámos tudo o que dissemos – mais do que os mariscos que tínhamos encomendado que eram excelentes – alimentámos os nossos egos, abrimos os nossos corações, aliás como sempre fazíamos, enfim fomos dois irmãos sem peias em segredos.

O meu mano trazia com ele uma ansiedade graúda: “Tu sabes, Armando, a Elena e eu somos muito diferentes no que toca ao grau de deficiência.” Fiquei com a verdadeira pele de galinha, claro que sabia, mal fora se não soubera, mas mantive-me mudo e quedo. “Dentro da pouca sorte que me caiu na vida saiu-se a grande, el Gordo, como dizem os espanhóis, a taluda do Natal –  bafejou-me com a inteligência e bastante!” Nunca o ouvira falar assim sobre a sua diminuição. Mas ele continuou: “Sei que é raro, mesmo muito raro aparecer um caso como o meu. O tio Miguel disse-me quando lho perguntei que talvez um em mais de cem mil. Sou um sortudo!...”

Que mais poderia dizer-lhe? “Posso dar-te um abração?” E ele  tranquilo: “Claro que podes, mas ainda não acabei, falta muito… Pelo contrário e infelizmente a Elena é uma joia de mulher mas é muito limitada, anda sempre a meu reboque, não a posso deixar sozinha. É uma Down típica, com tudo o que isso representa. Eu amo-a assim, ela adora-me. Tenho a certeza de que se pudesse punha-me num pedestal e adorava-me todos os dias… Tenho medo que dê um passo errado!”

Filho? Missão impossível

Eu estava siderado. “Agora meteu-se-lhe na cabeça ter um filho!” Com seiscentos macacos pensei para com os meus botões, mas que raio de ideia, caramba! “Mas eu já lhe disse que os homens com a síndrome de Down são estéreis e portanto nada feito. Ficou tristíssima e tem vindo a perguntar-me se era possível irmos aos médicos a que foste com a Maria Rita, talvez houvesse uma esperança… Tenho a certeza que não sabe o que é ser estéril. Mano, estou metido numa grandíssima alhada. Que hei de fazer? É preso por ter cão e preso por não ter!!!…”

O Super Francisco afinal não era tão super como isso. E eu sentia-me impotente para o ajudar. Dar-lhe um conselho? De conselhos precisava eu, como daria eu um ao meu mano? De resto lá dizia o ditado “entre marido e mulher não metas a colher”. Não era especificamente o caso. Um irmão tem sempre de estar à disposição de outro irmão. E não é apenas uma questão de solidariedade. É algo mais, indefinível, tal como a saudade ou o desenrascanço que só os portugueses sabem o que são e as outras nacionalidades não entendem nem conseguem traduzir. Os ingleses da Enciclopédia Britânica andam há 29 anos a tentar encontrar uma tradução para… desenrascar…

Metemo-nos no meu Honda para voltarmos a Lisboa e a conversa foi descaindo para os encontros com as nossas mãe e irmã e bem assim aquilo que eu tentava fazer que era encontrar o filho da puta do Golfo. E foi então que o Frederico retomou a palavra: “O bandido era duma família nobre e o que não era normal rica. O avô metera-se em negócios diversos e jogara na bolsa e tivera muito sucesso. Era o D. Francisco Lorena Moutinho de Mesquitela e o filho D. Mário Hernâni seguira-lhe as pegadas aumentando os bens e investimentos tendo casado com uma Dona Isabel Maria Castro Mendanha Ruivães de Reguengos também rica proprietária de vinhos de marca”

Sem recorrer ao seu laptop o meu irmão continuava dando mostras da sua boa memória: “Do enlace resultaram quatro filhas e dois filhos sendo que o último foi o D. Mário João Ruivães Lorena de Mesquitela mais conhecido pelo apodo de Golfo, a ovelha negra da família, que aliás também não era lá grande espingarda. Falava-se em negociatas de armas e outras traficâncias mas qualquer membro dessa gente tão elevada numa fora apanhada nas teias da Lei”.
O ditador Mugabe


Estávamos a chegar à capital e tocou o telemóvel do Frederico que iniciou uma longa conversa entremeada por comentários da parte dele: “Não me digas, não me digas” e “Não posso acreditar” e ainda “Não é possível, não é possível” e mais à frente “Estás a gozar comigo? Ou é verdade?” E a terminar “Foda-se!!!!!” Estacionei em pulgas e perguntei-lhe o que acontecera. “Era o Julião Baptista, o Chicharro, o meu principal bufo, a informar-me que o cabrão do Golfo há quinze dias tinha esfaqueado um segurança dum clube no Cais do Sodré matando-o. Porém, por artes de «magia negra» conseguira safar-se e pirara-se para o Zimbabwe onde ingressara como mercenário no Corpo de Segurança do Presidente-ditador Robert Mugabe. Já não o conseguimos apanhar!!!”
(Continua)