2022-12-31

 

O cofre e as suspeitas

 

*São Pedro, o Senhor nem vai acreditar

 

Antunes Ferreira

O pior de tudo é quando a suspeita se instala com armas e bagagens e não há ordem de despejo que a faça pôr-se a milhas. Por mais que alguém se auto determine a envergar a couraça da indiferença a suspeição  é uma lapa agarrada à rocha e não há vagas por mais alterosa que a arranquem do local de fixação..

 

Se consultar um qualquer dicionário encontrará um rol de sinónimos que, pelo sim, pelo não, qui se enumeram:  Desconfiança pouco fundamentada: desconfiança, dúvida, cisma, receio, apreensão, suspeição, suposição, hipótese, conjectura, presunção, previsão, pressuposto, longes. Pressentimento leve:  pressentimento, palpite, intuição, sensação, sentimento, feeling, bacorejo, baque.

 

Já quanto ao verbo que a suporta, ou seja, suspeitar, vai encontrar supor, presumir, presumir, recear, desconfiar,  pressupor. entre outros, como, duvidar, temer, pressentir, esperar e até aventar, mas este mais no Alentejo.

 

A estória de hoje decorre entre duas frentes; o Ministério da Saúde e a Rua da Conceição, 23 4.º Esq.º, morada do senhor Mateus Francisco Silva Boaventura, apartamento que adquirira antes de casar com a Judite Maria Fernandes Figueiredo agora Boaventura em regime de comunhão de bens, decisão que reputara de sensata e nada tinha a objectar.

 

O único senão era a falta de, pelo menos, um filho – só um. Mateus, único, gostaria de ter mais, mas a Judite não podia arriscar a pele, pois o ginecologista sentenciara que ela não era apta para engravidar. Consultaram outros obstetras, fizeram análises, os espermatozoides dele eram da melhor qualidade, tinham ido a Londres consultar um guru sobre a proveta – e nothing.

 

Além disso contava a questão da idade. Mateus Francisco tinha 47, era técnico administrativo não passava da cepa torta, tinha (aliás tinham) umas contas bancárias saudavelmente recheadas, dois automóveis, um Hyundai para ele, para ela um Kia Pikante, uma quinta com casa de campo em Armação de Pêra, tudo herdado da avó Ermelinda que criara o miúdo pois os pais tinham morrido num desastre de aviação.  

 


Por seu turno, Judite rondava os trinta, ainda os ia fazer, fora secretária num atelier de arquitectura donde saíra para o casamento, depois de ter sido apresentada na festa do aniversário do chefe do Boaventura, primo em segundo grau mas chegado do pai dela. Para os que acreditassem no Cupido fora uma bela ocasião onde experimentaram as flechas do catraio alado. Amor à primeira vista? Quiçá. Mas com ele também a suspeita.

 

Realmente ela era um pedaço de mulher feito pecado que dava nas vistas, melhor dizendo, nos olhos aguados dos machos mais ou menos latinos. E ela bem sabia disso. Provocante sem provocar, a sua natureza não mentia, os seus encantos não se ocultavam, as pernas longas, os seios empinados, os quadris embolados, os lábios cor de romã e os olhos, ah, os olhos amendoados, uma bisavó macaense, mais o cabelo negro de azeviche – um tsunami animado de carne morena.

 

Aproximava-se o fim do ano, o Natal já enchia as ruas da cidade, os centros comerciais regurgitavam de massas humanas, embrulhos de cores variegadas, laçarotes, livros, perfumes e brinquedos, bolos, pasteis e iguarias diversas, a confusão habitual da época, nas grandes superfícies comerciais reinavam Pais Natais


de opereta, que a troco de uns miseráveis euros deixavam-se fotografar com criancinhas ao colo, “chega aqui Zéquinha, vê se não perdes o lugar, há tanta malta!”

 

Na secção o chefe administrativo, o dr. Vicente de Andrade, despachava os últimos processos para os enviar à Tesouraria a fim de ser pagos. Eram as contas apresentadas pelos juízes à ADSE que tinham de ser conferidas e certificadas e nesse particular os magistrados por vezes julgavam-se acima da lei que interpretavam e aplicavam.

 

Dizia aos amigos o dr. Andrade que nada tinha contra a magistratura mas que “um filho ingrato é mais venenoso do que os dentes de uma cobra,,,” Ele lá sabia o porquê da sentença; tirara o urso de Direito em Coimbra e muitos dos seus colegas tinham seguido a carreira da magistratura. Enfim, cada um sabe as linhas com que se cose.

 

Boaventura fora plantando no mais recôndito do seu ser a semente da insidia; via a cada momento os olhares concupiscentes masculinos assestados sobre a sua mais-que-tudo e, pior ainda, denotava que ela nada fazia para ignora esses dardejares, pelo contrário, parecia incentivá-los com leves arquear de sobrancelhas, meio-sorrisos que eram promessas inconfessáveis, um tormento.

 

Ao fim e ao cabo, nunca encontrava rasto pelo apartamento de outra presença máscula. Judite bem se amofinava; “Homem, para o que te havia de dar! Sabes perfeitamente que sou uma mulher honesta e de um só macho – que és tu! Onde vem essa ciumeira? Como nasceu essa suspeita?” E desfazia-se em lágrimas que Mateus lhe limpava com beijos e terminava tudo no leito matrimonial.

 

Até que no dia 31 de Dezembro, data funesta, de mau agouro, ele desembestou no lar pelas onze horas da manhã e foi encontrar a esposa ainda na cama, quase nua, apenas o negligé negro transparente (prenda de anos dele) que não lhe escondia nada, antes lhe realçava os mamilos arrogantemente erectos e o púbis encaracolado.

 


“Onde está eleeee????!!!!” Judite, puxando o lençol, o cobertor e o edredom: “Não há ele nenhum! Tu estás louco! Já te disse, aqui em casa, homens só os da EDP para aferir o contador da electricidade ou os da EPAL por mor da água e recentemente dois tipos da NOS por causa dos problemas com a televisão, os telefones e o computador…”

 

Mateus Francisco Silva Boaventura, porém, não estava convencido, longe disso, correu toda a casa, espreitou todos os cantos, deitou-se no chão para inspeccionar debaixo das camas, abriu todos os armários, incluindo os das duas casas de banho e da cozinha e finalmente esbaforido, alagado em suor entrou no seu escritório e abriu a janela que dava para rua a fim de apanhar um pouco de ar pois de momento não chovia, uma aberta na verdadeira tromba de água que não essava de cair.




 

Lá em baixo, saía do porão do prédio um jovem cavalheiro a abrir o chapéu-de-chuva. “É ele! È o filho da puta! É o cabrão que anda a pôr-me os cornos! Já te fodo!” Duplicaram-lhe as forças; agarrou no cofre que ali tinha e atirou-o sobre o desgraçado – morte imediata. Consciente do que acabava de fazer sentou-se à secretária, abriu a gaveta onde tinha um revolver, encostou o cano do meso à têmpora direita e disparou.

 

A cena seguinte passa-se às portas do Céu com São Pedro como protagonista. O santo está metido em grande sarilho pois não para de chover e as inundações são muitas – é um novo dilúvio. Que fazer? Entretanto a fila de candidatos a um lugar nas paragens celestiais ou no fogo eterno do Inferno é maior do que a dum casting para um programa do Goucha. O Guardião das Chaves Celestiais pergunta a um sujeito quem é ele e como é que ele morreu. O homem muito espantado retorque: “Chamo-me Rogério Manuel Batista (segundo o novo Acordo Ortográfico) e nem sei como morri. Vinha a sair de casa para uma entrevista para um novo emprego e depois dei por mim num caixão no meio dum velório.

 


São Pedro benevolente entrega-lhe uma etiqueta e diz-lhe que o local dele no Céu é na 678.904.876.543.141,7.ª nuvem à direita das instalações da Administração -  Santíssima Trindade e volta-se para o seguinte. Este, cabisbaixo: “Resumo. Fruto da minha suspeita de que a Judite (que era a minha mulh…” O Chaveiro celestial  interrompeu: “Nós aqui sabemos; continue.” Boaventura: “Pois fui eu quem atirou o cofre sore aquele infeliz que me antecedeu…” Pedro carregou o semblante: “Ali à esquerda é o elevador que o vai baixar ao Inferno!”

 

Mais um candidato. “Então e você? Conte lá o que lhe aconteceu?” O tipo fez um ar de surpreendido: “São Pedro, o Senhor nem vai acreditar; eu estava escondido dentro dum cofre…”




 

Morreu um ano

e morreu um papa

 

Já estava eu reformado quando no dia 11 de Maio de 2010 Bento XVI aterrou no aeroporto de Lisboa (futuro Humberto Delgado) para visitar a capital, Fátima e o Porto, e a Igreja Católica, Apostólica e Românica vivia uma das sus maiores crises – a do pedorfilato praticado por sacerdotes. Rezam as crónicas da época que o então chamado “Papa Panzer” dissera na tradicional conferência de imprensa realizada a bordo do avião que: “A Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de reaprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender por um lado o perdão, mas também a necessidade de justiça. O perdão não substitui a justiça.”

 

Confesso que até então não simpatizava com o Cardeal Joseph Ratzinger defensor duma ortodoxia dominante no seio da Comunidade Católica. E de certo modo aceitava as criticas que lhe eram feitas sobre o seu passado durante o período nazi, onde pertencera à Juventude Hitleriana.

 

Porém, o Vaticano, após a sua eleição para Papa tudo fez par esclarecer o que rotulou de um “mal-entendido”. Finalmente Ratzinger até fora um opositor (enquanto criança) do nacional-socialismo. Tudo pela verdade – nada contra a verdade. Vaticano dixit.

 

Ao ver agora Francisco da sua janela anunciar ao povo reunido na praça de São Pedro as solenes exéquias do papa emérito fico-me a pensar quem será o próximo a fazer uma tal proclamação. Porque o actual 266.º chefe da Igreja Católica já vai nos 86 anos e ninguém é eterno.