É DIFÍCIL VIVER
COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE 6
Um
vândalo
mentiroso
e
traiçoeiro
Antunes Ferreira
Completados os doze anos e com tantas “novidades” pela frente já andava
a meter os pés pelas mãos ou quiçá as mãos pelos pés… pois deixara passar
coisas e acontecimentos muito importantes ocorridos neste ano de 1961. A seu
tempo me ocuparei dos eventos políticos, mas primeiro que tudo queria abordar
mais um facto tristíssimo protagonizado pelo meu pai.
Numa sexta-feira pela tarde a mãe recebeu um telefonema dos sogros
a convidar-nos bem com à tia Elsa, tio Jaime e Jaiminho e naturalmente o tio
Miguel para irmos passar com eles o domingo na quinta que tinham em Colares,
com o almoço e o lanche incluídos, seria um dia para descomprimir da agitação
diária de Lisboa da lufa-lufa entre as casas, os empregos e as escolas e as
voltas. Mais a mais com o trânsito a ficar cada vez mais complicado, valiam os
sinaleiros nas suas peanhas às listas vermelhas e brancas mas alguns já quase
não chegavam para as encomendas.
E lá fomos, o tio Jaime tinha uma station Chevrolet, já de certa
idade, 1953 mas dentro do prazo de validade…, cabíamos todos, a viagem foi um encanto, atenção meninos não
abram as janelas, entra o pó e pode algum cair e não briguem nem façam essa
barulheira a mãe e tia iam tentando conversar nos bancos de trás com o Jaiminho
que adormecera estendido no banco
perfeitamente ausente dos solavancos causados pela estrada, o tio Jaime que
conduzia falava de política com o tio Miguel e eu ia atrás no “galinheiro” com
a Leonor, uma amiga dela que fora “cooptada”, a Mena e o Frederico. Foi uma
galhofa em que ele também participou embora estivesse muito admirado vendo a
paisagem a correr, pressa, pressa,
pressa.
Passou-se um domingo estupendo, na cavaqueira e nos comes e bebes
e fizeram-se umas belas sestas. Nós os mais pequenos fartámo-nos de brincar e o
Frederico integrou-se com facilidade o jardim-escola vinha dando-lhe uma
mobilidade bastante boa e aumentara-lhe a sociabilidade. De resto tudo nele
eram novidades, os frutos nas árvores, os animais da capoeira – e havia muitos,
os perus tinham-no assustado, olhava-os de soslaio… - mas os pintainhos eram os
que mais lhe despertavam o interesse.
Os homens tinham-se reunido numa mesa que ali havia por baixo duma
nespereira e continuavam a discutir abertamente coisas que eu não entendia, mas
que me parecia ser da política. Do que ia ouvindo uma coisa apanhava, eram
contra o Salazar e o Estado Novo. Falavam também de Angola e coisa estranha o
nome do meu pai vinha-lhe associado. Porém e dado que não conseguia
acompanhá-los nas suas discussões, dedicava-me principalmente a seguir o
Frederico que estava felicíssimo. As senhoras tinham iniciado um torneio de
canasta acompanhado de outro de corta-na-casaca…
Pelas seis horas, depois do lanche regressámos a casa passando
primeiro pela da Mena com muitos agradecimentos, beijinhos e apertos de mão e
por proposta da minha mãe foi decidido que jantaríamos em nossa casa. Mas não
sabíamos para o que estávamos guardados. Fui eu quem meteu a chave à porta e
quando a abri em vez de entrar dei um passo atrás tal o espectáculo que se me
deparou ou melhor nos deparou. Era
uma balbúrdia com papéis espalhados pelo chão, cadeiras viradas, móveis desaparecidos.
Tínhamos sido assaltados. E de que maneira!
Surgiu da cozinha a Miquelina, a nossa cozinheira, que já viera da
casa dos meus avós maternos uns prantos de fazer doer a alma, fomos sim e o comandante dos assaltantes foi
o senho capitão!.. Estávamos todos siderados. Podia lá ser? Podia. E depois
de nos sentarmos mais ou menos nas cadeiras desconjuntadas e nos sofás
manchados ela contou que o relógio de pêndulo que havia na sala de estar (e que
á lá não estava) tinha acabado de bater o meio-dia e alguém metera a chave à
porta. Como eu estava sozinha, a Senhora
tinha dado o domingo à Odete, apanhei um cagaço e pé-ante-pé vim ver quem era
que assim procedia. E era o Senhor Capitão com um sargento e cinco soldados
todos fardados.
Ele
disse-me para estar sossegada que não era nada comigo, apenas vinha buscar as
coisas dele, todas, pois
ia partir mobilizado para Angola a defender a Pátria e não queria que elas
fossem parar – as senhoras e os senhores desculpem, mas foi assim que ele disse
com voz de trovão – a paneleiros ou a despadrados ou a putéfias e rosnou mais
umas coisas que eu não entendi. E então começaram a quais furões a meter-se por
toda a casa e foram levando para dois camiões militares muito grandes tudo o
que o senhor Capitão considerava que lhe pertencia desde roupa até ao cofre e ao relógio de pêndulo, do piano ao
frigorífico, ao televisor e até a antena que foram tirar ao telhado.
Por
último e o que me meteu maior dó foi ter levado as duas caixas dos soldadinhos
de chumbo que tinha comprado para o menino Frederico enquanto comentava que o
rapaz não vai brincar com eles porque nem sequer vai compreender o que são e
para que servem; vão ser usados por que, o saiba fazer. E lá foram de alada
deixando a casa neste lindo estado. Por mais anos que Deus me dê de vida nunca
me esquecerei deste desmando. A mãe e a tia Isabel bem tentaram consolar a
pobre Miquelina que se foi acalmando deixando que os soluços se fossem
espaçando.
Assassinados pela UPA |
Foi o tio Miguel quem decidiu telefonar aos pais para lhes
perguntar se a ideia do domingo fora sugestão do irmão. Fora. Com o pretexto de
que a minha mãe continuava muito abalada e mais ficara quando ouvira o que se
passar no norte de Angola, um morticínio selvagem levado a cabo contra brancos
pretos do sul e mulatos por hordas de assassinos impiedosos da UPA chefiada
desde o antigo Congo Belga por um homem sinistro chamado Holden Roberto. E mais
anda quando vira na televisão o senhor Presidente do Conselho, Professor Doutor
António de Oliveira Salazar afirmar Para
Angola rapidamente e em força!
O que ele
queria era ver-nos fora de casa para perpetrar os seus negros desígnios –
disse amargamente o tio Miguel. Um vândalo mentiroso! E ainda por cima
traiçoeiro! Nunca mais volto a falar com tal pulha, a partir de hoje deixa de
ser meu irmão!
(Continua)