Da piscina ao tapete
*Dois japoneses que adoptaram Portugal
Antunes Ferreira
Para muito boa gente que custa a acreditar mas não é fantasia, é a
mais pura verdade: já fui nadador de competição oficial; mas em contrapartida
tentaram que fosser judoca e falhei miseravelmente. Deus dá nozes a quem lhes
faltam os dentes. A intimidade com a água, incluindo a engarrafada com e sem
bolhinhas, levou-me recentemente e por mero acaso a assistir na TV em directo a
competição em Roma dos saltos da prancha dos dez metros nos Campeonatos da
Europa.
Repimpados
os dois Ferreiras/reformados íamos admirando as proezas dos jovens atletas e eu
não me contentava apenas em mirar cuidadosamente o plasma: atribuía em voz alta
os pontos classificativos que daria a cada concorrente. E quando no ecrã
apareciam os resultados dados pelos jurados não é que eu acertara em quase
noventa e picos por cento? Ah, a bolsa aquosa a cada salto dizia “presente!”
Resquícios, quiçá do líquido amniótico?
No final da transmissão telefonei ao Pedro
Vasconcelos que fazia parte da equipa de quatro estilos por cem metros
iniciados do Sport Algés e Dafundo. Ele nadava costas, eu bruços; o
Victor Matos mariposeava e o Chico Tomás fazia o crawl. O Victor
para fugir à guerra colonial desertara para o Brasil então presidido por Juscelino Kubitschek, quem mandou construir a nova
capital Brasília. A trabalhar nas obras dela o nosso amigo e ex-colega de
equipa viria a falecer vítima de acidente com um tractor.
Comentámos a prova
de Roma e voltámos ao nosso tempo. Daí a lembrarmo-nos do Shintaro Yokoshi /que
acabara de falecer) foi um salto de… pulga. A sua chegada à noite ao
estádio/piscina (de 33 e pozinhos metros) foi um verdadeiro espectáculo. Tinha
22 anos, era um Zé Lingrinhas, mas fora campeão no seu país, o do Sol Nascente,
como se dizia. Contratado para treinador dos atletas do Algés e Dafundo, foi
sentar-se na bancada acompanhado duns tipos da direcção do clube e dum
japo-brasileiro há muito residente em Portugal a servir de intérprete, embora
Yokoshi, licenciado em Economia falasse inglês.
Descoberto pelos assistentes à competição (em que eu participava) os jogos da JEUSES
Jeunes Sportives de l’Europe du Sud, começaram os pedidos altissonantes
para que ele fizesse uma exibição dos seus dotes. Shintaro levantou-se, foi ao
vestiário, pôs uns calções, subiu ao marco de partida, ao seu lugar, pum,
quatro vezes cem metros nos quatro estilos, todos batendo por larga margem os
recordes de Portugal! O estádio/piscina só não veio abaixo porque os
alicerces eram basto sólidos…
O treinador japonês que sobreviveu à bomba atómica na cidade onde
vivia como criança com a família, Nagasaki, foi-se deixando ficar numa terra
que desconhecia. Estranhou mas habituou-se ao bacalhau e ao caldo verde.
Casou e teve filhos com uma portuguesa. Ficou para "vingar" no
trabalho, o que só aconteceu mais de 20 anos depois, quando o próprio
filho, Alexandre Yokochi, também ele nadador, se sagrou finalista Olímpico em Los Angeles (1984).
Lanceiros 2 na Calçada
da Ajuda da arma da cavalaria foi o quartel onde assentei praça como cadete
miliciano. Aliás as primeiras semanas passeias acampado com mais outros cadetes
e moços destinados a futuros furriéis milicianos – em tendas de três panos para
três desgraçados e palha como cama comum. Rica vida castrense.
Findas as “férias” junto ao Atlântico (a que nunca pusemos os olhos em
cima, trotámos em marcha acelerada com todo o equipamento às costas a marginal
até parar no ansiado quartel. Julgava eu e (ilusão ingénua) mais os noventa
maçaricos, ou seja aos novatos fardados que iriamos ter uns momentos mais
“suaves”. Estulta esperança; ninguém sabia os tormentos que nos estavam
guardados – entre os quais uma instrução de judo!
Aí estava o busílis da merda. O instrutor especialmente convidado pelos
manda-chuvas do Exército era um tal Kiyoshi
Kobayashi Já na altura era uma celebridade. Médico de
profissão, fora quem tratara o nosso campeão e herói nacional Carlos Lopes a
uma lesão no tendão de Aquiles ainda antes de este se ter sagrado campeão
olímpico, em 1984.
Chegara nesse ano mas ficaria para sempre no nosso país. Mestre Kobayashi,
uma das mais altas graduações da Modalidade – 9º Dan, foi um dos
grandes responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento da modalidade em Portugal,
sendo conhecido inclusive como “o
pai do judo português”. Foi Selecionador e Treinador da Equipa
Nacional e acompanhou-as em Campeonatos da Europa e do Mundo, assim
como nas edições dos Jogos
Olímpicos de Montreal (1976), Los Angeles(1984)
e Seul (1988).
Quando chegou a minha vez de ir para o tapete onde se encontrava o
Mestre japonês o meu macacão estava molhado de suor. Os primeiros passos só pra
aqueceres escaparam; mas quando o sacrista m atirou ao chão apenas com um
golpe de braço e perna doeu-me pra burro. Levantei-me vermelho que nem tomate,
Assistiam vários oficiais às demonstrações entre os quais os comandantes
do meu pelotão e do esquadrão a que pertencia. Galhofa. Risada geral. E
Kobayashi: “Este não presta, é merda.” Não sei como se diz filho-da-puta
em japonês, mas chamei-lho – em português, alto e bom som!!!! Três
fins-de-semana sem ir a casa.
Mais tarde, antes de terminar o primeiro
ciclo do COM, o Curso para Oficiais Milicianos, pedi ao Shintaro Yokoshi, de
quem ficara bom amigo, para me escrever em japonês aquela expressão que “remetera” ao compatriota judoca. O treinador
deu uma gargalhada (já era meio portuga…) e alertou-me: “É assim. Mas quando
pedires suschi num restaurante japonês não lhe chames assim
クソ野郎,e
óbvio, concordei.