Crime
no Hipermercado
Antunes Ferreira
Na fila à minha frente estavam cinco
pessoas a primeira das quais, um senhor gordo, de barriga proeminente de
cerveja, acabava de meter dois euros na ranhura da máquina distribuidora de
alimentos, plin, baixou e apanhou na gaveta principal uma garrafa de Água das
Pedras e trins o troco na gaveta mais pequena. Seguiu-se uma jovem que
transportava um carrinho de bebé com a pequena cobertura levantada, lá fora
chovia, um rapaz preto de capuz, uma senhora já entradote com óculos e eu.
Era uma média-superfície Continente de
Telheiras onde habitualmente a Raquel e eu íamos às sextas-feiras fazer as
compras semanais. Mas dessa feita tínhamos ido ao domingo, era o terceiro dia
antes do Natal e naturalmente o que motivava eram… grinaldas, muitos anúncios
coloridos, e saldos natalícios, toneladas de brinquedos, muitos dos quais
electrónicos,
Pais Natais insufláveis etc. não faltavam numa policrómica
eufórica. Até as meninas e os rapazes das caixas (tchac, tchac, tchac das
registadoras de etiquetas de barras) usavam os tradicionais barretes do Pai
Natal. Nos corredores diante da frente das caixas havia uns marmanjos
disfarçados de Pai Natal, com barbas de fios de plástico e barrigas de
almofadas…
Sem legenda |
A algazarra tinha-se estabelecido around the clock misturando-se o ruido
das pessoas com os sons díspares das campainhas, sinetas, e peques badaladas
dos instrumentos mais diversos que por ali havia. Uma cacofonia álacre(*)
envolve a massa dos cidadãos sejam vendedores sejam compradores, novos ou
velhos, adultos ou crianças, enquanto o assalto às gôndolas onde estão
colocados os mais diversos produtos tentam ser descarnadas sem sucesso, pois os repositores numa roda-viva vão
preenchendo esse tentativa desanimada.
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Como música de fundo soa o clássico
Jingle bells, jingle
bells, jingle all the way
Oh, what fun it is to ride in a one horse open sleigh
Ladies and gentlemen
I give you the jingle bass
Oh, what fun it is to ride in a one horse open sleigh
Ladies and gentlemen
I give you the jingle bass
Merry Christmas!!!!!!
J á temos o
carrinho (devia ser chamado
carrão tal era o “recheio” dele) com um montão de
compras e
algum brinquedo, mas sobretudo vales de compras para a
descendência, os netos já têm, o João, 12, o Rodrigo e
o Xavier, 9,
o Vicente 6 e a Madalena, 4, os pais vão receber livros
quer eles quer as respectivas mulheres gostam de ler e para mim e para a Raquel… o segredo é a alma do negócio…
Quando cheguei caixa, há duas senhoras à minha frente que vão tagarelando em voz baixa mas
suficiente para ser ouvida.
Dizia uma para a outra, Senhora dona Matilde soube daquela
desgraça que aqui aconteceu há
duas semanas? A outra senhora,
por certo alentejana respondeu-lhe: Atão nã havera
de saberi? Foi
um filho da puta
que trazia na na mão esquerda trazia uma garrafa de uísque daquelas das mais caras e ainda por cima fanada!
Logo que descemos à garagem e saímos com destino a casa no rádio a
cantando o Manuel Freire a Pedra Filosofal que adoramos:
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
Manuel Freire |
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre (*)e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
(*) Palavra que também consta da "Pedra Filosofal"