Antunes Ferreira
Passaram dois anos cheios de normalidade com uns quantos
intervalos pouco naturais pois a vida não é toda cinzenta muito menos a branco
e preto isso eram as fotografias pois as coloridas que já saíram à praça vieram
dar-lhe um arco iris onde não havia ponte com moedas de oiro no fim dele. O
Frederico já andava um tanto “desengonçado” como disse a Leonor quando o viu
dar os primeiros e titubeantes passos. Também ela cresceu, já andava na
primeira classe e ficava derretida quando olhava para o primito Jaiminho que
engatinhava e punha-se de pé agarrado e deitava
a mãozita tudo, os putos são lixados.
O casamento da tia Elsa e do
agora tio Jaime fora muito singelo, só família e uns quantos amigos, poucos. Os
avós do lado do pai apareceram o que me pareceu muito simpático aliás na senda
do que tinham vindo a fazer: darem-se connosco independentemente do
procedimento do filho. Este não veio nem à igreja nem ao copo de água.
Deixem-me que diga que não percebia a denominação: na mesa depois do casório
havia de tudo mas copo de água não…
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Uma bela barriga |
O nosso Frederico portou-se lindamente, foi quem levou as alianças
de calção cinzento e casaquinho azul com botões doirados e o padre que realizou
o enlace foi o Alfredo, companheiro do tio Jaime desde o liceu até ao
seminário. Tudo muito simples como já disse, mas muito sincero e muito bonito.
A tia já ia com uma bela barriga de sete meses pois o processo demorara no
Vaticano um pouco mais do que era esperado. Mas estava resplandecente e eu não
cabia em mim respirava orgulho por todos os poros: acabara o suspense – era o
padrinho da noiva e a madrinha era a minha mãe. Os do noivo eram os pais dele.
Bom, já chega de reportagem e de fotos (uma estopada, agora uma
com os nubentes, agora outra com a família, outra com, outra mais, outra,
caramba, nunca mais acabavam e os rissóis à espera…). Eu já completara doze
anos, rompiam-me uns pelitos por baixo do nariz e entre as virilhas coisa que
era perfeitamente natural pois estava a entrar na puberdade explicou-me a minha
mãe (deixara de chamar-lhe mamã ainda que ela me pedisse para eu continuar a
fazê-lo) e a partir daí comecei a considerar-me mesmo homem.
Só mais uma nota porque me pareceu importante. O Olegário trouxe o
David – que a minha mãe me sussurrou que era o seu “namorado” – judeu e tinha o apelido de Levi. Encantou os
convidados porque culto e amável e ninguém se apercebeu da ligação amorosa que
mantinha com o meu primo. Arquitecto, trabalhava na firma onde o meu pai também
exercia engenharia em acumulação com a tropa o que era proibido, mas como era
da situação os mandões fechavam os olhos
e assobiavam para o lado.
Já estava a refeição acabada e os dois pediram à minha mãe para
lhe dar uma palavrinha porque tinham algo importante ainda que aborrecido mas
que ela merecia conhecer. A mãe acedeu e ficaram um bom bocado a conversar.
Quando eles se despediram ela chamou-me para me dar conhecimento do que tinham
falado e mais uma vez – já eram tantas… - o meu espanto veio à tona da água.
O meu pai estava a viver com a secretária da Betão Seguro S.A.R.L. uma
tal Marina Neves de quem já era amante durante o tempo em que estivera casado
com a minha mãe e de quem tinha um casal. A minha mãe estava devastada e entre
soluços comentou agarrada a mim e eu é
que era a adúltera, a prostituta com o agora teu tio Jaime. Mas Deus é grande.
Um dia se não for aqui na terra há-de pagar os pecados no Céu. Dei por mim
a cogitar que Deus e que Céu eram aqueles que permitiam que tal coisa
acontecesse. E mais ainda que nascesse uma criança como o nosso Frederico.
Tinha de pensar muito nisso prometi a mim próprio.
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Deu entrada no Jardim-Escola João de Deus |
Era tempo de tomar uma decisão quanto ao futuro imediato do meu
irmão e por isso aconselhei-me com a minha mãe, a tia Elsa, o tio Jaime e o tio
Miguel. Após uma troca de opiniões muito cuidadosa e frontal a opinião que
tinha saiu vencedora e foi aprovada por unanimidade. O Jardim-Escola João de
Deus iria ser consultado sobre a possibilidade de acolher o Frederico em regime
de externato. Diga-se de passagem que o tio Miguel se tornara visita habitual
de casa pois quando saía do Hospital Universitário de Santa Maria “a tempo e
horas” passava por lá.
Foi aceite e deu entrada numa classe especial para deficientes
diversos, a primeira que ali houve, o que não era o ideal mas sim o melhor que
se podia arranjar. A turma tinha vinte e um alunos três dos quais em cadeiras
de rodas por serem paraplégicos, um autista, quatro mongolóides que com o meu
irmão passaram a ser cinco, dois meninos e três meninas e os restantes
amputados, cegos e amblíopes. Uma mistura heterogénea que mesmo assim nos
pareceu funcionar menos mal. As educadoras de infância (que tinham sido criadas
em 1930 de acordo com um folheto que nos foi distribuído com a História da
Instituição fundada em 1882 pelo mecenas Casimiro Freire) eram carinhosas e
competentes. Pelos vistos o Frederico estava bem entregue.
Quando o fomos buscar, a mãe e eu que também o leváramos, o puto
parecia feliz. Dizia já umas palavras, poucas e por vezes mal soletradas.
Perguntei-lhe então Frederico gostaste da
escolinha? E ele com o seu sorriso rasgado, meneando a cabeça: Bom, bom, bom. De resto ele não parava
de me surpreender ou melhor de nos surpreender. Depois de um Inverno chuvoso e
frio e de uma Primavera assim-assim, o Verão entrou esplendoroso abrindo a
porta ao Outono em que estávamos nem sal nem pimenta.
Por uma tarde pintada de cinzento baço fui dar com o Frederico
encostado no sofá da sala de visitas (ele adora ficar por ali e já não cai
embora se o fizera o trambolhão não era de caixão à cova) a cara apoiada na mão
direita mirando com muita atenção um pardal saltitante que debicava qualquer
coisa num ramo próximo do parapeito da janela fechada. Não queria interromper o
quadro aliás belíssimo mas atrevi-me a perguntar ó maninho o que é isso? Ele, sem tirar os olhos do pássaro que
entretanto levantara voo e volteava quiçá em busca de novo manjar milimétrico
respondeu piu, piu, piu, piu… Não é
só na escola que se aprende; na vida também. E muito.
(Continua)