2016-11-30



Antunes Ferreira

P
ode acreditar senhor Ezequiel é ouro de lei, 19,2 quilates como manda a lei portuguesa. O que está propor é uma ninharia. Se eu não precisasse, não vinha à sua casa pôr este cordão no prego. Foi-me dado pela minha madrinha de Viana…


Ó
 mulher cala-se praí, estou farto de a ouvir! É pegar ou largar, o preço que lhe ofereço é absolutamente justo e os juros até são baixos. Se quer consultar outro meu colega vá ter com ele. Casas de penhores são o que não falta, mais do que uma em cada bairro. A guerra deu cabo da economia e ainda que não tivéssemos entrado nela, as coisas ressentiram-se. É ver as estrangeiras que fugiram dela e vieram para cá mostrar as pernas na pastelaria Suiça do Rossio… 
Senhas do racionamento



E
rmelinda recolheu o cordão de ouro de lei oferecido pela sua madrinha de Viana do Castelo, sentou-se num banco da avenida e ficou a pensar no que tinha dito o Ezequiel dos penhores. Portugal salvara-se dos horrores da guerra porque o homem do leme era o Senhor Presidente do Conselho com o auxílio de Nossa Senhora de Fátima. Havia, é claro, bichas para o pão, para o açúcar para o petróleo, para o azeite, para o carvão, mas mesmo assim, graças a Deus, a gente ia vivendo.


E
rmelinda dos Santos Gomes era mulher a dias em quatro casas, mãe de dois casais tinha por marido Manuel Gomes assentador de tacos de madeira para soalhos, que ganhava à hora para o patrão João Gonçalves, o Maneta, que por isso mesmo já não exercia a profissão. Fora ele que ensinara o Gomes a arte e hoje do salário deste último comia uma percentagem, coisa para não deitar fora ou aventar pois era alentejano.


O
s tempos iam apertados, os casais andavam na escola primária, os mais novos e na técnica, os mais velhos. Corria o ano da graça de 1946, a guerra terminara em 45 e o povo olhava para Espanha, ali ao lado, lambendo as feridas da guerra civil que deixara nuestros hermanos a comer pão escuro com cebola e a fumar pitillos de barbas de milho enroladas em papel de jornal. E usavam alpergatas de sola de pano… Ali havia fome e o contrabando para lá era um negócio muito rendoso.
Um eléctrico aberto frente ao Eden


U
m eléctrico aberto descia a avenida da Liberdade (era só o nome…) mesmo em frente do Eden e uns catraios iam pendurados no estribo traseiro até que o pica-bilhetes os viesse enxotar. Aqueles não tinham nem fome nem problemas ou se os tinham já se haviam habituado a eles e nem precisavam de ir pôr no prego o cordão de ouro de lei que a madrinha de Viana do Castelo lhe oferecera como prenda de casamento. Cordão ou arrecada. Para empenhar tanto fazia.


D
escansaria um pouco e em seguida iria ao judeu Jacob Levy que emprestava dinheiro a juros altíssimos e aceitava quaisquer objectos como garantia. Era uma espécie de casa de penhores, mas à socapa, por baixo da mesa não fosse dar-se o caso de um fiscal da Intendência-Geral de Abastecimentos, recém-criada, lhe bater à porta e… estava o caldo entornado. Só que o Levy morava num terceiro andar das Escadinhas do Duque e teria de palmilhar muita calçada para lá chegar.

O dispensário de Alcântara 

M
as, tinha de ser. A mais velha, Rosinha, estava mal, mesmo muito mal, o médico era caro, mandara tirar uma radiografia no dispensário de Alcântara, era mal dos pulmões, o tratamento sairia caríssimo só em medicamentos e talvez fosse necessário ir para o  Sanatório das Penhas de Saúde dos Ferroviários e que ficava na serra da Estrela. Mais despesa, mais abrir os cordões a uma bolsa que só estava cheia de… cotão. Maldita tuberculose, chamada a ceifeira de negro, impiedosa, mortal. Portanto, só os penhores.


E
stava Ermelinda nesta canseira de pensamento quando chegou  o seu homem numa corrida louca a deitar os bofes pela boca. “Credo Manel, vens esbaforido! Senta-te aqui ao é de mim, sossega e diz-me o que se passa! Caiu o Santo António do altar? Quebrou-se-lhe a bilha?” E o marido, ansioso, “Já foste pôr a arrecada no prego?” Ermelinda olhou-o de alto a baixo “ainda não, mas vou de seguida…” O Manel arreganhou a cepa “Porra! Ainda bem! Nem pensar! Não vais!”

Há horas de sorte!!!


E
le devia estar louco, pensou Ermelinda, tinha de ir para Rilhafoles. .. “Mas, que raio de trangalomango te deu? Enlouqueceste?”. Manuel começou a rir à gargalhada “Saiu-me a sorte grande! Saiu-nos a graúda! A graúda!” Entre o espanto e a dúvida ela perguntou-lhe o que estava ele a dizer? E o marido contou-lhe que na manhã desse dia tinha tido uma fezada e com os magros escudos da féria tinha comprado meio bilhete da lotaria ali no Largo da Trindade a um cauteleiro que usava um chapéu-de-chuva carregado de cautelas “há dias de sorte!” E houvera. Fora à Misericórdia ver o sorteio. Depois de andar à roda, ouvira o pregoeiro: “Primeiro prémio - Dois mil setecentos e trinta e oito; e o outro pregoeiro: “Primeiro prémio: Mil contos! Dois mil setecentos e trinta e oito – Mil contos!” Era o seu número: Meio bilhete, metade: 500 contos!


A
 Rosinha ficaria curada custasse o que custasse. Mudariam da barraca para uma casa decente com casa de banho nas Avenidas Novas. Os putos iriam para a universidade. Talvez comprassem um carrito, pequeno, mas em primeira mão. E sonhos, comprariam sonhos que eram baratos como as panelas da Feira Popular E ainda guardariam algum na Caixa. Quinhentos contos! Quinhentos! Era um ror de massa...