VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DA
SÍNDROME DE DOWN -15
Antunes Ferreira
Três acontecimentos para mim significativos num só dia: 5 de
Outubro de 2000. Um novo século, a implantação da República em 1910 e o dia do
meu aniversário. Ainda por cima mais uma data redonda – completava 50 anos.
Desde a última vez que estive convosco quantas coisas se passaram, quantos
dramas aconteceram na minha vida, quantos momentos felizes ocorreram, em suma
quantas voltas deu a vida. A vida que num momento é mãe, no seguinte é
madrasta, hoje acaricia, amanhã mata.
Relógios digitais |
Volte-se, porém atrás, independentemente do arrancar das folhas de
um qualquer calendário que esse sim inexorável não para, não se compadece com
satisfação ou com sofrimento, cadenciado pelos ponteiros de um relógio
analógico ou de um digital. Cada vez mais as máquinas vão tomando conta de nós,
cada vez mais vão-nos escravizando, cada vez mais vão substituindo a nossa
inteligência pela sua inteligência informatizada. E contra isso não há gladiador
por mais forte que valha aos homens.
Estava-se na altura em que tinha de informar a minha mãe de que a
Leonor tinha sido apanhada na teia terrível da droga e também despedir-me da
minha irmã antes dela partir para a Casa do Retiro e Recuperação Anjo da Guarda
e ainda tentar encontrar o tal Golfo para lhe dar uns sopapos coisa pequena até
lhe rebentar os fagotes. Mas, antes disso tudo, tinha de conversar com o
Frederico que era sem dúvida o mais importante desta cegada para que juntos
desatássemos o nó górdio que se estabelecera. Ele próprio já me dissera que
precisava de falar comigo e portanto assim aconteceu.
Sem legenda |
As folhas outonais rodopiavam numa dança louça pautada pelo vento
enquanto um céu carregado prenunciava chuva talvez trovoada quando nos sentámos
no Porto de Santa Maria em frente do mar no Guincho para um almoço que seria
mais de paleio do que comida mas que nos fez muitíssimo bem pois saboreámos
tudo o que dissemos – mais do que os mariscos que tínhamos encomendado que eram
excelentes – alimentámos os nossos egos, abrimos os nossos corações, aliás como
sempre fazíamos, enfim fomos dois irmãos sem peias em segredos.
O meu mano trazia com ele uma ansiedade graúda: “Tu sabes, Armando, a Elena e eu somos muito
diferentes no que toca ao grau de deficiência.” Fiquei com a verdadeira
pele de galinha, claro que sabia, mal fora se não soubera, mas mantive-me mudo
e quedo. “Dentro da pouca sorte que me
caiu na vida saiu-se a grande, el Gordo, como dizem os espanhóis, a taluda do
Natal – bafejou-me com a inteligência e
bastante!” Nunca o ouvira falar assim sobre a sua diminuição. Mas ele
continuou: “Sei que é raro, mesmo muito
raro aparecer um caso como o meu. O tio Miguel disse-me quando lho perguntei
que talvez um em mais de cem mil. Sou um sortudo!...”
Que mais poderia dizer-lhe? “Posso
dar-te um abração?” E ele tranquilo:
“Claro que podes, mas ainda não acabei,
falta muito… Pelo contrário e infelizmente a Elena é uma joia de mulher mas é
muito limitada, anda sempre a meu reboque, não a posso deixar sozinha. É uma
Down típica, com tudo o que isso representa. Eu amo-a assim, ela adora-me.
Tenho a certeza de que se pudesse punha-me num pedestal e adorava-me todos os
dias… Tenho medo que dê um passo errado!”
Filho? Missão impossível |
Eu estava siderado. “Agora
meteu-se-lhe na cabeça ter um filho!” Com seiscentos macacos pensei para
com os meus botões, mas que raio de ideia, caramba! “Mas eu já lhe disse que os homens com a síndrome de Down são estéreis
e portanto nada feito. Ficou tristíssima e tem vindo a perguntar-me se era
possível irmos aos médicos a que foste com a Maria Rita, talvez houvesse uma
esperança… Tenho a certeza que não sabe o que é ser estéril. Mano, estou metido
numa grandíssima alhada. Que hei de fazer? É preso por ter cão e preso por não
ter!!!…”
O Super Francisco afinal não era tão super como isso. E eu sentia-me
impotente para o ajudar. Dar-lhe um conselho? De conselhos precisava eu, como
daria eu um ao meu mano? De resto lá dizia o ditado “entre marido e mulher não metas a
colher”. Não era especificamente o caso. Um irmão tem sempre de estar à
disposição de outro irmão. E não é apenas uma questão de solidariedade. É algo
mais, indefinível, tal como a saudade ou o desenrascanço que só os portugueses
sabem o que são e as outras nacionalidades não entendem nem conseguem traduzir.
Os ingleses da Enciclopédia Britânica andam há 29 anos a tentar encontrar uma
tradução para… desenrascar…
Metemo-nos no meu Honda para voltarmos a Lisboa e a conversa foi
descaindo para os encontros com as nossas mãe e irmã e bem assim aquilo que eu
tentava fazer que era encontrar o filho da puta do Golfo. E foi então que o
Frederico retomou a palavra: “O bandido
era duma família nobre e o que não
era normal rica. O avô metera-se em negócios diversos e jogara na bolsa e
tivera muito sucesso. Era o D. Francisco Lorena Moutinho de Mesquitela e o
filho D. Mário Hernâni seguira-lhe as pegadas aumentando os bens e
investimentos tendo casado com uma Dona Isabel Maria Castro Mendanha Ruivães de
Reguengos também rica proprietária de vinhos de marca”
Sem recorrer ao seu laptop o meu irmão continuava dando
mostras da sua boa memória: “Do enlace
resultaram quatro filhas e dois filhos sendo que o último foi o D. Mário João
Ruivães Lorena de Mesquitela mais conhecido pelo apodo de Golfo, a ovelha negra
da família, que aliás também não era lá grande espingarda. Falava-se em
negociatas de armas e outras traficâncias mas qualquer membro dessa gente tão
elevada numa fora apanhada nas teias da Lei”.
O ditador Mugabe |
Estávamos a chegar à capital e tocou o telemóvel do Frederico que
iniciou uma longa conversa entremeada por comentários da parte dele: “Não me digas, não me digas” e “Não posso acreditar” e ainda “Não é possível, não é possível” e mais
à frente “Estás a gozar comigo? Ou é
verdade?” E a terminar “Foda-se!!!!!”
Estacionei em pulgas e perguntei-lhe o que acontecera. “Era o Julião Baptista, o Chicharro, o meu principal bufo, a
informar-me que o cabrão do Golfo há quinze dias tinha esfaqueado um segurança
dum clube no Cais do Sodré matando-o. Porém, por artes de «magia negra»
conseguira safar-se e pirara-se para o Zimbabwe onde ingressara como mercenário
no Corpo de Segurança do Presidente-ditador Robert Mugabe. Já não o conseguimos
apanhar!!!”
(Continua)
Já tinha saudades destas tuas crónicas, do "convívio" com o Frederico.
ResponderEliminarDeficientes não são burros, parvos.
São bem mais espertos que muitos de nós, os ditos normais.
E muito mais sensíveis.
Aquele abraço para ti, beijos para a Raquel
Meu caro João Pedramigo
EliminarTens sido o mais fiel seguidor desta saga e compreendo bem o motivo por que o fazes. Posso dizer-te que estou muito feliz por corresponder aos teus sentimentos e como sabes a minha própria experiência têm-me ajudado a escrever esta série que está quase a terminar.
Talvez ela possa resultar noutra "coisa" com mais fôlego. Não é uma promessa, pois se calhar depois não a cumpriria e não gosto de faltar e muito menos de falhar. Se tiver saúde e pachorra e também decisão veremos o que sairá...
Triqjs e um abração deste teu amigo
Henrique, o Leãozão 🦁
Que bom.te ler novamente! Bom também saber que foi muito legal o passeio com tua esposa a bordo de um.navio.
ResponderEliminarQuanto ao Bolsonaro, na certa, não és o único a temer.Nao votei nele no primeiro turno e agora nao votares.estamos em férias com a netinha! Abração praiano, chica
Minha querida Rejane/Chiquitamiga
EliminarMuito obrigado.
Nem quero pensar o que vai acontecer nesse teu país tão querido que também faz parte de nós. Esperamos uma "invasão" de brasileiras e brasileiros descontentes com o resultado. E com medo do que por aí virá. Como sempre acontece serão bem vindas/os.
Boas férias com a querida netinha.😍
Muitos qjs deste amigo da banda di cá
Henrique, o Leãozão🦁
Olá, Henrique
ResponderEliminarAndo um pouco atrasada nos comentários porque estou com problemas de saúde a nível familiar (a minha filha sofreu um enfarte e está cá em minha casa, em recuperação).
Gostei de mais este episódio.
O Frederico, sendo estéril, não tem como satisfazer a vontade da Elena de ser mãe. Recorrer à adopção... não creio que seja possível. Pobrezita da Elena! Tenho pena dela. O instinto maternal é muito forte. Só recorrendo a inseminação artificial...
Bom final de Domingo e boa semana.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Minha querida Mariazitamiga
EliminarOxalá a tua filha se encontre melhor, pois a saúde é o mais importante que temos na vida. E tu querida Amiga como estás?
O caso tem que se lhe diga. Aliás em próximo episódio haverá desenvolvimento do tema que não deverá ser muito simpático.🤢 Pelo menos é o que estou a pensar. Mas, depois verás.
Muitos qjs deste teu amigo, admirador e ex-fadista
Henrique, o Leãozão 🦁
Ainda bem que voltaste com o Frederico, o meu herói… Gostei muito deste texto.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Minha querida Gracinhamiga II
EliminarAinda bem que também voltaste com um comentário sobre o teu e nosso herói Frederico. O malandreco vai-se afirmando a cada episódio que surge. Eu próprio apaixonei-me por ele...
Muitos qjs deste admirador aos teus pés...
Henrique, o Leãozão🦁
Minha querida Isyamiga
ResponderEliminarObrigadérrimo💕
Muitos qjs deste teu amigo
Henrique, o Leãozão 🦁
Tens fôlego para o romance.
ResponderEliminarE estes deliciosos textos dão para um livro.
Escusado será dizer que gostei imenso. Como sempre, aliás.
Caro amigo Henrique, bom feriado e continuação de boa semana.
Um abraço.
Meu caro Jaimamigo
EliminarSe calhar tens razão.
Chegado a este ponto começo a pensar em transformar esta saga em "qualquer coisa" de maior fôlego e portanto de maior dimensão. Mas, pelas minhas contas, ainda faltam uns dois ou três episódios para pôr fim à saga e só depois verei o que farei desta treta.
A ser essa "coisa" que pode tratar-se de mais um livro,✨ tudo tem de ser arranjado, conexado, retocado, completado porque será outra responsabilidade embora já esteja habituado e tenha costas largas (e barriga gordíssima... 😁)
m abração deste teu amigo e grande fã
Henrique, o Leãozão🦁
Não dei pela saída deste texto. Hoje vi o aviso e vim em busca do episódio, e afinal já encontrei dois textos.
ResponderEliminarJá tinha saudades do Frederico. E como sempre adorei a leitura.
Um abraço e bom fim de semana
Olá,
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