2023-02-19

 


Da piscina ao tapete

 

*Dois japoneses que adoptaram Portugal

Antunes Ferreira

Para muito boa gente que custa a acreditar mas não é fantasia, é a mais pura verdade: já fui nadador de competição oficial; mas em contrapartida tentaram que fosser judoca e falhei miseravelmente. Deus dá nozes a quem lhes faltam os dentes. A intimidade com a água, incluindo a engarrafada com e sem bolhinhas, levou-me recentemente e por mero acaso a assistir na TV em directo a competição em Roma dos saltos da prancha dos dez metros nos Campeonatos da Europa.

 

Repimpados os dois Ferreiras/reformados íamos admirando as proezas dos jovens atletas e eu não me contentava apenas em mirar cuidadosamente o plasma: atribuía em voz alta os pontos classificativos que daria a cada concorrente. E quando no ecrã apareciam os resultados dados pelos jurados não é que eu acertara em quase noventa e picos por cento? Ah, a bolsa aquosa a cada salto dizia “presente!” Resquícios, quiçá do líquido amniótico?

 

No final da transmissão telefonei ao Pedro Vasconcelos que fazia parte da equipa de quatro estilos por cem metros iniciados do Sport Algés e Dafundo. Ele nadava costas, eu bruços; o Victor Matos mariposeava e o Chico Tomás fazia o crawl. O Victor para fugir à guerra colonial desertara para o Brasil então presidido por   Juscelino Kubitschek, quem mandou construir a nova capital Brasília. A trabalhar nas obras dela o nosso amigo e ex-colega de equipa viria a falecer vítima de acidente com um tractor.




 

Comentámos a prova de Roma e voltámos ao nosso tempo. Daí a lembrarmo-nos do Shintaro Yokoshi /que acabara de falecer) foi um salto de… pulga. A sua chegada à noite ao estádio/piscina (de 33 e pozinhos metros) foi um verdadeiro espectáculo. Tinha 22 anos, era um Zé Lingrinhas, mas fora campeão no seu país, o do Sol Nascente, como se dizia. Contratado para treinador dos atletas do Algés e Dafundo, foi sentar-se na bancada acompanhado duns tipos da direcção do clube e dum japo-brasileiro há muito residente em Portugal a servir de intérprete, embora Yokoshi, licenciado em Economia falasse inglês.

 

Descoberto pelos assistentes à competição (em que eu participava) os jogos da JEUSES Jeunes Sportives de l’Europe du Sud, começaram os pedidos altissonantes para que ele fizesse uma exibição dos seus dotes. Shintaro levantou-se, foi ao vestiário, pôs uns calções, subiu ao marco de partida, ao seu lugar, pum, quatro vezes cem metros nos quatro estilos, todos batendo por larga margem os recordes de Portugal! O estádio/piscina só não veio abaixo porque os alicerces eram basto sólidos…

 

O treinador japonês que sobreviveu à bomba atómica na cidade onde vivia como criança com a família, Nagasaki, foi-se deixando ficar numa terra que desconhecia. Estranhou mas habituou-se ao bacalhau e ao caldo verde. Casou e teve filhos com uma portuguesa. Ficou para "vingar" no trabalho, o que só aconteceu mais de 20 anos depois, quando o próprio filho, Alexandre Yokochi, também ele nadador, se sagrou finalista Olímpico em Los Angeles (1984).

 

Lanceiros 2 na Calçada da Ajuda da arma da cavalaria foi o quartel onde assentei praça como cadete miliciano. Aliás as primeiras semanas passeias acampado com mais outros cadetes e moços destinados a futuros furriéis milicianos – em tendas de três panos para três desgraçados e palha como cama comum. Rica vida castrense.

 

Findas as férias” junto ao Atlântico (a que nunca pusemos os olhos em cima, trotámos em marcha acelerada com todo o equipamento às costas a marginal até parar no ansiado quartel. Julgava eu e (ilusão ingénua) mais os noventa maçaricos, ou seja aos novatos fardados que iriamos ter uns momentos mais “suaves”. Estulta esperança; ninguém sabia os tormentos que nos estavam guardados – entre os quais uma instrução de judo!



 


Aí estava o busílis da merda. O instrutor especialmente convidado pelos manda-chuvas do Exército era um tal Kiyoshi Kobayashi Já na altura era uma celebridade. Médico de profissão, fora quem tratara o nosso campeão e herói nacional Carlos Lopes a uma lesão no tendão de Aquiles ainda antes de este se ter sagrado campeão olímpico, em 1984.

 

Chegara nesse ano mas ficaria para sempre no nosso país. Mestre Kobayashi, uma das mais altas graduações da Modalidade – 9º Dan, foi um dos grandes responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento da modalidade em Portugal, sendo conhecido inclusive como “o pai do judo português”. Foi Selecionador e Treinador da Equipa Nacional e acompanhou-as em Campeonatos da Europa e do Mundo, assim como nas edições dos Jogos Olímpicos de Montreal (1976)Los Angeles(1984)Seul (1988).

 

Quando chegou a minha vez de ir para o tapete onde se encontrava o Mestre japonês o meu macacão estava molhado de suor. Os primeiros passos só pra aqueceres escaparam; mas quando o sacrista m atirou ao chão apenas com um golpe de braço e perna doeu-me pra burro. Levantei-me vermelho que nem tomate,

 

Assistiam vários oficiais às demonstrações entre os quais os comandantes do meu pelotão e do esquadrão a que pertencia. Galhofa. Risada geral. E Kobayashi: “Este não presta, é merda.” Não sei como se diz filho-da-puta em japonês, mas chamei-lho – em português, alto e bom som!!!! Três fins-de-semana sem ir a casa.

 


Mais tarde, antes de terminar o primeiro ciclo do COM, o Curso para Oficiais Milicianos, pedi ao Shintaro Yokoshi, de quem ficara bom amigo, para me escrever em japonês aquela expressão  que “remetera” ao compatriota judoca. O treinador deu uma gargalhada (já era meio portuga…) e alertou-me: “É assim. Mas quando pedires suschi num restaurante japonês não lhe chames assim 

クソ野,e óbvio, concordei.