A velha
e o cão
Antunes Ferreira
O
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tamanho do cão era pelo menos duas vezes o da
velhinha que o segurava pela trela enquanto ele ia cheirando aqui e ali a fim
de encontrar o local ideal para fazer as suas necessidades e marcar o seu
território. Tranquilamente, sem esticar a correia, o animal parecia guiar a
senhora embiocada de negro. Na mão esquerda trazia um chapéu da chuva e em
ambas luvas igualmente pretas. Nunca chegarei a saber porquê mas pareceu-me
tirada de uma tela de Henry Jones. E nem sou particularmente adepto da escola
inglesa do século XIX
…
E
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u estava
numa Repartição das Finanças para pagar um imposto de que me esquecera e por
isso acrescido da multa correspondente. O número que tirara da máquina
distribuidora de senhas ainda vinha longe, acabara o livro policial que
trouxera como entretenimento e agora mirava através da vidraça a cidade a
secar. Parara de chover há pouco mais de uma hora, mas de acordo com os
meteorologistas as nuvens negras – para eles cúmulo-nimbos – as cargas de água
voltariam a qualquer momento.
O que tu queres é ver... |
S
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entado num
dos bancos pré atendimento um casal tipo provinciano, a senhora tricotando
placidamente (um casaco de malha, um cachecol, um suéter?), ele acabando de ler
o Correio da Manha que trouxera do táxi (“as gordas, eu não sou de grandes
leituras”) e ela pensando enquanto dava às agulhas (“o que tu queres é ver as
gajas quase nuas, os homens são todos iguais…”), “Ó mulher, isto ainda demorará
muito?” “Está para lavar e durar, temos o 187-D e no quadro ainda vão no 89-B”
“Devíamos ter trazido uma bucha, é o que é… homem prevenido vale por dois”
A
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senhora idosa e o cão pararam na beira do
passeio, como se na rua em frente houvesse passadeira para peões; mas não havia.
O bicho deve ter ganido, apenas o pressupunha, o vidro, a distância e o tráfego
impediam-me de o ouvir. E que trânsito! Filas enormes, veículos quase
encostados uns aos outros, piso escorregadio em paralelepípedos, uma manteiga,
e gente, muita gente anónima numa rua desumana salpicada de charcos acabados de
chover.
Uma bizarma carregada de tijolos |
F
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oi então que
reparei que a senhora era cega e o cão o seu guia. E ainda que ela pretendia
atravessar a rua sem ser na passadeira, ao que o cão se opunha; mas era teimosa
e avançou arrastando o animal que fincava as patas no asfalto. À frente da fila
do trânsito – a rua era de sentido único – vinha um camião carregado de
tijolos, uma bizarma de cabine cor do Inferno. Sobressaltei-me e corri para a
rua: a velha ia ser atropelada. E o cachorro também.
Um gigante de boné vermelho |
U
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ma chiadeira
tonitruante de travões, o condutor saltou da cabina e pegou no braço da senhora
levando-a cuidadosamente para o passeio do lado de lá da rua. O cão seguiu-os
com a trela de novo lassa. Tudo parecia ter terminado bem não fora o coro de
impropérios vindos dos diversos veículos que seguiam o camião “filho da puta,
cabrão, tiraste a carta a quem?, bandido quase me matavas!” e por aí fora. O
motorista era um gigante com dois metros ou coisa que valesse, boné vermelho, todo
músculos, barba de três dias.
D
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irigiu-se
calmamente ao condutor do primeiro carro que ao vê-lo avançar tentou levantar o
vidro da janela, mas o matulão deitou-lhe a mão impedindo-o de o fazer, e sem
levantar a voz “ Foi o senhor que chamou qualquer coisa que não ouvi bem à
minha falecida mãezinha?” O cavalheiro do carro não disse nada – mas ficou
branco. Voltando-se para o resto da fila, repetiu a pergunta. Respondeu-lhe o
silêncio.
F
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oi na altura
que se ouviu uma voz baixinha vinda do passeio “És tu, Alfredinho?” O matulão
virou-se e de repente avançou para a velhota “Ó Dona Lurdes, nem a conheci”,
abraçou-a carinhosamente e deu-lhe dois sonoros beijos. “Sabes, Alfredinho,
depois de tantos anos a tua voz encorpou-se mas continua a mesma…” Em dois
minutos combinaram encontrar-se, “minha querida Dona Lurdes, o trânsito está fo…,
difícil…”
V
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oltou para a
cabina. E a Dona Lurdes adiantou-se um pouco para atirar um beijo de despedida;
um chico esperto, impaciente, carro modelo top, farto de esperar, acelerou,
ultrapassou a fila, acertou na velha, passou-lhe por cima e fugiu. Ela ficou enrodilhada no asfalto, com
um ribeirinho de sangue a correr. Estava morta. Esmagada. O cão uivou. Alfredinho
voltou a saltar da cabina,
Pois, mas o Alfredinho devia ter tirado a matrícula ao atropelante
ResponderEliminarOs matulões nem sempre são espertos. Mas quem sabe, talvez, até a tenha tirado e o atropelante tenha sido castigado.
EliminarCaro Cunhamigo
EliminarTinha se tivesse tempo e oportunidade; mas era mais importante acompanhar na morte a sua professora da terceira classe
Bjs da Raquel e abç do Henrique, o Leãozão
Querida Teresinhamiga
EliminarScheiße! Isto está uma ganda confusão: a resposta ao Cunhamigo vai misturada com a tua e o matulão já nem sei onde para. A última vez que o vi estava ajoelhado a beijar a mão morta vai bater àquela porta oops, morta da Dona Lurdes sem sequer ter tirado a matrícula do carro do Hurensohn que matou a velhinha. Desembrulha-te
Qjs do Henrique, o Leãozão
Porque mataste a vélhinha, Henrique?
ResponderEliminarUma linda história, embora triste, mesmo a calhar na época do Advento.
Ich wünsche dir ein kurzschliges und gemütliches Wochenende 🐯
Eliminar
EliminarVielen Dank, dass Sie eine große und erholsames Wochenende Woche ist auch für Sie
kleine Käse
Henrique, o Leãozão
Querida Teresinhamiga
EliminarO enredo era assim - como havia de não o cumprir? Com muita pena, mas foi mesmo em cheio.
Ad vento de Cuba? Pois claro, morreu o Fidel...
kleine Käse
Henrique, o Leãozão
Também faço a mesma pergunta que a Teresa - porque é que mataste a velhinha??
ResponderEliminarGostei da história, não gostei da morte da velhinha e do FDP que a matou.
Aquele abraço para ti, beijinhos para a Raquel, bfds
Caro Coimbramigo
EliminarA única, repito a única coisa que temos certa na vida é a morte. Assim sendo, por que bulas a Dona Lurdes não havia de morrer? Eu só a ajudei - e não me chamo Kevorkian...
Tribjs e qjs e abç para tu
Henrique o Leãozão
:( Aposto que o carro topo de gama era um mercedes e o gajo usou a estrela para fazer de ponto de mira...
ResponderEliminarCaro Gilamigo (sem ???...)
EliminarFaço marcha atrás e não tenho um mercedes, tenho um modesto hyundai accent com 12 anos... Portanto não tenho - nem sou - estrela. Mas com esta conversa da treta já me ia esquecendo de te dar as boas vindas. volta logo que quiseres; mas depressa...:-)))
Aç do Henrique, o Leãozão
Estava gostar muito da história, mas o fim deixou-me desconfortável, confesso. Não estava à espera deste desfecho trágico. A velhinha não merecia...
ResponderEliminarUm abraço e um bom fim de semana
Querida MissSmilamiga
EliminarPoizé! Mas, antes do mais, sê muito bem vinda. Fico muito feliz com a primeira visita e o primeiro comentário. Obrigado.
Já entendi as mensagens e até peno que devo fundar um Sindicato dos Comentadores Contra a Morte da Velhinha (SCCMV)...
Qjs do Henrique, o Leãozão
Mataste a velha professora mas criaste um matulão coração de manteiga.
ResponderEliminarUma história triste. A vida é tramada.
Grande abraço, Leãozão.
Caro Agostinhamigo (II)
EliminarSó tu éke m'entendes. É mesmo assim como dizes. E mais: quem escreve assim não é ggggaaagggooo... Claro cumo binho tinto: a bida é madrasta.
Abç do Henrique, o Leãozão
História tão bem contada mas com final triste...pena.
ResponderEliminarBom fim de semana
xx
Querida Papoilamiga
EliminarTenho a honra de te comunicar que já estás´proposta para o SCCMV (ver por extenso acima) Logo que possível enviar-te-ei o cartão de sócia...
Qjs do Henrique, o Leãozão
Pois é amigo esta sua história teve um fim triste...
ResponderEliminarmas às vezes sucedem casos idênticos.
A pressa das pessoas é algo aflitivo nos temos que correm.
Desejando que esteja bem e sua mulher.
Bjs.
Irene Alves
Querida Irenamiga
ResponderEliminarVivemos realmente num Mundo impiedoso em que a velocidade, a ganância, a insensibilidade,o lucro, os milhões são os deuses aos quais os homens têm duas posições: os os que dominam, os que detêm o dinheiro, o que o mesmo é dizer o poder e os que amocham, que dobram a coluna, que fazem vénias para obter umas migalhas umas esmolas que não chegam para viver.
E assim vamos sobrevivendo - e morrendo como a Dona Lurdes
Bjs da Raquel e qjs do Henrique, o Leãozão
A história é muito bonita. Mas os seus leitores não vão gostar da morte da velhinha. A malta anda tão cansada das agruras do dia a dia, que o que os encanta são histórias de finais felizes. Talvez seja por compensação, mas é assim.
ResponderEliminarUm abraço e bom domingo
Querida Elvirinhamiga
EliminarNão se pode gostar de tudo. Se todos gostassem do amarelo que seria do castanho, do roxo, do verde-alface e do lilás? Lembra-me sempre a estória do bêbado:
O corpo há que satisfazê-lo e contrariá-lo: se ele pede vinho dá-se-lhe vinho; se ele pede água, então dá-se-lhe... vinho...
Mas, já tenho no prelo uma estória com um final muito feliz. Juro.
Qjs do Henrique, o Leãozão
Henriquamigo, junto-me ao coro, não devia ter matado a velhinha ;)
ResponderEliminarO enredo ia tão bem,a repartição de finanças tão normal e o matulão tão bonzinho...se calhar o desgraçado que a atropelou tinha chumbado na primária :D
Um beijinho para si e outro para a Raquelamiga.
Querida Fernandinhamiga
EliminarPoizé, mais uma proposta para o SCCMV... No entanto a segunda parte do teu comentário é bem interessante e prima pela lógica: o malandro que atropelou e fugiu deve ter chumbado não só na primária mas também na carta de condução... :-)))))))
Bjs da Raquel e qjs do Henrique, o Leãozão
Desta vez comoveste-me com a tua história maravilhosa e cheia de humanidade (tua, claro)... Uma boa semana.
ResponderEliminarUm beijo.
Queria Gracitamiga (I)
ResponderEliminarHá muito tempo (demasiado, talvez...) que não me chamavam humano/b>... Mas, vieste tu, minha querida e falas de humanidade (minha). Comovido fiquei eu, comovido e feliz o que aparenta ser quase contraditório; mas não é: porque tu que jogas com as palavras como eu jogava com o pião na minha juventude, sabes jogar esse jogo...
Qjs do teu admirador Henrique, o Leãozão
OURO DE LEI
ResponderEliminarQuase todos os comentários a este post afinam pelo mesmo diapasão: O texto é lindo mas não devias matar a velhinha. Portanto decidi fundar o SCCMV. Mas, o próximo post vai ter um final feliz ao gosto de quem ainda o vai ler. E o título será Ouro de lei Qjs & abçs Henrique, o Leãozão
Boa tarde, amigo! é uma historia que pode ser real, a mesma é comovente, não é o modo de vestir, nem a riqueza exterior que revela inteligência e bom carácter, é pelo carácter que devemos avaliar e não por gestos e sorrisos automatizados, amigo! peço desculpa pela minha ignorância, assim sendo, diga-me uma coisinha, afinal quem é que tinha ou tem tipo provincianos, é o casal ou o meu amigo, o que é o "tipo provinciano?" como se avalia esse tipo, ou será que também é, uma maneira de descriminar?.
ResponderEliminarBoa semana,
AG
Caro Gomesamigo
ResponderEliminarIgnorantes são os que não são capazes de pensar, de se interrogar, de usar como medida o bom senso, a verdade, a honestidade e solidariedade. Esses é que são ignorantes, repito, o que não e absolutamente, o teu caso, caro Amigo.
Boa pergunta... Sou alfacinha, mas também sou provinciano, da província da Estremadura, agora caída em desuso, mas que persiste quanto mais não seja na minha (nossa?) memória. Quando escrevo provinciano não tenho nenhuma intenção de descriminar quem quer que seja - até porque para mim os Homens são todos iguais.
Exceptuando a cor da pele e do cabelo... por dentro têm/temos todos coração, pulmões, fígado (o meu é mau...) ossos, cérebro etc. e tal. Donde provinciano é apenas uma forma de dizer que vem da província que não é oriundo da cidade capital... No caso vertente e o casal...
Muito obrigado pela pergunta. Se a resposta não for suficiente ou incompleta diz que tentarei fazer melhor... (*)
Abç do Henrique, o Leãozão
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(*) O exemplo da Teresinhamiga (ematejoca) é elucidativo. > troca de correspondência - mesmo a electrónica - é sempre salutar.
Gostei muito do conto, afilhado.
ResponderEliminarHá gente horrível a quem não devia ser dada carta de condição,
porque há testes para tudo, até para avaliar o caráter.
Beijinhos e abracinhos para ti e Raquel.
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PS - Passa pelo meu espaço - tenho fado. Vais gostar.
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Querida madrinhamiga
EliminarFico muito feliz por me dizeres que gostaste deste textículo. Costumo perguntar a quem diz ter tirado a carta de condução: "mas a quem foi?" :-)))))
Já fomos pedir os vistos para a viagem a Goa que, como te disse, deve ser a última, por falta de ma$$a$... Não somos ricos nem esperamos sapatos de defuntos. Adiante... Como dizia o meu padrinho Armando para trás "mija" a burra....
Bjs da Raquel e qjs do afilhado Henrique, o Leãozão
Vou já ao teu palácio...
por Júpiter caro Henrique, nã estava à espera de um desfecho destes... é certo que já desejei finais idênticos a muitos professores, porque alguns eram verdadeiras pestes, mas eram coisas de ganapos, sem mal nenhum :)
ResponderEliminarCaro Manelamigo
EliminarPor Baco, hic, hic, também desejei e com muitíssima forca - e força - coisas destas a alguns mestres e outros espantalhos e/ou filhos da puta que e o que não falta por aí. Quando era catraio e até... agora!
Abç do Henrique, o Leãozão
Gostei, Henriquamigo, apesar do desfecho trágico. Cena que poderia ter acontecido em qualquer artéria da nossa capital.
ResponderEliminarBeijinhos e abraços aqui da velhinha, professora que não da 3ª classe...
Querida Gracinhamiga
ResponderEliminarÉ bem verdade isso que dizes. Mas, se todos os desfechos fossem cor-de-rosa o que faria o arco-íris?
A setôra não é velhinha; quando muito é quase idosa...
Bjs da Raquel e qjs do Leãozão (vá lá, desta feita safámo-nos...)
Estava a gostar tanto desta história e depois dá-se esta reviravolta e não gostei nada de como termina!
ResponderEliminarNem todas as histórias tem um final feliz ....
ResponderEliminarUm maravilhoso dia pra vc =)