2019-01-06


  

VIVER COM UM IRMÃO PORTADOR DE SÍNDROME DE DOWN – FIM





Prazo de validade
Antunes Ferreira

Lá em baixo no rio passava um navio de cruzeiros imponente nas suas muitas toneladas de arqueação a caminho do Atlântico enquanto o Armando e eu estávamos sentados junto ao Adamastor no Miradouro de Santa Catarina. Era um tarde encalorada nem sequer corria uma brisa por leve que fosse, um Agosto inclemente, pensava para comigo que seria muito bom ter um ar condicionado individual. E quem sabe, se no futuro?

Tinham ficado para trás funerais, cemitérios e quejandos em tamanha quantidade que não havia basta! que bastasse. Talvez a roda da desgraça que desandara para nós pois saíra do seu eixo natural invertesse agora o delírio que dela se apossara. Esperança… A esperança é sempre a última a morrer, dizem por aí, e já era tempo de ela começar a rodar normalmente de forma a seguirmos em frente sem grandes sobressaltos.
Os gráficos não mentiam

Haviam partido num trote infame a Maria Rita, o Gilbertinho, a Elena, a velha Miquelina, o Olegário, a nossa mãe Fátima e até o coronel Marques Fialho para não enumerar os avós diversos já falecidos anteriormente. A empresa conseguira ultrapassar o enorme obstáculo do misterioso ataque informático e singrava normalmente, aliás crescia sustentadamente como diziam os economistas incluindo eu. Os tios Miguel e Jaime, o David e eu próprio  continuávamos ao leme e as coisas corriam sobre esferas-chips. Todos os gráficos assim o indicavam e a confiança no mercado era a prova concludente de que seguíamos no caminho correcto. Ao menos valia-nos isso como consolo perante tantas contrariedades.

Um céu pintado de azul limpíssimo sem uma única nuvem branca com um sol esplendoroso colado ao centro parecendo revoltear-se e dardejando ultras violetas (lembrando-me o que alegadamente acontecera em Fátima após as ditas aparições…) tornara-se opressivo e obrigava a camisa a colar-se ao corpo. Foi então que disse ao Armando: “Tenho andado com a Mariela já há uns meses…”

O horrendo massacre do cemitério de Santa Cruz

O meu irmão como que acordou de um sono profundo:  “A Mariela? A dos computadores? A timorense?” E eu: “Ela mesma, sem tirar nem pôr, uma mulher porreira, profissional excelente, simpática, bem disposta e como quase todas as timorenses e católica praticante. Aliás, já me contou, tinha oito anos quando se deu o criminoso massacre no cemitério de Santa Cruz em Díli, no qual entre os quase quatrocentos mortos vítimas dos disparos das tropas indianas se contavam dos irmãos e um primo dela! Se tudo der para o certo e estamos a ver que vai dar mais dia menos dia pensamos no casório…”

Armando olhou-me um tanto entre o admirado e o espantado: “Mas é mesmo assim? Pois muito me contas. E antes que acrescentes mais alguma coisa quero dizer-te que da tua vida sabes tu, mas que no que me toca acho que deves seguir o que o teu coração manda e se é para o teu bem e, obviamente, também para ela, que sejam muito felizes e que tenham um futuro muito risonho. Ambos bem o merecem pois, depois do que me acabas de dizer também já teve o seu quinhão de sofrimento. Por isso meu querido irmão os meus parabéns e venha de lá um abração!”

O amplexo foi longo e apertado. Tínhamos ido a pé partindo do largo do Camões subindo a Rua de Santa Catarina cavaqueando de salto em salto e de tema em tema e agora tínhamo-nos fixado na questão do meu arranjo com a Mariela. Por isso naturalmente saltou à estacada a luta da Fretilin pela independência de Timor Lorosae, e pelos seus principais intervenientes e lutadores desde o Xanana Gusmão até ao Ramos Horta passando pelo Mari Alkatiri, pelo Carrascalão, pelo Matan Ruak, pelos Guterres e não esquecendo o bispo Ximenes Belo.

Então o Armando tinha lembrado um célebre episódio ocorrido na II Guerra Mundial aquando da invasão japonesa de Timor então dividida em duas colónias uma parte portuguesa e outra holandesa. A ilha era defendida por forças aliadas, inglesas, australianas e dos Países Baixos, apoiadas por voluntários portugueses (timorenses) ainda que, frisara o meu irmão, o nosso país fora neutral e rindo-se “por mérito do Salazar que o tinha rogado à Virgem de Fátima…”

O régulo Dom Aleixo

“Sabias, Frederico Foi aí que ficou nas páginas da nossa História um herói chamado Aleixo Corte-Real que era um régulo e comandava os timorenses, mais conhecido por Dom Aleixo, o qual não se rendeu contrariamente ao qua aconteceu aos militares aliados e foi fuzilado envolvendo-se na bandeira de Portugal!” Disse-lhe que não sabia, mas que tinha a noção perfeita de que um dia em que um homem não aprendia alguma coisa não era dia muito menos era homem.

Já o sol se punha bronzeando o astro quando regressámos a casa. Junto do portão do prédio parámos e o meu irmão voltou-se para mim: “Meu querido Frederico quando olho para ti recordo-me como se fosse hoje do dia em que chegaste com a nossa mãe Fátima e o pai Gilberto nos avisou que tu eras diferente mas também eras igual a nós. Na altura dou-te a minha palavra de honra que não percebi a charada. Fui percebendo-a aos poucos, enquanto os anos iam passando. E agora tenho a certeza de ter chegado à conclusão: tu não és igual – és melhor.”

Fiquei calado e o mano respeitou o meu silêncio. Um pensamento, um só, tomou conta do meu cérebro e levei-o até ao elevador. Nós os “mongolóides”, como muitos desgraçadamente nos chamam, temos um prazo de validade curto. Estava absolutamente certo de que já tinha ultrapassado o meu. E depois?
(Fim)