2018-07-05



É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE - 7




Um chefe de esquadra à rasca


Antunes Ferreira
No dia seguinte a primeira coisa que o tio Miguel que logo pela manhã cedo chegara a nossa casa foi saber junto da vizinhança se alguém vira alguma coisa e podia testemunhar o que se passara. A dona Leocádia, uma senhora viúva que morava no apartamento em frente do nosso assistira a tudo através do ralo da porta tendo ficado admiradíssima com o que se passava e estava pronta para o declarar. Até se benzera ao ver o senhor Capitão metido naquelas andanças. Assim disseram outros inquilinos o principal dos quais fora o senhor Belchior reformado da Carris que vivia no rés-do-chão direito e usava uma cadeira de rodas, passava o dia debruçado no parapeito da janela e até estivera no paleio com os magalas que conduziam as “Matadores” da Segunda Guerra.
 
Esquadra de St. Marta
Logo em seguida a minha mãe, o tio Miguel e eu fomos à esquadra de Santa Marta onde o chefe enquanto estivera no Exército tinha sido subordinado do meu pai e ali apresentámos queixa. Quando a mãe se identificou o guarda de serviço foi dizer ao chefe quem era a participante e de imediato ele veio ao balcão e convidou-nos a entrar para o seu pequeno gabinete, tendo mandado buscar cadeiras para nós e fiquei a pensar que devia ser todas as que havia na instalação.

Com ar afável o chefe Roberto virou-se para a minha mãe e disse respeitosamente Vossa Excelência Senhora Doutora Maria de Fátima que deseja deste seu humilde servidor? E a mãe muito séria Senhor chefe venho participar que a minha casa foi assaltada ontem pela tarde tendo sido dela retirados vários bens cujo valor ainda não pude calcular mas que oportunamente farei aqui chegar, Roberto uniu as mãos como se rezasse e perguntou se tinha suspeitos. Pelo contrário, tenho culpados e posso apresentar testemunhas presenciais dos factos.

O polícia ficou à rasca, ia caindo da cadeira, Senhora Doutora está a fazer uma declaração muito séria e por isso, pedindo-lhe antecipadamente desculpa da pergunta, tem a certeza disso? Bem vê, a senhora é a esposa de um oficial bem conhecido cujas virtudes e aprumo são do domínio público e que vai partir para Angola em defesa do solo sagrado a Pátria. Houve um silêncio de cortar à faca, cortado apenas por umas moscas que zumbiam o que levou um guarda a entrar no gabinete, filha da pu… de varejeira! Ó Simões dobre-me essa língua, está aqui a esposa do senhor capitão Saraiva Mendes…

Camião "Matador"

E virando-se para a minha mãe, o chefe Roberto dizia a Senhora que… E ela sem papos na língua pois senhor chefe o assaltante foi o meu marido acompanhado de um sargento e de mais militares usando dois camiões do Exército de acordo com testemunhas de marca “Matador”. O polícia levantou-se num pulo, abriu os braços explodiram-lhe os olhos, tingiu-se-lhe a face da cor de tomate maduro, tirou um lenço do bolso das calças, limpou a testa perlada de suores e voltou a sentar-se. O senhor Capitão Saraiva Mendes? Pode lá ser? Podia. E com frases curtas e sintéticas a mãe corroborada pelo tio Miguel resumiu a ocorrência perante o siderado agente da autoridade.

E a terminar veio a última declaração da minha mãe. Eu não quero mover uma acção contra o meu marido do qual adianto estou a tratar da separação já que pela Igreja não posso divorciar-me. Pretendo apenas que seja registada a queixa, ouvidas as testemunhas, ouvido o arguido ou seja o capitão Gilberto Saraiva Mendes e quem ele indicar e depois destas diligências concluídas dar-me-ei por satisfeita requerendo cópia do processo e propondo o seu arquivamento, proposta que deverá ser dada conhecimento à parte contrária. Roberto apenas disse que não estava dentro da sua competência assim proceder mas que ia dar conhecimento dela aos seus superiores e depois informaria em conformidade. O tio Miguel esclareceu que o assunto passaria a correr por intermédio do advogado da Senhora e que esta oportunamente o comunicaria.

Dali rumámos á Baixa, mais precisamente à rua dos Sapateiros para irmos à Loja Sol dos irmãos Mesquita onde a família comprava todos os electrodomésticos lá para a casa a fim de repor os que o meu pai tinha levado. Ora nós tínhamos sido dos primeiros a possuir televisor logo que a RTP começara a transmissões experimentais da Feira Popular em 1957 e por isso o meu pai fora logo comprar um televisor Grundig que custou a enormidade de quatro contos e quinhentos escudos. O salário de um capitão mal passava dos quatro contos…
 
Móvel Philco com televisão, rádio e gira-discos
Porém o senhor Raul Mesquita esfregou as mãos de contente quando a mãe lhe fez a encomenda para ser entregue “hoje mesmo da parte da tarde, há sempre gente em casa”. Um frigorífico Bosch, aquecedores diversos, Um fogão-forno De Luxe da Fábrica Portugal, um esquentador Vulcano, tudo coisa fina, do melhor que havia e para rematar a compra um móvel Philco com televisor, rádio e gira-discos. Um cheque (com cobertura e um sorriso malandreco), ó minha Senhora, saiba Vosselência que eu nunca duvidaria da qualidade de um cheque passado por si.

Passámos pelo colégio para trazer de volta a casa a Leonor e o Frederico. Este vinha todo impante: trazia uma folha de papel branco com uns gatafunhos feitos com lápis de cores. Era a sua primeira “obra artística”. Arrisquei um tanto receoso Maninho o que é? O catraio pianou, os dentes reluziram é pussôa. Dei uma gargalhada e insisti é a Nela? A Maria Manuel era a educadora por quem ele tinha uma adoração que de resto era correspondida pois ela adorava-o. É muto munita. Eu gosto muto. Então estendi-lhe a mão, ele estendeu-lhe a mãozita dele e eu fingi que não a segurava bem, deixei-a cair o que motivou uma barrigada de riso do Frederico e minha, era uma brincadeira muito frequente que dava sempre esse resultado. Finalmente um bacalhau bem “abanado” e mais gargalhadas e mais guinchos a roçar a histeria. Pronto. Vamos comer e depois deitar.

Entretanto tinham chegado os da Loja Sol e começaram a entrar as compras e a instalar o esquentador. Também tinham aparecido o Olegário e o David com o intuito de ajudar a arrumar a casa depois de terem entrado os novos componentes. E foi justamente este que trouxe a novidade. O meu pai ia embarcar para Angola daí a duas semanas no Vera Cruz um grande paquete, o maior de Portugal.
(Continua)



18 comentários:

  1. HenriquAmigo.
    Será que o genitor fez boa viagem?
    Bem, temos que aguardar o próximo capítulo, na sexta-feira vindoura, para saber como foi a viagem marítima.

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    1. Meu casto Confradamigo

      O progenitor vai entrar no próximo episódio - e mais não digo...

      Bjs e um abração do casal Ferreira

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  2. Divórcios à antiga eram assim mesmo, cada um deitava mão aquilo que podia... Mas havia reconciliações. Só que, no caso presente, o retorno dos móveis causaria novo problema, desta vez o do espaço. Vamos lá ver o que nos reservas nos próximos capítulos.
    A história continua a ser muito bem contada, como é habitual.
    Caro amigo Henrique, bom fim de semana.
    Abraço.

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    1. Meu caro Jaimamigo

      Não estou muito praí virado. Numa estória como esta reconciliação seria... pecado. Mas será o que me der na bolha... :-)
      Muito obrigado.

      Bfds para ti também e um abração deste teu amigo e admirador
      Henrique, o Leãozão

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  3. Estou a acompanhar esta interessante história amigo Henrique.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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    1. Meu caro Franciscamigo

      Excelente e muito obrigado.

      Bfds e um abração deste teu amigo
      Henrique, o Leãozão

      Já nem te peço o endereço do teu e-mail...

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  4. Acompanhando com interesse teu lindo relato! abração,chica

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    1. Minha querida Rejanamiga/Chiquitamiga

      Muito obrigado

      Muitos qjs lusitanos deste teu amigo
      Henrique, o Leãozão

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  5. Bom dia, Henrique
    A história ganha maior interesse a cada capítulo que passa...
    A reacção da polícia é perfeitamente "normal" - as coisas passavam-se mesmo assim. Tenho algumas histórias engraçadas passadas comigo mesma e a polícia, (uma vez, em plena Baixa, levei um polícia para a esquadra a que ele pertencia, onde apresentei queixa contra ele...) e a "posição" deles era exactamente essa. Tinham um medinho! :)))
    Adiante!
    Estou a gostar muito dos progressos do Frederico (o "astro" da história) e a torcer para que continuem, cada vez mais e melhores.
    Gostei muito deste capítulo.
    Continuarei a acompanhar, é claro!

    Bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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    1. Minha querida Mariazitamiga

      Só quem viveu nesse tempo - e, pelos vistos, é o nosso caso... - é que sabe como era a PSP e as outra polícias nesse tempo. Comigo também se passaram "coisas" algumas sem piada nenhuma.

      Houve um sôr guarda que na Duque de Loulé quando eu vinha a colar pequenos retratos a preto e branco do Humberto Delgado depois de uma sessão no ginásio do Liceu Camões me deu uma coronhada no "lombo" que até me fez ver a Ursa Maior e a Cassiopeia e a Ursa Menor todas juntas... :-)))

      Penso que vou interromper na próxima semana a saga para a retomar na seguinte pois quero apresentar a CONCURSO uma pergunta de características sócio-políticas...

      Muito e muito obrigado e muitos qjs deste teu amigo e admirador
      Henrique, o Leãozão

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  6. Bom! Esta saga é muito mais completa e inebriante do que a saga do Bruno de Carvalho que passou nas televisões há pouco tempo atrás!!! O que eu gosto mesmo é dos pormenores que parece que estou a ver as cenas... A D. Leocádia a espreitar pelo ralo a ver tudo bem me fez lembrar a minha avó espanhola que, lá em Algés, dava conta de tudo o que se passava no prédio pelo ralo da porta... eh eh eh... Este Leãozão é de mais!!!!

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    1. Minha querida Gracinhamiga I

      Porra!!! Que raio de ideia a tua de trazeres para aqui o suíno que dá ou dava pelo resumido BdC. Já basta de CMTV!!!!!!!!!!!!! Nunca esperei que o fizesses, és uma traidora, agora que o nosso Sporting está entregue ao Sintra com C. E para já candidatos são três fora os ameaços. Bom, adiante que para trás, como dizia o meu tio Arnesto, mija a burra...

      Pois então estás a delirar com o andamento desta pepineira. Espera pelo ainda virá e que vai ser muito pior do que aquilo que já foi, juro mesmo. Mas, como quem mais jura mais mente, completamente...

      Bjs e qjs do casal Ferreira

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  7. Uma história que continua muito interessante e bem contada. Estou a gostar bastante. Adorei a cena dos dois manos.
    Abraço e bom fim-de-semana

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    1. Minha querida Elvirinhamiga

      Muito obrigado minha Musa inspiradora.

      Muitos qjs do teu amigo e admirador
      Henrique, o Leãozão

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  8. Caro e estimado amigo Henrique, a trama segue a agarrar bem o leitor. Além de ficcionada, tem também elementos históricos. Comprovo já o da Televisão que, em Portugal, teve inicio em 1953.
    Acho que se desenha, uma boa obra a editar em papel. Acompanharei gostosamente.
    Abraço

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  9. Meu caro Danielamigo

    Tudo bem, muito obrigado, apenas com uma correcção: as primeiras emissões da RTP foram em regime experimental a partir da Feira Popular no dia 4 de Setembro de 1956. Eu estava lá com os meus pais!

    Só em 7 de Março de 1957 começaram as emissões regulares. O meu falecido pai tinha comprado um televisor Nordmende por cerca de oito contos (pelo que o ouvi dizer) dois dias antes...

    Quanto ao "papel" verá-se como diz o ceguinho...

    Um abração deste teu amigo
    Henrique, o Leãozão

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  10. É um gosto ler-te meu Amigo. E o Frederico é uma ternura…
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  11. Minha querida Gracinhamiga II

    Muito obrigado minha Poeta.

    Mil qjs do teu amigo e admirador
    Henrique, o Leãozão

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