Um tempo muito danado
*Pezinhos de
coentrada com branco de Pias
Antunes Ferreira
De acordo com um
senhor chamado Bruno Café a semana ia ser muito fria; ele era meteorologista do
IPMA, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera e entrava na casa das pessoas
(sem pedir licença) através da caixa que revolucionou o Mundo – a televisão. A bica arrefecia, esquecida, em cima da mesa,
enquanto Maurício mudou com o comando manual o programa para a CNN Portugal.
Esbugalhou
os olhos, ele e os restantes fregueses do restaurante-bar perante o espectáculo
degradante que se lhes deparava de Brasília: o assalto duma turba enlouquecida
à Praça dos Três Poderes: uma gentalha radical de apoiantes do ex-presidente Jair
Bolsonaro invadia e depredava o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal, perante forças policiais que pouco ou nada faziam ou
até parecia que apoiavam a selvajaria. Um tempo muito danado.
Um déjà vu surgiu de imediato na maioria dos assistentes:
o assalto ao Congresso norte-americano por apoiantes do despeitado
ex-presidente Donald Trump derrotado nas urnas pelo candidato democrata Joe
Biden, actual presidente dos EUA. E (mais uma singular coincidência?) encontrava-se
nos Estados Unidos Bolsonaro que contra toda a tradição política brasileira não
assistira à posse do seu sucessor e por isso não lhe transmitira a faixa
presidencial.
Quer um (Trump) quer o outro (Bolsonaro) se
consideravam (e continuam a considerar) espoliados nos actos eleitorais. Estão
no seu direito, pois em democracia discordar não só é permitido, mas também é
exigido. Mas daí ao terrorismo vai um salto tamanho que só pode ser severamente
punido nos termos da lei – e só neles. Portanto, à estranheza motivada pelas
imagens vindas da capital brasileira juntou-se imediatamente o sentimento de
revolta tão característico dos portugueses.
Entrementes lá fora a rua era um caudal de água e lama. Às reportagens das televisões juntavam-se as imagens colhidas pelos smartfones de cidadãos mostrando automóveis semi-submersos, crateras abertas nos pavimentos das ruas e dos passeios. Vagas alterosas junto às costas lambendo inexoráveis as praias desnudas, árvores e postes diversos derrubados. Gente de vassouras, baldes e rodos em punho, calças arregaçadas, botas de borracha. E muitos bombeiros desde os sapadores até aos voluntários das mais diversas corporações, com barcos de salvamento etc.
Seja, que viessem os pezinhos com muitos coentros e,
entretanto, umas azeitonas calhavam bem. “Ó sôr Maurício, atão não havera de
ser, elas já aqui ‘’stão, acabadinhas de sair do tarro, temperadas à nossa
manêra!” No ecrã passara a crise do
governo. Com a confusão da TAP e das demissões de ministros e secretários de
Estado. Na mesa ao lado, um brincalhão dizia para o senhor que o acompanhava
que agora já percebia a razão de serem autorizadas cinco substituições nas
equipas de futebol: é só metade do time e saltava uma gargalhada.
Pelo que ouvia o primeiro-ministro parecia passar um
salvo conduto ao ex-seleccionador-treinador nacional Fernando Santos de quem se
dissera (e ainda se dizia) cobras e lagartos. E a corroborar essa mistela entre
a política e o futebol logo no televisor surgia a novidade: o novo responsável
pela equipa das quinas era um… espanhol. Roberto Martinez. Vindo de tomar conta
(?) da selecção belga.
“Olha-me pra estes figurões
da Federação, a começar pelo Fernando Gomes que é um pau mandado do Pinto da
Costa! Já não lhes bastavam os Filipes e mandam vir agora um perro castelhano!
Grandessíssimos filhos das putas!” O espanhol vai botando faladura que assim, que
assado, que vem para vencer (pudera, havia de dizer que vinha para levar no…) e
que a partir do momento a camisola dele era a de Portugal e patati-patata.
Aljubarrota já foi.
Vieram os pezinhos de coentrada com migas enroladas (o
acompanhamento é uma ideia da dona Alicinha, explicou o sôr Semedo normalmente
elas vêm com lombo de porco assado,ou costeletas fritas, mas o sôr Maurício vai
gostar do miminho, têm muito alho picadinho e também coentros). Na pantalha
– como dizem os espanhóis que agora parece que vão estar em moda – aparece o
presidente Zelensky.
Fala da guerra e a CNN Portugal vai entremeando as imagens
das cidades, vilas, escolas, hospitais tudo destruído, com o papa Francisco
declarando que a agressão russa é um crime hediondo e Vladimir Putin,
declarando que a indústria militar russa está de parabéns pois desenvolveu a
“arma total” que mais nenhum país possui e que permite à Rússia defender-se de
qualquer ataque venha ele de onde vier.
Os pezinhos estão uma maravilha e o tinto de Pias é uma
obra de arte vinícola, um néctar divino. “Ó Semedo hás de dizer à
dona Alice ou ao sôr Albano para me arranjarem uma dúzia de garrafas deste Pias
que eu compro-as para as guardar para quando me casar…” Semedo nem precisa de tomar nota, são muitos
anos de servir à mesa e de conhecer os comensais.
“Pode estar descansadinho, sôr
Maurício. ‘Tá feito. Vou arranjar uma caixa de cartão forte e depois é só
levá-las.” Faz-se agora um silêncio quase religioso na
sala. É o Enzo Fernández que vai jogar contra o Varzim para a Taça de Portugal
e o tipo da SporTV diz que o negócio com o Chelsea está em banho-maria porque
os ingleses não querem pagar os 120 milhões de euros da cláusula exigida pelo
Benfica,
Não haja dúvidas que o futebol é qu’induca e a porca da
política é que não instrói. E o tinto de Pias é o máximo. Maurício vai pensando
enquanto o sôr Semedo lhe põe na frente um copo e uma garrafa sem rótulo a
fazer companhia a nova bica cheia. “É a bagaceira da casa, do monte dos
patrões, uma oferta para rebater os pezinhos. E que tal estavam os bichos?” Não é demorada a resposta, acompanhada dum
arroto disfarçado: “De comer e chorar por mais. Divinais. A dona Alice tem
garantido um lugar no Céu à direita de Deus Pai para quem entra! Ah, ah, ah!...”
Parou de chover. Maurício pagou, enrolou o chapéu de
chuva, educadamente deu as boas noites ao restante pessoal, deitou uma
espreitadela pela cozinha para felicitar a Alicinha “Ó menina, que
esplendor, que magnificência, não há nada que chegue aos calcanhares da nossa
cozinha alentejana. Estava tudo óptimo. Adeusinho, Até amanhã.” E foi-se.
Chegado a casa da senhora dona Efigénia Sebastião,
viúva do engenheiro Alcides Moreira Sebastião, que lhe alugava o quarto com
serventia para a casa de banho (os tempos não iam fáceis) verificou primeiro
que as cordas de água não tinham causado danos no prédio construído depois da
estafa das notas do Banco Angola e Metrópole da autoria de Alves dos Reis e
depois que a digna senhora não recusara a oferta duma garrafa das de Pias.
E foi assim que Maurício Saraiva e Melo não se afogou
no dilúvio da chuvada tsunâmica: afogou-se, sim, no tinto piasanco terminando na
bagaceira da garrafa sem rótulo.
Quo vadis Brasil?
Antunes Ferreira
Uma nota prévia
é importante para quem se der ao cuidado de ler este texto: não tenho nada
contra Jair Bolsonaro pessoalmente – só não gosto dele. Conheci pessoalmente Luiz
Inácio Lula da Silva num almoço convidado por Mário Soares aqui em Lisboa, O
político não renegava o operário metalúrgico e isso era o que, para mim, lhe
conferia, um encanto e um carisma muito especial. Almoçaria uns tempos depois
com Fernando Color de Melo, sem Mário Soares, num encontro promovido pelo
Diário de Notícias. Deste tenho fotos. Do primeiro – não. Não se pode ter tudo.
Por isso gostei logo à partida dele, Habituado que estava de
contactar personalidades internacionais do mundo da política, com os sus
tiques, as suas prepotências, as suas más educações, as sus pesporrências,
(numa esporádica situação de casos, felizmente nem todos) a bonomia de Lula
deitavam abaixo quaisquer preconceitos que eu levasse na algibeira.
Segui com atenção
a reportagem da CNN Portugal (finalmente um canal televisivo a sério) a tomada
de posse do 39.º Presidente d República Federativa do Brasil. Espectáculo
empolgante, com a participação maciça do
povo e principalmente com intervenção
dos representantes das minorias ostracizadas pelo ex-mandatário Bolsonaro. Que,
feliz ou infelizmente não esteva presente.
Numa participação premonitória
do que se passaria logo a seguir à imposição da faixa presidencial a Lula da
Silva, Bolsonaro partira para os Estados Unidos quiçá para se encontrar com o
seu homólogo Donald Trump, unidos ambos na mesa contestação aos resultados
eleitorais em que tinham sido derrotados, mas que não queriam aceitar,
E, inopinadamente, um déjà vu: o que
acontecera meses antes com a dramática invasão e destruição do Congresso em
Washington repetia-se agora em Brasília com
tumultuosa e criminosa devastação por uma multidão enlouquecida da Praça
dos Três Poderes: o Palácio Presidencial, sede do Executivo Federal, o Palácio
da Justiça, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Congresso Nacional, local
da origem da Legislação Federal.
Uma vez mais a
CNN Portugal transmitia em directo essa selvajaria com a massa popular
destruindo tudo o que encontrava dentro dos edifícios na maioria do caso
perante os olhares impávidos das autoridades (?) policiais que esporadicamente
noutros empregavam mangueiras de água sem resultados visíveis.
Um Lula visivelmente
abatido e simultaneamente amarfanhado veio falar ao povo brasileiro
garantindo que os responsáveis seriam severamente punidos. Mas quais? E quando?
Com que meios? Quem são os governadores dos Estados? De que lado estão? Quais
estão a ”contar as espingardas”? Os desmandos da capital federal não foram, ao
que parece, isolados. O Brasil é muito grande. Diz-se num espírito (que neste
contexto será estupidamente utilizado) que quando o Brasil espirra a América do
Sul apanha uma gripe, talvez até uma pneumonia.
Quem punirá quem? O
que farão os militares? Jair Bolsonaro (que acabou de dizer que para ele a
“democracia” é o mais importante na política e que ele no seu governo sempre
praticou…) apoiou-se nos generis – ou pelo menos em muitos deles – para
governar como governou (ou se governou?) e por isso com quais poderá contar
Lula da Silva?
Fui muitas vezes ao
Brasil, tenho uma boa parte da minha formação académica obtida lá e penso
conhecer razoavelmente o país que considero também um pouco meu. Quando Stefan
Zweig escreveu o “Brasil – o país do Futuro” lançou uma anatomia sobre
ele. Era só o que lhe faltava – uma guerra civil. Quo vadis Brasil?