Antunes
Ferreira
C
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oronel (na reserva) Sebastião Lopes Monteiro, viúvo, adorava
contar estórias da guerra do Ultramar (continuava a dizer assim, nem pensar em
colonial) em particular com ele como protagonista. Aos 82 anos conservava ou
julgava que conservava o garbo e o pundonor militares, mas as dioptrias eram um
problema, assim como a bengala de castão de prata pois manquejava. Gota, diziam-lhe
os médicos, mas Monteiro não aceitava o diagnóstico e à porta fechada
insultava-os: grandes pulhas, querem ver-me a fazer tijolo, mas comigo não, no
fundo quase que se julgava eterno.
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Rendição de Goa |
U
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sava dizer que os anos passavam por ele mas não o
desarmavam. Aí, valente! Se ele tivesse estado em Goa em Dezembro de 91 como
alferes (da Escola do Exército) teria derrotado os 54.000 homens do Exército,
Marinha e Força Aérea indianas. Sozinho, de Mauser em punho, dizimava aquela
soldadesca de pacotilha, e aqueles pan…, digo, maricas dos portugas, a mando
dum general (nem queria dizer o nome do gajo) governador-geral tinham-se
rendido, contrariando as ordens do Senhor Presidente do Concelho!
E
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ra em casa da dr. Joaquina, companheira da sua falecida
esposa, Deus a guarde à Sua direita, em Odivelas, que contava as suas estórias
durante os chás das quintas-feiras onde também se jogava o king ou a canasta. Compareciam
diversas Senhoras, sempre as mesmas, o reverendo padre Francisco, prior da
freguesia e o conselheiro Fagundes jubilado. As Senhoras escutavam o coronel
(na reserva) de olhos arregalados, nem todos os dias se podia ouvir um herói, e
Lopes Monteiro era-o…
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Manutenção de Piper militar |
P
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or uma tarde cacimbada, o aquecimento ligado, a Senhora
Dona Celestina – que não fora companheira da sua saudosa cara-metade nem estudara
em Odivelas, mas era uma pessoa fina – pediu-lhe que contasse mais uma estória
das suas campanhas em África, mas Vossas Excelências já ouviram todas, ou quiçá…,
perdoar-me-ão mas mesmo agora me recordei de uma passada em Moçambique numa
avioneta que penso que não vos contei…
C
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onte Senhor Coronel, que essa não ouvimos, por obséquio
conte. Ao grupo de Senhoras chegaram-se o prior e o conselheiro aposentado para
ouvir Lopes Monteiro. Sentaram-se todos mas o coronel (na reserva) ficou firmemente
em pé apoiado na sua bengala de castão de prata e começou: ia numa Piper (uma
avioneta de reconhecimento) militar pilotada por um furriel miliciano da Força
Aérea, de seu nome Amável, quando passávamos sobre uma manada de búfalos.
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Uma manada de búfalos |
O
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rdenei ao piloto rapaz faz um rase-motte sobre a manada e ele assim fez; rapei da minha Parabellum
(para quem não saiba, Senhoras e cavalheiros, era uma pistola alemã muito fiável
e segura), abri a janela da Piper, apontei e dei só um tiro e um búfalo caiu.
Aterrámos de seguida numa chana e vi que a bala acertara justamente no olho
direito do quadrúpede. Nisto Lopes Monteiro reparou que as Senhoras levantavam
pudicamente um pouco das saias e os cavalheiros puxavam as calças ligeiramente.
F
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ranziu o cenho e perguntou: fazem o subido obséquio de me
explicar o que se passa? E a dr. Joaquina explicou que estavam a meter água.
Mas, rebentou algum cano? Não é a água que metemos por mor da estória que Vossa
Excelência, Senhor coronel (mas não disse na reforma) nos contou.
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Nunca mais... |
S
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ebastião Lopes Monteiro, coronel (na reserva) pigarreou,
muito boas noites a todos, saiu da sala manquejando embora apoiado na bengala
de castão de prata, vestiu a gabardina pegou no guarda-chuva e zarpou. Enquanto
esperava pelo ascensor pareceu-lhe ouvir um coro de gargalhadas vindo do
interior do apartamento. Entrou no elevador; velhas filhas da p…, oops, da mãe,
juro pela alma da minha Ernestina que nunca mais aqui volto! E carregou no
botão do rés-do-chão.