Os homens são comunistas até que enriqueçam,
feministas até que se casem e
ateus até que o avião comece a cair
Antunes Ferreira
G
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abriel Jerónimo vivia solitário numa vivenda situada em rua
sem movimento apreciável nos arredores duma cidade sem importância com 37.653 habitantes
de acordo com o último Censo. Somente tinha a senhora Carlota, que lhe limpava
a casa, passava a ferro e fazia uns pratos duas vezes por semana. Coisas
triviais que se podiam guardar no frigorífico. A residência que estava ao seu
lado esquerdo era habitada por um casal de velhotes reformados: ele fora
comandante de um lugre bacalhoeiro, era o Capitão Semedo e a Senhora trabalhara
no Ministério da Educação, secretária eterna dos subsecretários de Estado que
por lá iam desfilando. De seu nome Dona Ester.
F
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eitas as apresentações, correram uns bem agradáveis anos - hoje
o rapaz almoçava com eles, depois de umas semanas era ele que os convidava para
jantar, um Porto e um jogo de xadrez que o capitão ganhava quase sempre… Segue-se
que um dia o Gabriel, (34 anos, apessoado, cabelo em crista à moda,
solteiríssimo, ateu, sócio do Belenenses (ainda os havia, como no tempo dos
dinossauros), filiado no PAICG, Partido Incontestável dos Compinchas do
Garrafão, proto-comunista, trabalhador do Sindicato de Barbeiros, Cabeleireiros, Unissexos &
Afins), plantado à janela que dava para a rua, ou melhor para o pequeno jardim
onde tinha rosas, malmequeres, jarros, cravos e etc., viu chegar um camião do Galamas em
frente da casa adjacente (em boa verdade e correctamente política devia ser
região autónoma, mas para uma habitação não dava muito jeito.)
De ferro em punho |
D
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eixou a janela. voltou-se para a senhora Carlota que de
ferro em punho passava cheia de brio uma camisa azul de colarinho branco, olá,
temos mudança. E ela, suspendendo a delicada operação, "ouvi dizer no
minimercado que eles vão viver pró campo onde têm umas coisitas dos aforros que
foram amealhando..." "Boa", retorquiu o Gabriel, que era vagamente comunista, como atrás disse, aliás sem grande convicção, "agora vamos ver quem será o novo inquilino". "Ó
senhor doutor (não era, mas ficava-lhe bem) não ponha o carro à frente dos
bois. Quem vier virá e verá". Santa filosofia, ainda que um tanto reles e jobiana paciência a da senhora
Carlota.
N
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em sequer foi uma angústia o que o apoquentou nos dias
seguintes; foi apenas um leve desassossego, nada de grave, se o Pessoa tinha
escrito um livro com tal título, por que bulas não havia ele, Gabriel, de não o
ter? O quem viria, passou para quem virá? No sindicato não confessou o que quer
que fosse ainda que o Santos da Contabilidade comentasse com ironia q.b., "aqui
anda mosca", ao que ele respondera "nem mosca nem moscardo muito menos varejeira.
E ponto final, parágrafo. Vai gozar com a tua tia que não canta mas assobia…"
A
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s coisas são o que são e não há volta a dar-lhes; para uns é
o destino, para outros o fado. No fundo a mesmíssima merda. Para filosofias
ainda por cima ranhosas e baratas já bastava a senhora Carlota, E por Carlota,
tenho de lhe dizer que as camisolas interiores estão a ser tão mal passadas que
até parecem um bife da Portugália escolhido pelo cliente a solicitação do
empregado de mesa: bem, mal ou meio passado? Camisas, calças e casacos –
impecáveis. Boxers assim-assim; mas as camisolas interiores…
De novo mudanças |
V
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oltou para casa a resmonear e zás! De novo um camião de
mudanças e uns tipos a acarretar móveis, frigorífico, fogão, esquentador e
outras frioleiras e cama de casal. Olá temos parelha quiçá casadinha de fresco,
sei lá se em lua de mel, as mobílias são novinhas em folha. Estava Gabriel
nestas cogitações quando saiu da casa uma visão estonteante, admirável,
fulgurante, espampanante. Uma garota daquelas levava-o ao altar em três
fósforos! Era jovem para trezentos e trinta e três assobios, no mínimo. O
consorte devia vir atrás – mas não veio. Com sorte estava. Veio sim uma gaja de óculos e aparelho nos dentes com ar desmazelado que se encostou à nova e gentil vizinha, poisando-lhe o braço nos ombros. Suspeito..
O
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lá menina, penso que é a minha nova vizinha, estou encantado
de a ver e conhecer, o meu nome é Gabriel, sou solteiro e…, o meu é Julieta, o
prazer é todo meu, vivo com a minha Gracinha, sabe, amamo-nos e muito, somos mulheres, chamam-nos fufas mas não ligamos e vamo-nos carsar. Oxalá sejamos boas vizinhas, os homens só atrapalham... Com certeza,
não seja por isso, se precisarem de alguma coisa, sei lá um raminho de salsa, é
só baterem à minha porta…
O pecado mora ao lado |
E
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Gabriel entrou em casa - descoroçado. Caramba, que situação. Ele a pensar num sim e afinal saíra-lhe um não. Pior do que o Euromilhões. Ele jogava todas as semanas e saiam-lhe sempre cruzinhas, O Ezequiel da tabacaria, jornais diários e revistas nacionais e estrangeiras sempre actualizadas incluindo a Hola que a malta tuga dizia Ola e não Olá que era a forma correcta usada pelos espanhóis. Ganda galo,
ao lado com duas galinhas. Boas amigas, na cama. Só fêmeas. Até a senhora
Carlota. Ainda se fosse a Marilyn Monroe; mas não era. O pecado morava ao lado,
mas era outro – o pecado.