O cofre e as suspeitas
*São Pedro, o Senhor nem vai acreditar
Antunes Ferreira
O pior de tudo é
quando a suspeita se instala com armas e bagagens e não há ordem de despejo que
a faça pôr-se a milhas. Por mais que alguém se auto determine a envergar a
couraça da indiferença a suspeição é uma
lapa agarrada à rocha e não há vagas por mais alterosa que a arranquem do local
de fixação..
Se consultar um
qualquer dicionário encontrará um rol de sinónimos que, pelo sim, pelo não, qui
se enumeram: Desconfiança pouco fundamentada:
desconfiança, dúvida, cisma, receio, apreensão, suspeição, suposição, hipótese,
conjectura, presunção, previsão, pressuposto, longes. Pressentimento leve: pressentimento, palpite, intuição, sensação,
sentimento, feeling, bacorejo, baque.
Já quanto ao
verbo que a suporta, ou seja, suspeitar, vai encontrar supor, presumir,
presumir, recear, desconfiar, pressupor.
entre outros, como, duvidar, temer, pressentir, esperar e até aventar, mas este
mais no Alentejo.
A estória de hoje
decorre entre duas frentes; o Ministério da Saúde e a Rua da Conceição, 23 4.º
Esq.º, morada do senhor Mateus Francisco Silva Boaventura, apartamento que
adquirira antes de casar com a Judite Maria Fernandes Figueiredo agora
Boaventura em regime de comunhão de bens, decisão que reputara de sensata e
nada tinha a objectar.
O único senão
era a falta de, pelo menos, um filho – só um. Mateus, único, gostaria de ter
mais, mas a Judite não podia arriscar a pele, pois o ginecologista sentenciara
que ela não era apta para engravidar. Consultaram outros obstetras, fizeram
análises, os espermatozoides dele eram da melhor qualidade, tinham ido a
Londres consultar um guru sobre a proveta – e nothing.
Além disso contava
a questão da idade. Mateus Francisco tinha 47, era técnico administrativo não
passava da cepa torta, tinha (aliás tinham) umas contas bancárias saudavelmente
recheadas, dois automóveis, um Hyundai para ele, para ela um Kia Pikante, uma
quinta com casa de campo em Armação de Pêra, tudo herdado da avó Ermelinda que
criara o miúdo pois os pais tinham morrido num desastre de aviação.
Por seu turno,
Judite rondava os trinta, ainda os ia fazer, fora secretária num atelier de
arquitectura donde saíra para o casamento, depois de ter sido apresentada na
festa do aniversário do chefe do Boaventura, primo em segundo grau mas chegado
do pai dela. Para os que acreditassem no Cupido fora uma bela ocasião onde
experimentaram as flechas do catraio alado. Amor à primeira vista? Quiçá. Mas
com ele também a suspeita.
Realmente ela era um pedaço
de mulher feito pecado que dava nas vistas, melhor dizendo, nos olhos aguados
dos machos mais ou menos latinos. E ela bem sabia disso. Provocante sem
provocar, a sua natureza não mentia, os seus encantos não se ocultavam, as
pernas longas, os seios empinados, os quadris embolados, os lábios cor de romã
e os olhos, ah, os olhos amendoados, uma bisavó macaense, mais o cabelo negro
de azeviche – um tsunami animado de carne morena.
Aproximava-se o fim do ano, o Natal já enchia as ruas da cidade, os centros comerciais regurgitavam de massas humanas, embrulhos de cores variegadas, laçarotes, livros, perfumes e brinquedos, bolos, pasteis e iguarias diversas, a confusão habitual da época, nas grandes superfícies comerciais reinavam Pais Natais
de opereta, que a troco de uns miseráveis euros deixavam-se fotografar com criancinhas ao colo, “chega aqui Zéquinha, vê se não perdes o lugar, há tanta malta!”
Na secção o chefe
administrativo, o dr. Vicente de Andrade, despachava os últimos processos para
os enviar à Tesouraria a fim de ser pagos. Eram as contas apresentadas pelos
juízes à ADSE que tinham de ser conferidas e certificadas e nesse particular os
magistrados por vezes julgavam-se acima da lei que interpretavam e aplicavam.
Dizia aos amigos
o dr. Andrade que nada tinha contra a magistratura mas que “um filho ingrato é
mais venenoso do que os dentes de uma cobra,,,” Ele lá sabia o porquê da
sentença; tirara o urso de Direito em Coimbra e muitos dos seus colegas tinham
seguido a carreira da magistratura. Enfim, cada um sabe as linhas com que se
cose.
Boaventura fora
plantando no mais recôndito do seu ser a semente da insidia; via a cada momento
os olhares concupiscentes masculinos assestados sobre a sua mais-que-tudo e,
pior ainda, denotava que ela nada fazia para ignora esses dardejares, pelo contrário,
parecia incentivá-los com leves arquear de sobrancelhas, meio-sorrisos que eram
promessas inconfessáveis, um tormento.
Ao fim e ao cabo,
nunca encontrava rasto pelo apartamento de outra presença máscula. Judite bem
se amofinava; “Homem, para o que te havia de dar! Sabes perfeitamente que
sou uma mulher honesta e de um só macho – que és tu! Onde vem essa ciumeira?
Como nasceu essa suspeita?” E desfazia-se em lágrimas que Mateus lhe
limpava com beijos e terminava tudo no leito matrimonial.
Até que no dia 31
de Dezembro, data funesta, de mau agouro, ele desembestou no lar pelas onze
horas da manhã e foi encontrar a esposa ainda na cama, quase nua, apenas o
negligé negro transparente (prenda de anos dele) que não lhe escondia nada,
antes lhe realçava os mamilos arrogantemente erectos e o púbis encaracolado.
“Onde está eleeee????!!!!”
Judite, puxando o lençol, o cobertor e o edredom: “Não há ele nenhum! Tu
estás louco! Já te disse, aqui em casa, homens só os da EDP para aferir o
contador da electricidade ou os da EPAL por mor da água e recentemente dois
tipos da NOS por causa dos problemas com a televisão, os telefones e o
computador…”
Mateus Francisco Silva
Boaventura, porém, não estava convencido, longe disso, correu toda a casa,
espreitou todos os cantos, deitou-se no chão para inspeccionar debaixo das
camas, abriu todos os armários, incluindo os das duas casas de banho e da
cozinha e finalmente esbaforido, alagado em suor entrou no seu escritório e
abriu a janela que dava para rua a fim de apanhar um pouco de ar pois de
momento não chovia, uma aberta na verdadeira tromba de água que não essava de cair.
Lá em baixo, saía do
porão do prédio um jovem cavalheiro a abrir o chapéu-de-chuva. “É ele! È o
filho da puta! É o cabrão que anda a pôr-me os cornos! Já te fodo!” Duplicaram-lhe
as forças; agarrou no cofre que ali tinha e atirou-o sobre o desgraçado – morte
imediata. Consciente do que acabava de fazer sentou-se à secretária, abriu a
gaveta onde tinha um revolver, encostou o cano do meso à têmpora direita e
disparou.
A cena seguinte passa-se às
portas do Céu com São Pedro como protagonista. O santo está metido em grande
sarilho pois não para de chover e as inundações são muitas – é um novo dilúvio.
Que fazer? Entretanto a fila de candidatos a um lugar nas paragens celestiais
ou no fogo eterno do Inferno é maior do que a dum casting para um programa do
Goucha. O Guardião das Chaves Celestiais pergunta a um sujeito quem é ele e
como é que ele morreu. O homem muito espantado retorque: “Chamo-me Rogério
Manuel Batista (segundo o novo Acordo Ortográfico) e nem sei como morri. Vinha
a sair de casa para uma entrevista para um novo emprego e depois dei por mim
num caixão no meio dum velório.
São Pedro benevolente
entrega-lhe uma etiqueta e diz-lhe que o local dele no Céu é na
678.904.876.543.141,7.ª nuvem à direita das instalações da Administração
- Santíssima Trindade e volta-se para o
seguinte. Este, cabisbaixo: “Resumo. Fruto da minha suspeita de que a Judite
(que era a minha mulh…” O Chaveiro celestial interrompeu: “Nós aqui sabemos; continue.” Boaventura:
“Pois fui eu quem atirou o cofre sore aquele infeliz que me antecedeu…” Pedro
carregou o semblante: “Ali à esquerda é o elevador que o vai baixar ao
Inferno!”
Mais um candidato.
“Então e você? Conte lá o que lhe aconteceu?” O tipo fez um ar de
surpreendido: “São Pedro, o Senhor nem vai acreditar; eu estava escondido dentro
dum cofre…”
Morreu um
ano
e morreu um
papa
Já estava
eu reformado quando no dia 11 de Maio de 2010 Bento XVI aterrou no aeroporto de
Lisboa (futuro Humberto Delgado) para visitar a capital, Fátima e o Porto, e a
Igreja Católica, Apostólica e Românica vivia uma das sus maiores crises – a do
pedorfilato praticado por sacerdotes. Rezam as crónicas da época que o então
chamado “Papa Panzer” dissera na tradicional conferência de imprensa realizada
a bordo do avião que: “A Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de
reaprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender por um lado o
perdão, mas também a necessidade de justiça. O perdão não substitui a justiça.”
Confesso
que até então não simpatizava com o Cardeal Joseph Ratzinger defensor duma
ortodoxia dominante no seio da Comunidade Católica. E de certo modo aceitava as
criticas que lhe eram feitas sobre o seu passado durante o período nazi, onde
pertencera à Juventude Hitleriana.
Porém, o
Vaticano, após a sua eleição para Papa tudo fez par esclarecer o que rotulou de
um “mal-entendido”. Finalmente Ratzinger até fora um opositor (enquanto
criança) do nacional-socialismo. Tudo pela verdade – nada contra a verdade.
Vaticano dixit.
Ao ver agora
Francisco da sua janela anunciar ao povo reunido na praça de São Pedro as
solenes exéquias do papa emérito fico-me a pensar quem será o próximo a fazer
uma tal proclamação. Porque o actual 266.º chefe da Igreja Católica já vai nos
86 anos e ninguém é eterno.