A neve no Quebeque
*Um Parlamento com poucos
temperos
Antunes Ferreira
Nunca tinha visto tanta neve mas ela ali estava por toda a parte
ominosa, um manto branco sujo cobrindo ruas, passeios, edifícios de
apartamentos, vivendas e até cemitérios onde me desloquei com um amigo que ali
fora em homenagem a um ente querido e me explicou que durante o pior período do
Inverno não havia enterramentos devido à neve.
Estávamos em Montreal
para visitar o pai e duas irmãs da Raquel que para lá tinham emigrado e estavam
felizmente bem e em pleno Inverno (não havia forma de arranjar oportunidade
para outro tempo de férias) e por isso a realidade era a neve. E, naturalmente
o frio que a acompanhava e que levava a fenómenos também inéditos para quem
como nós ali caíamos sem paraquedas.
Um exemplo apenas: as casas estavam permanentemente aquecidas e ai de que
deixasse uma janela aberta. Era um verdadeiro “crime” passível de sanções cuja
gravidade nem é bom referir. Os automóveis ficavam guardados nas garagens que
cada prédio possuía. E ligados por ficha à electricidade pois se tal não
acontecesse de manhã não arrancariam.
De resto era um verdadeiro espectáculo ver os carros circular com os
tejadilhos carregados por camadas de neve. Isto quando as ruas o permitia
depois dos limpa-neves municipais terem afastado para os passeios essas
montanhas de branco sujo. Isto significava que os peões eram verdadeiros
malabaristas..
Eu pensava para com os meus botões ao vê-los que mediavam entre os loucos e
o heróis que todos os dias arriscavam a vida em tais “procelas pedestres”. No
entanto eram relativamente poucos. Mas foi quando um dos meus cunhados me
explicou que Montreal era duas cidades: a da superfície e subterrânea.
No dia seguinte a esta elucidação ele levou-me a conhecer a cidade que
existia por baixo da terra. Com ruas e estabelecimentos ligadas à rede do
metropolitano aliás excelente com estações amplas pejadas de gente de todas as
cores, origens e vestuários. A cidade era bem o exemplo do multirracial e
pluricultural.
Estávamos na década de oitenta e decorria a questão entre a francofonia e a
anglofonia. Montreal aparentemente inclinava-se para a primeira e por toda a
parte incluindo nos sinais do trânsito em vez do STOP via-se o ARRET. Uma velha
questão que não havia de ser solucionada e que motivara um referendo que não
dera resultados concretos.
Vem de longe a questão que se arrasta sem qualquer fim à vista. O Canadá
não espera que ela se resolva de um momento para o outro. Creio mesmo que nunca
se resolverá. A História regista nos seus anais as diferenças entres os
anglófonos e os francófonos. Desde a chegada do genovês Giovani Caboto (em
inglês John Cabot) ao serviço da Inglaterra que aportou em 1497 ou 1498 à Terra
Nova. Alguns historiadores defendem que terá sido um português João Vaz Corte
Real o primeiro a chegar ali mas nada está provado.
Quem me forneceu estes dados em primeira mão foi o jornalista Charles /Charlie)
Petit Martinont do “Journal de Montréal” o maior quotidiano em língua
francesa publicado na América que eu visitei por curiosidade profissional e que
de imediato se estabeleceu uma emparia entre nós que levaria a que dois dias
depois jantássemos a Raquel e eu em sua
casa.
A sua esposa Céline, também jornalista especializada em gastronomia confessou-se
espantada com aquele “amor à primeira vista” pois o Charlie era um introvertido
que não cultivava amizades e por isso o elo que se estabelecera entre nós era um
facto raro. Foi durante essa refeição que a Céline nos propôs uma ida à cidade
de Quebeque para assistir a uma sessão do Parlamento.
Claro que aceitámos e ficou de imediato acordado que iríamos de comboio porque
com a neve e o gelo as estradas eram um tanto perigosas e além disso o seu
automóvel já tinha uns anitos… Não havia problema e nessa noite dormimos em
casa deles para apanharmos no dia seguinte o primeiro comboio.
Dormimos é um termo convencional pois o Charlie e eu conversámos toda a noite
sobre os temas mais variados sobretudo a independência das antigas colónias
portuguesas. Ele tinha sido padre e abandonara a sotaina quando encontrara a
Céline e bastante conservador longe do meu ponto de vista socialista o que não
impediu uma troca de ideias frontal e salutar.
Foi ali que me contou a história do primeiro-ministro René Lévesque um defensor
da ideia da independência do Quebeque, ideia que Charlie não aceitava. Um
Quebeque independente para ele não tinha futuro, não tinha condições para
sobreviver. Nem mesmo a teoria da associação-soberania que muitos defendiam
tinha pés para andar.
Mas eu poderia aperceber-me do que se passava assistindo à sessão do Parlamento. E
ficámos por ali, eu com os sentidos aguçados pelo que dali a pouco assistiria. Charlie
com a convicção de que eu não arredaria pé das minhas ideias – mas com a
certeza de que havíamos conquistado pontos que cimentavam uma Amizade acabada
de plantar e que daria frutos de cores diversas e sabores distintos.
E no dia seguinte lá fomos num comboio aquecido, usando parkas volumosas que
tínhamos comprado no Walmart para usarmos, pois a roupa que tínhamos trazido de
Não era a mais indicada face à temperatura que sabíamos através do canal de Meteorologia
que dava ininterruptamente na televisão.
Entrámos no edifício da Assembleia Legislativa do Quebeque num corredor formado
por neve acumulada e continuava a nevar. São verdadeiras paredes brancas sujas
que limitam a entrada do edifício. Vamos para a galeria que fica atrás das
filas dos deputados. Discute-se o Orçamento, nos moldes habituais em qualquer
Parlamento.
O primeiro-ministro usa da palavra, e percebo de imediato que se trata de um
político batido, um profissional. Recordo os dados que me tinham sido
fornecidos pelo Charlie Petit Martinont. Lévesque tinha iniciado a sua carreira
como repórter e apresentador de
rádio e televisão, e mais tarde tornou-se
conhecido pelo seu papel eminente na nacionalização da energia hidrelétrica do
Quebeque e como um defensor ardente da
soberania desse mesmo Quebeque.
Foi um ministro liberal no governo de Jean Lesage de 1960 a 1966 e o
primeiro líder político quebequense desde a Confederação a tentar, por meio
de um referendo, negociar a independência política do Quebeque. Mas não
conseguiu alcançar os objectivos pois a margem do SIM foi diminuta, umas poucas
décimas em relação ao NÃO.
O sonho alimentado ao longo dos tempos que teria um momento muito
especial aquando da última visita de De Gaulle altura em que o general e
presidente da República de França fez a célebre afirmação: “Vive le Québec
libre!” caíra para jamais se levantar. O sonho não passaria disso mesmo: um
sonho!
Para apanhar o comboio de regresso a Montreal saímos antes de terminar
a sessão. E já instalados na carruagem a Céline comentou com um sorriso quase
angelical: “Oxalá tenham gostado, ainda que os temperos não fossem grande
coisa…”
Conheço toda essa região.
ResponderEliminarMas eu fui lá no Verão.
O Inverno canadiano é terrível.
Gosto muito do Canadá.
Onde vivem uma cunhada e sobrinhos (Alberta).
País de gente incrivelmente educada.
Abração, boa semana
Caro Pedramigo
ResponderEliminarFui várias vezes a Montreal e tive a oportunidade de apreciar a cidade durante a Primavera e parte do Verão. Desde a "promenade" donde se pode admirar o rio São Loureço até ao Vieux Montreal há tanta coisa para ver que um individuo se pede e goza da cidade que parece não ter nada a ver com aquela que se encontra coberta de neve.
E não se pode esquecer o famoso sirup d'érable que eles poem em tudo o que é comestível. Há que visitar uma "cabane à sucre" para se ter a noção da importância do tal sirup...
擁抱 Abração
恩里克 Henrique
E papar Poutine e beaver tails
EliminarAbração, Páscoa Feliz
Caro Pedramigo
EliminarTotamente de acordo
擁抱 Abração
恩里克 Henrique
ResponderEliminarO Amigo, Ferreira tem sempre boas estórias para nos contar. A Neve é um espetáculo, mas um incomodo :))
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Soltam-se as gotas, como sorrisos do rosto...
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Beijo e uma excelente tarde.
PS: Deve ir rever o spam. Os comentários vão para lá. Se não conseguir diga., que lhe envio "os passos" para os libertar.
Querida Cidáliamiga
ResponderEliminarJá cá chegou o teu comentário. Pelos vistos deve ser o Spam que faz das suas. Agradeço que por e-meil me ensines o que devo fazer - muito obrigado.
Beijos & queijos
Henrique