2018-09-13


VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN – 13

De há uns largos tempos a esta parte vinha pensando
 que o título genérico desta saga estava errado
 e além disso não correspondia à verdade do texto e até
era estúpido. Mas a preguiça tem uma regra essencial:
não mexer uma palha e como se diz agora
não sair da zona de conforto, ou seja do ninho
que é onde se está bem, pelo menos eu. Mas o Frederico
não merecia que escrevesse que era difícil
viver com ele porque na realidade era bem
o contrário. Daí que fiz das fraquezas
forças e aqui vai o novo genérico renegando
o anterior. Espero que gostem.


Căsători
să fie
fericit (*)

Antunes Ferreira
É certo e sabido que um dia tem vinte e quatro horas e um mês tem 30 ou 31 ou mesmo 28, por vezes 29 dias, desde que estas medidas foram assentes por documentos conhecidos. As primeiras foram criadas na Grécia clássica que porém se terá inspirado no que era procedimento de uma das mais importantes civilizações do mundo antigo – a  mesopotâmica. Já quanto ao calendário é o gregoriano  promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1583. Nisto pensava o capitão jurista Armando Mascarenhas Saraiva Mendes enquanto aguardava os resultados das últimas análises feitas a sua esposa arquitecta Maria Rita e a ele próprio. Dê-se-lhe a palavra como é hábito

Corria o ano de 1979 e tanta coisa acontecera desde a última vez que escrevia o meu diário. Sim, pois creio que ainda não tinha revelado que tudo que vou contando consta das páginas de um que vou recheando de entradas mais volumosas umas mais breves outras, todas datadas, mas não quotidianas. Tantas e tão complexas e algumas tão complicadas e poucas revistas, escritas ao correr da pena, ou melhor da Parker 51 oferta do meu pai quando eu entrara para o primeiro ano do liceu no Valsassina.

Pensando bem a nível nacional e histórico o mais importante fora indiscutivelmente o 25 de Abril de 1974. Dia inolvidável em que tivera o privilégio, a sorte e a honra de participar como tenente miliciano/aluno a Academia Militar. Até eu estou admirado quando escrevo isto; entrei para a escola onde o meu pai se formou oficial correspondendo a um desejo dele que nunca eu pensaria concretizar mas que realizei. Para isso concorreram três determinantes: o meu casamento com a Maria Rita, óbvio, as conversas com o coronel Marques Freitas e principalmente a minha decisão de honrar a memória do meu progenitor tivesse ele sido o que fosse.

Academia Militar: Às armas!!!!

Enquanto avançava no curso na Academia situada na Amadora ia prosseguindo também o Direito na Faculdade onde me vim a licenciar em 1976 no meio de uma grande confusão com passagens administrativas, assembleias-gerais de alunos, plenários, greves selvagens, partidos políticos, o mais assanhado dos quais era o MRPP do “grande camarada”  Arnaldo Matos, futuros dirigentes partidários agressivos, carteiras partidas, saneamentos, eu sabia lá que mais. Concluí o curso de Administração Militar com a especialidade de Serviço de Justiça e estou colocado no Supremo Tribunal Militar como Promotor de Justiça.

Mas o que interessa para já é o nosso Frederico que completou os 20 anos encontrou a mulher dos seus encantos com quem sonha desde o tempo de menino quando ambos andavam na João de Deus. Já pensam em casar. Acho bem pois embora sejam ambos portadores da mesma síndrome são responsáveis, inteligentes, saudáveis e não são só amigos pelo que se pode ver e, sobretudo sentir, amam-se. Elena é romena-portuguesa pois já nasceu em Lisboa, os pais tinham vindo para cá a fugir da tomada do poder pelos comunistas. É gentil e bonita e até pasme-se já ganhou um concurso de miss Simpatia. Como sempre e mesmo antes de dizer à mãe a sua intenção ele veio ter comigo e perguntou-me se eu achava bem e se lhe dava a minha bênção.

Fiquei comovido, fiquei mesmo muito comovido. Chegaram-me as lágrimas… mas contive-me. Nem precisei dizer-lhe que ia conversar com o meu travesseiro e no dia seguinte…, nada disso, respondi-lhe logo: “Se é a tua vontade e a da Elena não pensem muito pois há um ditado…” e ele, com uma gargalhada interrompeu-me: “Quem pensa não casa, e quem casa não pensa, mas no nosso caso quem casa deve pensar… pouco!” Caímos na galhofa de tal maneira e tais decibéis que o tio Jaime que nesse dia jantava lá na minha casa (a tia Elsa estava, adivinhem onde… na maternidade à espera do quinto rebento, aquilo era pior do que uma máquina de encher chouriços, salvo seja…) veio saber onde era o incêndio  por mor da sirene.

E dois meses depois foi o enlace que decorreu excelentemente, a Maria Rita e eu fomos os padrinhos do mano, o padrasto e a mãe da Elena  e o copo de água foi uma festa, uma reunião das duas famílias e alguns amigos que deu lá para as tantas. Finalmente as águas tinham acalmado ou, pelo menos, os ventos pareciam ter amainado. E bom era pois já bastava de contrariedades e de marés baixas. Na verdade, a Maria Rita e eu andávamos desde o princípio do matrimónio muito preocupados que pouco a pouco se foi transformando em muitíssimo. Ela não conseguia engravidar.

As cegonhas também fazem greve?


Bem tentávamos. Os nossos, desde as mães até aos tios, as avós, os avôs, o Olegário, o David, a Margarida, o Paulo, a Miquelina a Odete, o próprio Marques Freitas que já fora promovido a brigadeiro, todos nos diziam para termos calma, que éramos novos, tínhamos todo o tempo do mundo, um filho não se faz ao virar da esquina, era “falta de pontaria”, as cegonhas também têm o direito à greve e os putos eram uns brincalhões e perdiam-se... e e outras brincadeiras mas a realidade nua e crua é engravidar zero. Decidimos começar a fazer diligências médicas para pôr termo à expectativa cada vez mais frustrada e frustrante que dia a dia se ia transformando em pesadelo.

Já não sei quantos consultórios conhecemos, em quantos laboratórios  entrámos, através de quantos aparelhos fomos observados, micro e macro, bombardeados de ondas as mais diversas, aqui, lá fora onde alguém nos indicava li é que é, fazem milagres, um casal nosso amigo já desiludido deslocou-se lá e foi tiro e queda: um par de gémeos! Experimentem. Experimentámos. Nada. Até Fomos a bruxas e curandeiros com mezinhas milagrosas, santas com relíquias, voámos ao Brasil para fazer oferendas ao Orixá mais famoso a Rainha dos Mares Iemanjá, mas tudo em vão.

Dinheiro era coisa que não nos faltava, mas dinheiro não compra felicidade. E essa sim, essa faltava-nos. Essa não se avia na farmácia. De volta, na primeira classe do Jumbo da TAP vínhamos ouvindo o Martinho da Vila interpretando “A Felicidade” do Vinícius e do Jobim:

Martinho da Vila


Tristeza não tem fim
Felicidade sim

A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor…
Tristeza não tem fim
Felicidade sim…”

Esta era a última diligência médica que faríamos. Já munidos dos resultados uma vez mais negativos  decidimos apenas nó dois sem recurso a mais opiniões: íamos adoptar uma criança. E o primeiro a conhecer essa decisão seria o Frederico.
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(*) Romeno:
Casar
e ser
feliz

(Continua)