2023-01-13

 

Um tempo muito danado

 

*Pezinhos de coentrada com branco de Pias

 

Antunes Ferreira

De acordo com um senhor chamado Bruno Café a semana ia ser muito fria; ele era meteorologista do IPMA, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera e entrava na casa das pessoas (sem pedir licença) através da caixa que revolucionou o Mundo – a televisão.  A bica arrefecia, esquecida, em cima da mesa, enquanto Maurício mudou com o comando manual o programa para a CNN Portugal.



 

Esbugalhou os olhos, ele e os restantes fregueses do restaurante-bar perante o espectáculo degradante que se lhes deparava de Brasília: o assalto duma turba enlouquecida à Praça dos Três Poderes:  uma gentalha  radical de apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro invadia e depredava o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, perante forças policiais que pouco ou nada faziam ou até parecia que apoiavam a selvajaria. Um tempo muito danado.

 

Um déjà vu surgiu de imediato na maioria dos assistentes: o assalto ao Congresso norte-americano por apoiantes do despeitado ex-presidente Donald Trump derrotado nas urnas pelo candidato democrata Joe Biden, actual presidente dos EUA. E (mais uma singular coincidência?) encontrava-se nos Estados Unidos Bolsonaro que contra toda a tradição política brasileira não assistira à posse do seu sucessor e por isso não lhe transmitira a faixa presidencial.

 

Quer um (Trump) quer o outro (Bolsonaro) se consideravam (e continuam a considerar) espoliados nos actos eleitorais. Estão no seu direito, pois em democracia discordar não só é permitido, mas também é exigido. Mas daí ao terrorismo vai um salto tamanho que só pode ser severamente punido nos termos da lei – e só neles. Portanto, à estranheza motivada pelas imagens vindas da capital brasileira juntou-se imediatamente o sentimento de revolta tão característico dos portugueses.

 

Entrementes lá fora a rua era um caudal de água e lama. Às reportagens das televisões juntavam-se as imagens colhidas pelos smartfones de cidadãos mostrando automóveis semi-submersos, crateras abertas nos pavimentos das ruas e dos passeios. Vagas alterosas junto às costas lambendo inexoráveis as praias desnudas, árvores e postes diversos derrubados. Gente de vassouras, baldes e rodos em punho, calças arregaçadas, botas de borracha. E muitos bombeiros desde os sapadores até aos voluntários das mais diversas corporações, com barcos de salvamento etc.



 Maurício viu que tão cedo não voltaria ao quarto alugado que tinha ali à Morais Soares e por conseguinte pediu a ementa para comer qualquer coisa. Era um cliente habitual e o Semedo, um empregado logo na fundação da casa (a servir os clientes desde 1959, dizia-se debaixo do nome no menu a seguir ao nome do estabelecimento O Tacho de Arraiolos) sugeriu-lhe uma coisa levezinha, uns pés de porco de coentrada, que estavam uma delícia, especialidade da dona Alice, coproprietária e cozinheira alentejana de truz. Com um jarrinho de tinto de Pias…

 

Seja, que viessem os pezinhos com muitos coentros e, entretanto, umas azeitonas calhavam bem. “Ó sôr Maurício, atão não havera de ser, elas já aqui ‘’stão, acabadinhas de sair do tarro, temperadas à nossa manêra!”  No ecrã passara a crise do governo. Com a confusão da TAP e das demissões de ministros e secretários de Estado. Na mesa ao lado, um brincalhão dizia para o senhor que o acompanhava que agora já percebia a razão de serem autorizadas cinco substituições nas equipas de futebol: é só metade do time e saltava uma gargalhada.

 


Pelo que ouvia o primeiro-ministro parecia passar um salvo conduto ao ex-seleccionador-treinador nacional Fernando Santos de quem se dissera (e ainda se dizia) cobras e lagartos. E a corroborar essa mistela entre a política e o futebol logo no televisor surgia a novidade: o novo responsável pela equipa das quinas era um… espanhol. Roberto Martinez. Vindo de tomar conta (?) da selecção belga.

 

“Olha-me pra estes figurões da Federação, a começar pelo Fernando Gomes que é um pau mandado do Pinto da Costa! Já não lhes bastavam os Filipes e mandam vir agora um perro castelhano! Grandessíssimos filhos das putas!”  O espanhol vai botando faladura que assim, que assado, que vem para vencer (pudera, havia de dizer que vinha para levar no…) e que a partir do momento a camisola dele era a de Portugal e patati-patata. Aljubarrota já foi.

 

Vieram os pezinhos de coentrada com migas enroladas (o acompanhamento é uma ideia da dona Alicinha, explicou o sôr Semedo normalmente elas vêm com lombo de porco assado,ou costeletas fritas, mas o sôr Maurício vai gostar do miminho, têm muito alho picadinho e também coentros). Na pantalha – como dizem os espanhóis que agora parece que vão estar em moda – aparece o presidente Zelensky.

 


Fala da guerra e a CNN Portugal vai entremeando as imagens das cidades, vilas, escolas, hospitais tudo destruído, com o papa Francisco declarando que a agressão russa é um crime hediondo e Vladimir Putin, declarando que a indústria militar russa está de parabéns pois desenvolveu a “arma total” que mais nenhum país possui e que permite à Rússia defender-se de qualquer ataque venha ele de onde vier.

 

Os pezinhos estão uma maravilha e o tinto de Pias é uma obra de arte vinícola, um néctar divino. “Ó Semedo hás de dizer à dona Alice ou ao sôr Albano para me arranjarem uma dúzia de garrafas deste Pias que eu compro-as para as guardar para quando me casar…”  Semedo nem precisa de tomar nota, são muitos anos de servir à mesa e de conhecer os comensais.

 

“Pode estar descansadinho, sôr Maurício. ‘Tá feito. Vou arranjar uma caixa de cartão forte e depois é só levá-las.”  Faz-se agora um silêncio quase religioso na sala. É o Enzo Fernández que vai jogar contra o Varzim para a Taça de Portugal e o tipo da SporTV diz que o negócio com o Chelsea está em banho-maria porque os ingleses não querem pagar os 120 milhões de euros da cláusula exigida pelo Benfica,

 

Não haja dúvidas que o futebol é qu’induca e a porca da política é que não instrói. E o tinto de Pias é o máximo. Maurício vai pensando enquanto o sôr Semedo lhe põe na frente um copo e uma garrafa sem rótulo a fazer companhia a nova bica cheia. “É a bagaceira da casa, do monte dos patrões, uma oferta para rebater os pezinhos. E que tal estavam os bichos?”   Não é demorada a resposta, acompanhada dum arroto disfarçado: “De comer e chorar por mais. Divinais. A dona Alice tem garantido um lugar no Céu à direita de Deus Pai para quem entra! Ah, ah, ah!...”

 


Parou de chover. Maurício pagou, enrolou o chapéu de chuva, educadamente deu as boas noites ao restante pessoal, deitou uma espreitadela pela cozinha para felicitar a Alicinha “Ó menina, que esplendor, que magnificência, não há nada que chegue aos calcanhares da nossa cozinha alentejana. Estava tudo óptimo. Adeusinho, Até amanhã.”  E foi-se.

 

Chegado a casa da senhora dona Efigénia Sebastião, viúva do engenheiro Alcides Moreira Sebastião, que lhe alugava o quarto com serventia para a casa de banho (os tempos não iam fáceis) verificou primeiro que as cordas de água não tinham causado danos no prédio construído depois da estafa das notas do Banco Angola e Metrópole da autoria de Alves dos Reis e depois que a digna senhora não recusara a oferta duma garrafa das de Pias.

 

E foi assim que Maurício Saraiva e Melo não se afogou no dilúvio da chuvada tsunâmica: afogou-se, sim, no tinto piasanco terminando na bagaceira da garrafa sem rótulo.

 



Quo vadis Brasil?

 

Antunes Ferreira

Uma nota prévia é importante para quem se der ao cuidado de ler este texto: não tenho nada contra Jair Bolsonaro pessoalmente – só não gosto dele. Conheci pessoalmente Luiz Inácio Lula da Silva num almoço convidado por Mário Soares aqui em Lisboa, O político não renegava o operário metalúrgico e isso era o que, para mim, lhe conferia, um encanto e um carisma muito especial. Almoçaria uns tempos depois com Fernando Color de Melo, sem Mário Soares, num encontro promovido pelo Diário de Notícias. Deste tenho fotos. Do primeiro – não. Não se pode ter tudo.

 

Por isso gostei logo à partida dele, Habituado que estava de contactar personalidades internacionais do mundo da política, com os sus tiques, as suas prepotências, as suas más educações, as sus pesporrências, (numa esporádica situação de casos, felizmente nem todos) a bonomia de Lula deitavam abaixo quaisquer preconceitos que eu levasse na algibeira.  

 

Segui com atenção a reportagem da CNN Portugal (finalmente um canal televisivo a sério) a tomada de posse do 39.º Presidente d República Federativa do Brasil. Espectáculo empolgante, com  a participação maciça do povo e principalmente com  intervenção dos representantes das minorias ostracizadas pelo ex-mandatário Bolsonaro. Que, feliz ou infelizmente não esteva presente.

 

Numa participação premonitória do que se passaria logo a seguir à imposição da faixa presidencial a Lula da Silva, Bolsonaro partira para os Estados Unidos quiçá para se encontrar com o seu homólogo Donald Trump, unidos ambos na mesa contestação aos resultados eleitorais em que tinham sido derrotados, mas que não queriam aceitar,

 


E, inopinadamente, um déjà vu: o que acontecera meses antes com a dramática invasão e destruição do Congresso em Washington repetia-se agora em Brasília com  tumultuosa e criminosa devastação por uma multidão enlouquecida da Praça dos Três Poderes: o Palácio Presidencial, sede do Executivo Federal, o Palácio da Justiça, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Congresso Nacional, local da origem da Legislação Federal.

 

Uma vez mais a CNN Portugal transmitia em directo essa selvajaria com a massa popular destruindo tudo o que encontrava dentro dos edifícios na maioria do caso perante os olhares impávidos das autoridades (?) policiais que esporadicamente noutros empregavam mangueiras de água sem resultados visíveis.

 

Um Lula visivelmente abatido e simultaneamente amarfanhado veio falar ao povo brasileiro garantindo que os responsáveis seriam severamente punidos. Mas quais? E quando? Com que meios? Quem são os governadores dos Estados? De que lado estão? Quais estão a ”contar as espingardas”? Os desmandos da capital federal não foram, ao que parece, isolados. O Brasil é muito grande. Diz-se num espírito (que neste contexto será estupidamente utilizado) que quando o Brasil espirra a América do Sul apanha uma gripe, talvez até uma pneumonia.

 

Quem punirá quem? O que farão os militares? Jair Bolsonaro (que acabou de dizer que para ele a “democracia” é o mais importante na política e que ele no seu governo sempre praticou…) apoiou-se nos generis – ou pelo menos em muitos deles – para governar como governou (ou se governou?) e por isso com quais poderá contar Lula da Silva?

 

Fui muitas vezes ao Brasil, tenho uma boa parte da minha formação académica obtida lá e penso conhecer razoavelmente o país que considero também um pouco meu. Quando Stefan Zweig escreveu o “Brasil – o país do Futuro” lançou uma anatomia sobre ele. Era só o que lhe faltava – uma guerra civil. Quo vadis Brasil?