2023-04-26

 



É mesmo muito velho

 

*Deixai vir a mim as crianças

 

Antunes Ferreira

Cinco. Quatro miúdos e uma menina: os meus netos. Por ordem de idades e de progenitores – o João e o Rodrigo (do meu primogénito Miguel), o Xavier, o Vicente e a Madalena (do segundo, o Paulo); o caçula Luís Carlos ainda que bem casado, tal como os irmãos, não tinha filhos. Opção dele e da esposa Estela.

 


Aproximava-se o Natal, estávamos nos princípios de Dezembro de 2006, eu já completara os 61 e com a  “escadinha” da malta miúda ia dos nove aos quatro anos; acabara de ver (diga-se de passagem fartíssimo mas netos são netos) o vídeo do Rei Leão perante o qual  opiniões se dividiam mas pendiam um pouquinho para o Hakuna Matata, quando nos sentámos na sal de estar para democraticamente trocarmos uma outra vez ideias sobre o filme do Walt Disney.


 

Os pais das “criaturas” estavam nos respectivos empregos e os avós tentavam domesticar o bando – o que aliás não era tarefa difícil pois era pessoal na generalidade e na especialidade (para usar linguagem parlamentar)  bastante bem comportado. Era o meu dia de folga no DN e por isso tinha todo-o-tempo-do-Mundo para me dedicar à prole; e além disso adorava fazê-lo.

 

Chegara a hora do lanche e todos fomos para a mesa. Como d costume a Raquel tinha preparado um “banquete” próprio para infantes, No meio de sanduiches, leite com chocolate, pãezinhos, bolachas, limonadas, etc., tocaram à porta. “É do jornal… Mas está lá o Fernando Pires…Só se foi uma bronca no Internacional (era o meu violino de Ingres)…

 

Não era. O padre Alberto Neto em pessoa, coadjutor do prior Felicidade Alves, ambos de costas viradas para o “Estado Novo”. Falara para o jornal e sabendo que eu estava em casa vinha falar connosco – a Raquel também gostava e muito de politica internacional – sobre um incidente que parecia grave junto ao   Checkpoint Charlie,  um posto militar entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental durante a Guerra Fria, onde, de resto, eu e a Raquel já estivéramos aquando duma visita oficial à então RDA.

 

Mas, perante a festarola para os meus netos ~e porque o “barulho” Intra alemão parecia não ter dado nada – Neto ficaria um pouco mais para também participar na confraternização espontânea porque sem motivo aparente; festa é festa. A dada altura não se conteve e perguntou-lhes se sabiam o que pensava Jesus sobre as crianças .O João tinha uma vaga ideia; e o sacerdote citou de memória:



“(….)levaram crianças para que Jesus tocasse nelas. Mas os discípulos repreenderam-nos. Vendo isso, Jesus entristeceu-se e disse: “Deixem as crianças virem a mim. Não as proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu vos garanto: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele. Então, Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas”. Meus amigos isto consta do Evangelho de São Mateus. Momentos depois o padre foi-se embora.

 

Terminado o lanche fomos sentar-nos n sala e antes que ocorresse a reprise do malfadado vídeo, lembrei-me de lhes perguntar, para desanuviar o ambiente um tanto carregado pela ausência leonina: “Por certo vocês não sabem mas vou contar-lhes umas coisas antigas que eu mesmo vivi. Por exemplo ainda andei m eléctricos abertos aos lados.” “Como assim, avô?” “Não tinham paredes laterais e sim banco corridos; entrava-se, sentava-se e vinha o cobrador vender os respectivos bilhetes.”

 

“Contaram-me uma anedota que vos digo agora: uma senhora bem vestida com chapéu de plumas ao entrar tropeçou e caiu no col dum magala (era assim que então se chamava aos soldados); protestou energicamente e o magala retorquiu: «Por dois tostões (era o preço do bilhete) se calhar queria cair no colo dum general…»



 

Gargalhadas em catadupa, mas prossegui: “Igualmente usei aqueles telefones de parede em que era preciso dar à manivela que tinham ouvir por um auscultador preso por um fio ao aparelho e pedir à menina telefonista na central para ligar para outra cidade ou para o estrangeiro. Uma vez esperei duas horas para conseguir falar com um amigo em… Sintra!

 

Olhos esbugalhados, bocas abertas, interrogações aos quilates. “Os automóveis não tinham cintos de segurança. Andei no Morris Minor do meu Pai, no Austin Super, no Triumph Spitfire do irmão do meu tio Jacinto e nenhum tinha cintos de segurança!”

 

E logo do fundo do sofá grande onde estavam os cinco sentados, o Vicente, cinco anos: “O avô é mesmo muito velho!” Engoli em seco. Tinham-se acabado as recordações.