SANGUE
EM GOA
Xit Coddi (Caril goês)
Antunes Ferreira
Tudo
viria a correr sobre esferas. A viagem em primeira classe com todas as
mordomias, as assistentes um encanto, os chefes de cabine excelentes (embora o
primeiro me parecesse um tanto amaricado… o que é relativamente vulgar)
resumindo, um verdadeiro mimo quer na Emirates quer na Air India. O terminal de
Dabolim para mim foi uma agradável surpresa. Claro que sorridentíssimo o primo
Salviano lá estava de braços abertos para me dar as boas vindas e me explicar
que o aeroporto era militar e já vinha do tempo dos portugueses, mas que também
era usado para os voos comerciais aliás o seu fim principal.
Sem legenda |
Era
pouco mais das onze da noite, alguém se encarregou de recolher a minha bagagem,
o meu recém-primo devia ser pessoa importante e bem relacionada pois as questões
aduaneiras e fronteiriças decorreram rapidamente, ainda que se tivessem formado
longas filas, a que Salviano continuava a chamar bichas. Constituídas sobretudo
por turistas – e algumas delas que turistas! – o primo ia-me elucidando sobre o
boom do turismo no estado que sendo o mais pequeno da India tinha no maior PIB.
Quando lhe falei do motivo que nos levava a utilizar o termo filas ele soltou uma gargalhada: “Sigo toda a RTPI!...” Começava a estar
em casa.
Aliás
foi em casa dele que fiquei alojado. Tenho de abrir aqui uma parentética. Qual
casa qual quê? Um palácio! Ou seja uma casa apalaçada , um casarão tipicamente
colonial com doze quartos – leram bem doze
– um dos quais com casa de banho privativa me fora destinado. “O primo Diogo fará o obséquio de me
desculpar mas nós aqui não costumamos usar banheira, sim duche, no resto é tudo
como na Europa…” No quarto com uma cama de dossel podia dar-se uma pequena
festa e os guarda fatos em boa madeira bem como as mesinhas de cabeceira tudo
torneado. Sentia-me como um vilão em casa do seu sogro longe vá a comparação.
A Senhora Dona Maria de Fátima, minha prima era uma
mulher sorridente um tanto anafada, mãe de três filhos e três filhas, foi-me
logo explicando a organização do lar, ao mesmo tempo que me sugeria uma xícara
de chá. Adorei ouvir xícara, lembrando que no Brasil também a palavra (que
caíra um tanto em Portugal) também era utilizada. E a digna Senhora citou de
imediato: “Malhas que o Império tece” e acentuou do nosso Fernando Pessoa no
poema “O menino da sua Mãe”. Um espanto.
Em síntese: Um dos filhos era médico, outro padre –
tradição nas famílias católicas goesas – o terceiro advogado e o quarto
economista e ambos ajudavam o pater
familiae na administração dos bens e dos negócios que constituíam o
património dos Noronha e Braganza e que realmente era muito grande e
diversificado. Os dois primeiros tinham casa própria e os outros viviam ali com
os pais e respectivas mulheres e crianças. Curiosa situação. Viria naturalmente
a conhecê-las e a saber que ambas eram licenciadas que tinham trabalhado, mas
que depois dos respectivos casamentos e da ida para a casa dos maridos e
sobretudo após os primeiros filhos ficavam em casa. E em famílias ricas como
eram estas tinham aias para cuidar das crianças permanentemente incluindo
dormida em casa dos patrões.
Outra curiosidade era o uso do patrão no meio do concanim, Estes dirigiam-se aos motoristas sempre
na língua oficial da terra ainda que muitos condutores falassem inglês. As
diferenças entre as castas marcavam e de maneira os contactos sociais e o
distanciamento entre as pessoas, Claro que depois vim a descobrir que a
coexistência entre hindus e muçulmanos (que do tempo dos portugueses ficara a
maneira de serem tratados por mouros) já conhecera melhores dias. Porque nessa
altura segundo me diriam pessoas da terceira idade o convívio entre as diversas
comunidades – cristãos, hindus, judeus, mouros, sikhs e outros – era pacífico e
normal. Preferiria acreditar na boa fé dos que assim me informariam.
Igreja de Bom Jesus |
Também acabaria por entender que muito boa gente e
não apenas católicos mas também hindus fazia comparações com o tempo dos portugueses que para eles
era melhor e mesmo muito melhor. De resto, também teria a oportunidade de ouvir
em tom de lamento a um médico analista hindu que “infelizmente dentro de duas ou três gerações dos portugueses o que
restará em Goa serão pedras: igrejas e fortalezas…” Nunca me quis meter
nessas questões, pois podia ser rotulado de neocolonialista, mas o que é facto
incontroverso é que fazia tais comparações não se coibia de o fazer perante
mim. Mas bastava de considerandos sobre apontamentos sobre o tom local e passei
a entrar no motivo que levara o primo Salviana a chamar-me a Goa.
Depois de uma noite quase perfeita – e disse quase
e explico logo o por quê – pelas quatro da matinha fui acordo pelo altaneiro cantar
de um galo, ocorrência que já não me acontecia há uma data de anos. Pensei
levantar-me e ir dar um nó no pescoço do sacana do galináceo, mas logo
constatei que o desgraçado era o ponta de lança de um gangue de capangas aos
quais logo se seguiu um coro ecuménico de gralhas. Não havia solução à vista
nem mastro real para, qual gajeiro de Catrineta, pudesse subir para descobrir
outros animais sem penas e menos ruidosos; por isso virei-me para o lado e
voltei a adormecer, aliás e em abono da verdade sem grande dificuldade.
No dia seguinte começaram realmente as operações
que tinham motivado a minha descoberta do caminho aéreo para a India, mais
precisamente para Goa, embora não me sentisse de todo um Gama hodierno e nem
sequer nascera em Sines. Mas a História tem estórias por vezes tão
destrambelhadas… Depois do pequeno almoço demos uma volta pela cidade cujo
trânsito constatei ser muito pior do que… caótico. Só vira exemplos em vídeos,
mas ao natural era de dar um pacífico cidadão recém chegado num estado de híper
esquizofrenia. Automóveis, autocarros (pré-históricos? ) motorizadas, camiões, carrinhas,
bicicletas, secuteres, riquexós, muitos, muitíssimos, pretos e amarelos e no meio
desta catástrofe trafegueana os cidadãos verdadeiros resistentes, imunes,
tranquilos.
Sem legenda mas com barulho... |
E toda a gente buzina . Palavra de honra que
buzina. De resto nas traseiras das caixas dos camiões, dos autocarros e até das
carrinhas está pintado um conselho/ordem HORN PLEASE! Ou seja APITA POR FAVOR! Mas, se ainda pior pudera haver via-se este
abracadabrante BLOW UP! – que tive forçosamente de entender por EXPLODE PORRA! Só vendo,
ou melhor, só ouvindo! A cidade velha está quase na mesma como a que os
portugueses deixaram e quando depois a percorri a pé descobri imensas coisas
que em tem irei contando, mas agora, voltando a casa sentámo-nos à mesa para
almoçar e foi aí que conheci mais uns quantos membros da família e um
convidado, aliás habitual, um sacerdote, que o Diogo me apresento como sendo o
padre Manuel da Cruz Xavier, um jovem a rondar os 25/30 anos – é difícil
avaliar a idade desta gente mesmo dos velhos – de excelente aspecto, musculado,
garboso, escanhoado, cabelo à moda e camisa aberta de colarinho um tanto
arredondado que me foi dito que se chamava curtá. A camisa, claro. Quase uma
estrela de Bollywood…
O repasto para apresentação ao novo primo, ou seja
eu, foi um xit coddi (o clássico
caril goês com muito arroz branco basmati – longo e perfumado – cozido e temperado
apenas com sal, caril de camarão, na realidade gambas, e uns ratinhos de
acompanhamentos que se chamam tocabocas:
pará – peixe seco e salgado frito, picles picantes de manga e/ou de limão
(miscut) achares (peixe temperado cozido e desfiado) picante, lutas pequenas
fritas, pedaços de carne de porco marinadas e fritas e outros. Enfim, uma mesa linda, colorida e apetitosa.
Para sobremesa bebinca, doce de grão e pudim de ovos à boa maneira portuguesa.
Só faltou a bica.
Foi depois, já refastelados em cadeirões de mobília
indo-portuguesa, tomando um uísque Signature produzido em Goa e muito
aceitável, que se entrou no tal mistério.
(Continua)