VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR
DE SÍNDROME DE DOWN – FIM
Prazo de validade
Antunes Ferreira
Lá em baixo no rio passava um navio de cruzeiros imponente nas
suas muitas toneladas de arqueação a caminho do Atlântico enquanto o Armando e
eu estávamos sentados junto ao Adamastor no Miradouro de Santa Catarina. Era um
tarde encalorada nem sequer corria uma brisa por leve que fosse, um Agosto
inclemente, pensava para comigo que seria muito bom ter um ar condicionado
individual. E quem sabe, se no futuro?
Tinham ficado para trás funerais, cemitérios e quejandos em
tamanha quantidade que não havia basta!
que bastasse. Talvez a roda da desgraça que desandara para nós pois saíra do
seu eixo natural invertesse agora o delírio que dela se apossara. Esperança… A
esperança é sempre a última a morrer, dizem por aí, e já era tempo de ela
começar a rodar normalmente de forma a seguirmos em frente sem grandes
sobressaltos.
Haviam partido num trote infame a Maria Rita, o Gilbertinho, a
Elena, a velha Miquelina, o Olegário, a nossa mãe Fátima e até o coronel
Marques Fialho para não enumerar os avós diversos já falecidos anteriormente. A
empresa conseguira ultrapassar o enorme obstáculo do misterioso ataque
informático e singrava normalmente, aliás crescia sustentadamente como diziam
os economistas incluindo eu. Os tios Miguel e Jaime, o David e eu próprio continuávamos ao leme e as coisas corriam
sobre esferas-chips. Todos os gráficos assim o indicavam e a confiança no mercado era a prova concludente de que seguíamos no caminho correcto. Ao menos valia-nos isso como consolo perante tantas contrariedades.
Um céu pintado de azul limpíssimo sem uma única nuvem branca com
um sol esplendoroso colado ao centro parecendo revoltear-se e dardejando ultras
violetas (lembrando-me o que alegadamente acontecera em Fátima após as ditas
aparições…) tornara-se opressivo e obrigava a camisa a colar-se ao corpo. Foi
então que disse ao Armando: “Tenho andado
com a Mariela já há uns meses…”
O meu irmão como que acordou de um sono profundo: “A
Mariela? A dos computadores? A timorense?” E eu: “Ela mesma, sem tirar nem pôr, uma mulher porreira, profissional
excelente, simpática, bem disposta e como quase todas as timorenses e católica
praticante. Aliás, já me contou, tinha oito anos quando se deu o criminoso
massacre no cemitério de Santa Cruz em Díli, no qual entre os quase
quatrocentos mortos vítimas dos disparos das tropas indianas se contavam dos
irmãos e um primo dela! Se tudo der para o certo e estamos a ver que vai dar
mais dia menos dia pensamos no casório…”
Armando olhou-me um tanto entre o admirado e o espantado: “Mas é mesmo assim? Pois muito me contas. E
antes que acrescentes mais alguma coisa quero dizer-te que da tua vida sabes
tu, mas que no que me toca acho que deves seguir o que o teu coração manda e se
é para o teu bem e, obviamente, também para ela, que sejam muito felizes e que
tenham um futuro muito risonho. Ambos bem o merecem pois, depois do que me
acabas de dizer também já teve o seu quinhão de sofrimento. Por isso meu
querido irmão os meus parabéns e venha de lá um abração!”
O amplexo foi longo e apertado. Tínhamos ido a pé partindo do largo
do Camões subindo a Rua de Santa Catarina cavaqueando de salto em salto e de
tema em tema e agora tínhamo-nos fixado na questão do meu arranjo com a
Mariela. Por isso naturalmente saltou à estacada a luta da Fretilin pela
independência de Timor Lorosae, e pelos seus principais intervenientes e
lutadores desde o Xanana Gusmão até ao Ramos Horta passando pelo Mari Alkatiri,
pelo Carrascalão, pelo Matan Ruak, pelos Guterres e não esquecendo o bispo
Ximenes Belo.
Então o Armando tinha lembrado um célebre episódio ocorrido na II
Guerra Mundial aquando da invasão japonesa de Timor então dividida em duas
colónias uma parte portuguesa e outra holandesa. A ilha era defendida por
forças aliadas, inglesas, australianas e dos Países Baixos, apoiadas por
voluntários portugueses (timorenses) ainda que, frisara o meu irmão, o nosso
país fora neutral e rindo-se “por mérito
do Salazar que o tinha rogado à Virgem de Fátima…”
“Sabias,
Frederico Foi aí que ficou nas páginas da nossa História um herói chamado
Aleixo Corte-Real que era um régulo e comandava os timorenses, mais conhecido
por Dom Aleixo, o qual não se rendeu contrariamente ao qua aconteceu aos
militares aliados e foi fuzilado envolvendo-se na bandeira de Portugal!” Disse-lhe
que não sabia, mas que tinha a noção perfeita de que um dia em que um homem não
aprendia alguma coisa não era dia muito menos era homem.
Já o sol se punha bronzeando o astro quando regressámos a casa.
Junto do portão do prédio parámos e o meu irmão voltou-se para mim: “Meu querido Frederico quando olho para ti
recordo-me como se fosse hoje do dia em que chegaste com a nossa mãe Fátima e o
pai Gilberto nos avisou que tu eras diferente mas também eras igual a nós. Na
altura dou-te a minha palavra de honra que não percebi a charada. Fui
percebendo-a aos poucos, enquanto os anos iam passando. E agora tenho a certeza
de ter chegado à conclusão: tu não és igual – és melhor.”
Fiquei calado e o mano respeitou o meu silêncio. Um pensamento, um
só, tomou conta do meu cérebro e levei-o até ao elevador. Nós os “mongolóides”,
como muitos desgraçadamente nos chamam, temos um prazo de validade curto.
Estava absolutamente certo de que já tinha ultrapassado o meu. E depois?
(Fim)