2018-03-05



Crime no Hipermercado

Antunes Ferreira

Na fila à minha frente estavam cinco pessoas a primeira das quais, um senhor gordo, de barriga proeminente de cerveja, acabava de meter dois euros na ranhura da máquina distribuidora de alimentos, plin, baixou e apanhou na gaveta principal uma garrafa de Água das Pedras e trins o troco na gaveta mais pequena. Seguiu-se uma jovem que transportava um carrinho de bebé com a pequena cobertura levantada, lá fora chovia, um rapaz preto de capuz, uma senhora já entradote com óculos e eu.

Era uma média-superfície Continente de Telheiras onde habitualmente a Raquel e eu íamos às sextas-feiras fazer as compras semanais. Mas dessa feita tínhamos ido ao domingo, era o terceiro dia antes do Natal e naturalmente o que motivava eram… grinaldas, muitos anúncios coloridos, e saldos natalícios, toneladas de brinquedos, muitos dos quais electrónicos,
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Pais Natais insufláveis etc. não faltavam numa policrómica eufórica. Até as meninas e os rapazes das caixas (tchac, tchac, tchac das registadoras de etiquetas de barras) usavam os tradicionais barretes do Pai Natal. Nos corredores diante da frente das caixas havia uns marmanjos disfarçados de Pai Natal, com barbas de fios de plástico e barrigas de almofadas…
A algazarra tinha-se estabelecido around the clock misturando-se o ruido das pessoas com os sons díspares das campainhas, sinetas, e peques badaladas dos instrumentos mais diversos que por ali havia. Uma cacofonia álacre(*) envolve a massa dos cidadãos sejam vendedores sejam compradores, novos ou velhos, adultos ou crianças, enquanto o assalto às gôndolas onde estão colocados os mais diversos produtos tentam ser descarnadas sem sucesso, pois os repositores numa roda-viva vão preenchendo esse tentativa  desanimada.   

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Como música de fundo soa o clássico
Jingle bells, jingle bells, jingle all the way
Oh, what fun it is to ride in a one horse open sleigh
Ladies and gentlemen
I give you the jingle bass
Merry Christmas!!!!!!

á temos o carrinho (devia ser chamado 
carrão tal era o “recheio” dele) com um montão de compras e 
algum brinquedo, mas sobretudo vales de compras para a 
descendência, os netos já têm, o João, 12, o Rodrigo e o Xavier, 9, 
o Vicente 6 e a Madalena, 4, os pais vão receber livros quer eles quer as respectivas mulheres gostam de ler e para mim e para a Raquel… o segredo é a alma do negócio…

Quando cheguei caixa, há duas senhoras à minha frente que vão tagarelando em voz baixa mas suficiente para ser ouvida. 
Dizia uma para a outra, Senhora dona  Matilde soube daquela 
desgraça que aqui aconteceu há duas semanas? A outra senhora,
por certo alentejana respondeu-lhe: Atão nã havera de saberi? Foi 
uma pobrezinha duma menina
Caixa 
 duma caixa que levou um tiro mesmo no mêo do pêto dado por
um filho da puta que trazia na na mão esquerda trazia uma garrafa de uísque daquelas das mais caras e ainda por cima fanada! 

Logo que descemos à garagem e saímos com destino a casa no rádio a cantando  o  Manuel Freire a Pedra Filosofal que adoramos:
 Eles não sabem que o sonho 
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
Manuel Freire
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre (*)e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

(*) Palavra que também consta da "Pedra Filosofal"