2018-09-06






Antunes Ferreira

Chinelando os seus paquidérmicos 92 quilos bem pesados a dona Ernestina mal terminara a transmissão do episódio da Escrava Isaura de que não perdia pitada e quando o cuco do relógio comprado numa venda de garagem cantava as 21 e 30 entrava no quarto da Janette que ocupava há mais de três anos. Na banquinha de cabeceira tinha a sua xícara com a tisana de camomila que tomou pois achava que a ajudava a dormir. A digna viúva do comerciante Manel Ximenes, depois do infausto acontecimento voltara para a casa dela onde aliás também vivia a filha com a família (era uma vivenda grande quase uma mansão de estilo vitoriano) mas sob o olhar desconfiado e crítico q.b. da família Ximenes.
 
Nota 10 nas paralelas
Montreal estava em 1977 a lamber as feridas de muitos milhões de dólares de prejuízos causados pelos Jogos Olímpicos do ano anterior. Mas ainda se recordava a medalha de prata do Carlos Lopes nos dez mil metros. Fora durante a competição que pela primeira vez no mundo uma ginasta conquistara a pontuação máxima: 10. A romena Nadia Comăneci nas paralelas que aliás ganharia mais dois. Estava-se num Novembro frigidíssimo e a Dona Ernestina meteu-se na cama com o saco de água quente aos pés, apesar da casa estar bem aquecida.

Na sala de jantar o senhor Teófilo Ximenes tinha decidido unanimemente só ele reunir o conselho de família para discutir pela quinquagésima segunda vez uma questão de suma importância sobre a qual até à data não fora possível chegar a acordo. Ximenes trabalhava com o Eng.º Joaquim Fraga, Cônsul honorário de Portugal em Montreal no escritório dele de import/export como despachante oficial que tinha 28 empregados a tempo inteiro mais dez em part time dos quais oito eram dactilógrafas. Uma firma importante. A menina Ermelinda, dactilógrafa, estava adstrita a ele, Teófilo só para tratar dos assuntos consulares que o engenheiro Fraga levava muito a peito.  Era no 32.º andar da Torre Norte da Place Desjardins.

O seu nome de baptismo fora-lhe atribuído pelo falecido pai, republicano dos quatro costados, em homenagem ao fugaz Presidente da República Teófilo Braga. Tinha vindo como imigrante para o Canadá chamado pelo tio Manel Ximenes, irmão do seu progenitor, que tinha um restaurante no bairro de Saint Laurent onde vivia a maior parte da comunidade portuguesa. Uma coisa pachola bem recheada onde às sextas e as sábados havia fados e guitarradas com caldo verde e bacalhau na brasa bem como rojões à moda do Minho com arroz dos miúdos do porco, arroz doce, leite creme, pudim caseiro e mousse de chocolate verdadeira, não daquelas de pacote, a que a cozinheira que era a dona Ernestina e esposa do patrão Manel depreciava de plástico.

Fados e guitarradas 


Abreviando. A Amélia Rodrigues, enteada dos patrões, era a caixa do Comida à Portuguesa, e o restante pessoal militava na equipa familiar e adjacente. As folhas dos calendários foram-se arrancando e foi acontecendo o que tinha de acontecer. A Amélia era boa a cantar o fado (e no resto) e chamava o público: Hoje fados com a grande Amélia Rodrigues (Compreendem, esperteza, alusão à grande Amália Rodrigues…) Como lhe competia ao tio Manel deu-lhe o badagaio, a dona Ernestina mandou às urtigas tachos e panelas e transferiu-se para o Sport Clube Das Viúvas Consoláveis, SCVC, à espera de alguém que o fizesse, não obstante debalde, dizia uma das netas, a Beta, nem de balde algum lá ia. Maldosa q.b., a moçoila.

O rebento Jean, em casa o João, e as rebentas, Jaquina, a Janette, a Ernestina, aliás Nanette e a Madalena, ou seja Maddy, eram o fruto do matrimónio do Teófilo com o Amélia. De resto fora este que se metera literalmente debaixo dele nas traseiras, alto lá, do restaurante, quer dizer fora ela quem comera o Teófilo, numa verdadeira  ser comida à portuguesa, depois de um verdadeiro assédio sexual no local de tralho que fizera no dito ao semi-primo, ingénuo e puro que chegara da Europa Para ganhar honestamente a vida sem saber a emboscada que a jovem semi-virgem (???)  lhe iria montar e que afinal quem seria montada era ela, a jovem não a emboscada.

Postos ao corrente das incidências e das concorrências e ainda das influências que delimitavam o plenário familiar relate-se o que e como ele decorreu, o que sendo recorrente para quem lê este estrago de linhas e parágrafos e etcs., para outros chega a ser novidade: o ponto da situação dos aposentos da dona Ernestina. Presentes: o Teófilo, que presidia, a Amélia que secretariava, as três filhas mais os três consortes (o Marc quebecois  da Nanette dizia ser comazar mas era pura provocação, ele lá sabia porquê), o papagaio Vicente e o gato Minou. O cágado Fosquinhas não compareceu, devia andar à caça de moscas, mas como não tinha enviado procuração teve falta injustificada.

No basement


Finalmente concluíram que à viúva, aliás proprietária da vivenda como atrás se disse, seriam apresentadas duas alternativas: ou passava a dormir na cave – aí o Marc perguntou o que era a cave? – era o basement traduziu a esposa o que motivou um comentário soez do gajo no horrível francês quebecois  Enfin ça va pour n'importe quoi… o que motivou um olhar assassino da visada e umas quantas gargalhadas entupidas à saída – ou seguia directa e  imediatamente para a Maison des Retirés du Commerce de Montréal, solução que estavam certos ela não aceitaria. Assim, fariam uma limpeza dos trastes eu lá em baixo havia mandavam reparar o frigorífico antigo e punham lá o anterior televisor bem como dispunham os móveis dela que ali estavam arrumados e pronto. Meu dito, meu feito. E a dona Ernestina desceu à cova, como ela disse, perdão disse a família ao basement.

Entretanto no Consulado honorário as coisas iam de vento em popa. Passaportes, Bilhetes de Identidade, Certidões diversas tudo nos conformes, tudo nas aplliances devidas, tudo com selo branco, enfim, um céu na terra, até que um dia a menina Ermelinda, rápida de dedos, parca de massa cinzenta comentou para o seu chefe: “Ó Senhor Teófilo aqui em Montreal há muitas primas na Segurança Social. Mete-me muita impressão haver tantas primas. É uma grande família…”

Código da Segurança Social


Ximenes que estava a estudar a tradução de um documento notarial para efeitos de naturalização nem a estava a ouvir. Mas a menina Ermelinda insistiu na estória das primas da segurança social.  Então ele franziu o sobreolho: “Primas? Quais primas? Ó mulher, o que é que você está para aí a dizer?” E ela muito senhora do seu nariz: “Pois pode crer, sempre que vem cá muitas portuguesas  meter as appliances  para a Sécurité Sociale dizem que têm primes a receber…”  Fez-se luz na cachimónia tiófiloniana: Não eram primas, eram prémios, eram subsídios! E esteve quase para dizer à dactilógrafa que era uma besta, mas chegou o engenheiro e…