2019-02-17




SANGUE EM GOA

Xit Coddi (Caril goês)

Antunes Ferreira
Tudo viria a correr sobre esferas. A viagem em primeira classe com todas as mordomias, as assistentes um encanto, os chefes de cabine excelentes (embora o primeiro me parecesse um tanto amaricado… o que é relativamente vulgar) resumindo, um verdadeiro mimo quer na Emirates quer na Air India. O terminal de Dabolim para mim foi uma agradável surpresa. Claro que sorridentíssimo o primo Salviano lá estava de braços abertos para me dar as boas vindas e me explicar que o aeroporto era militar e já vinha do tempo dos portugueses, mas que também era usado para os voos comerciais aliás o seu fim principal.

Sem legenda


Era pouco mais das onze da noite, alguém se encarregou de recolher a minha bagagem, o meu recém-primo devia ser pessoa importante e bem relacionada pois as questões aduaneiras e fronteiriças decorreram rapidamente, ainda que se tivessem formado longas filas, a que Salviano continuava a chamar bichas. Constituídas sobretudo por turistas – e algumas delas que turistas! – o primo ia-me elucidando sobre o boom do turismo no estado que sendo o mais pequeno da India tinha no maior PIB. Quando lhe falei do motivo que nos levava a utilizar  o termo filas ele soltou uma gargalhada: “Sigo toda a RTPI!...” Começava a estar em casa.

Aliás foi em casa dele que fiquei alojado. Tenho de abrir aqui uma parentética. Qual casa qual quê? Um palácio! Ou seja uma casa apalaçada , um casarão tipicamente colonial com doze quartos – leram bem doze – um dos quais com casa de banho privativa me fora destinado. “O primo Diogo fará o obséquio de me desculpar mas nós aqui não costumamos usar banheira, sim duche, no resto é tudo como na Europa…” No quarto com uma cama de dossel podia dar-se uma pequena festa e os guarda fatos em boa madeira bem como as mesinhas de cabeceira tudo torneado. Sentia-me como um vilão em casa do seu sogro longe vá a comparação.

A Senhora Dona Maria de Fátima, minha prima era uma mulher sorridente um tanto anafada, mãe de três filhos e três filhas, foi-me logo explicando a organização do lar, ao mesmo tempo que me sugeria uma xícara de chá. Adorei ouvir xícara, lembrando que no Brasil também a palavra (que caíra um tanto em Portugal) também era utilizada. E a digna Senhora citou de imediato: “Malhas que o Império tece” e acentuou do nosso Fernando Pessoa no poema “O menino da sua Mãe”. Um espanto.

Em síntese: Um dos filhos era médico, outro padre – tradição nas famílias católicas goesas – o terceiro advogado e o quarto economista e ambos ajudavam o pater familiae na administração dos bens e dos negócios que constituíam o património dos Noronha e Braganza e que realmente era muito grande e diversificado. Os dois primeiros tinham casa própria e os outros viviam ali com os pais e respectivas mulheres e crianças. Curiosa situação. Viria naturalmente a conhecê-las e a saber que ambas eram licenciadas que tinham trabalhado, mas que depois dos respectivos casamentos e da ida para a casa dos maridos e sobretudo após os primeiros filhos ficavam em casa. E em famílias ricas como eram estas tinham aias para cuidar das crianças permanentemente incluindo dormida em casa dos patrões.

Outra curiosidade era o uso do patrão no meio do concanim, Estes dirigiam-se aos motoristas sempre na língua oficial da terra ainda que muitos condutores falassem inglês. As diferenças entre as castas marcavam e de maneira os contactos sociais e o distanciamento entre as pessoas, Claro que depois vim a descobrir que a coexistência entre hindus e muçulmanos (que do tempo dos portugueses ficara a maneira de serem tratados por mouros) já conhecera melhores dias. Porque nessa altura segundo me diriam pessoas da terceira idade o convívio entre as diversas comunidades – cristãos, hindus, judeus, mouros, sikhs e outros – era pacífico e normal. Preferiria acreditar na boa fé dos que assim me informariam.

Igreja de Bom Jesus


Também acabaria por entender que muito boa gente e não apenas católicos mas também hindus fazia comparações com o tempo dos portugueses que para eles era melhor e mesmo muito melhor. De resto, também teria a oportunidade de ouvir em tom de lamento a um médico analista hindu que “infelizmente dentro de duas ou três gerações dos portugueses o que restará em Goa serão pedras: igrejas e fortalezas…” Nunca me quis meter nessas questões, pois podia ser rotulado de neocolonialista, mas o que é facto incontroverso é que fazia tais comparações não se coibia de o fazer perante mim. Mas bastava de considerandos sobre apontamentos sobre o tom local e passei a entrar no motivo que levara o primo Salviana a chamar-me a Goa.

Depois de uma noite quase perfeita – e disse quase e explico logo o por quê – pelas quatro da matinha fui acordo pelo altaneiro cantar de um galo, ocorrência que já não me acontecia há uma data de anos. Pensei levantar-me e ir dar um nó no pescoço do sacana do galináceo, mas logo constatei que o desgraçado era o ponta de lança de um gangue de capangas aos quais logo se seguiu um coro ecuménico de gralhas. Não havia solução à vista nem mastro real para, qual gajeiro de Catrineta, pudesse subir para descobrir outros animais sem penas e menos ruidosos; por isso virei-me para o lado e voltei a adormecer, aliás e em abono da verdade sem grande dificuldade.

No dia seguinte começaram realmente as operações que tinham motivado a minha descoberta do caminho aéreo para a India, mais precisamente para Goa, embora não me sentisse de todo um Gama hodierno e nem sequer nascera em Sines. Mas a História tem estórias por vezes tão destrambelhadas… Depois do pequeno almoço demos uma volta pela cidade cujo trânsito constatei ser muito pior do que… caótico. Só vira exemplos em vídeos, mas ao natural era de dar um pacífico cidadão recém chegado num estado de híper esquizofrenia. Automóveis, autocarros (pré-históricos? ) motorizadas, camiões, carrinhas, bicicletas, secuteres, riquexós, muitos, muitíssimos, pretos e amarelos e no meio desta catástrofe trafegueana os cidadãos verdadeiros resistentes, imunes, tranquilos.

Sem legenda mas com barulho...


E toda a gente buzina . Palavra de honra que buzina. De resto nas traseiras das caixas dos camiões, dos autocarros e até das carrinhas está pintado um conselho/ordem HORN PLEASE! Ou seja APITA POR FAVOR! Mas, se ainda pior pudera haver via-se este abracadabrante BLOW UP! – que tive forçosamente de entender por EXPLODE PORRA! Só vendo, ou melhor, só ouvindo! A cidade velha está quase na mesma como a que os portugueses deixaram e quando depois a percorri a pé descobri imensas coisas que em tem irei contando, mas agora, voltando a casa sentámo-nos à mesa para almoçar e foi aí que conheci mais uns quantos membros da família e um convidado, aliás habitual, um sacerdote, que o Diogo me apresento como sendo o padre Manuel da Cruz Xavier, um jovem a rondar os 25/30 anos – é difícil avaliar a idade desta gente mesmo dos velhos – de excelente aspecto, musculado, garboso, escanhoado, cabelo à moda e camisa aberta de colarinho um tanto arredondado que me foi dito que se chamava curtá. A camisa, claro. Quase uma estrela de Bollywood…

O repasto para apresentação ao novo primo, ou seja eu, foi um xit coddi (o clássico caril goês com muito arroz branco basmati – longo e perfumado – cozido e temperado apenas com sal, caril de camarão, na realidade gambas, e uns ratinhos de acompanhamentos que se chamam tocabocas: pará – peixe seco e salgado frito, picles picantes de manga e/ou de limão (miscut) achares (peixe temperado cozido e desfiado) picante, lutas pequenas fritas, pedaços de carne de porco marinadas e fritas e outros. Enfim, uma mesa linda, colorida e apetitosa. Para sobremesa bebinca, doce de grão e pudim de ovos à boa maneira portuguesa. Só faltou a bica.

Foi depois, já refastelados em cadeirões de mobília indo-portuguesa, tomando um uísque Signature produzido em Goa e muito aceitável, que se entrou no tal mistério.
(Continua)