2016-11-24

A velha
e o cão


Antunes Ferreira


O
 tamanho do cão era pelo menos duas vezes o da velhinha que o segurava pela trela enquanto ele ia cheirando aqui e ali a fim de encontrar o local ideal para fazer as suas necessidades e marcar o seu território. Tranquilamente, sem esticar a correia, o animal parecia guiar a senhora embiocada de negro. Na mão esquerda trazia um chapéu da chuva e em ambas luvas igualmente pretas. Nunca chegarei a saber porquê mas pareceu-me tirada de uma tela de Henry Jones. E nem sou particularmente adepto da escola inglesa do século XIX

E
u estava numa Repartição das Finanças para pagar um imposto de que me esquecera e por isso acrescido da multa correspondente. O número que tirara da máquina distribuidora de senhas ainda vinha longe, acabara o livro policial que trouxera como entretenimento e agora mirava através da vidraça a cidade a secar. Parara de chover há pouco mais de uma hora, mas de acordo com os meteorologistas as nuvens negras – para eles cúmulo-nimbos – as cargas de água voltariam a qualquer momento.
O que tu queres é ver...



S
entado num dos bancos pré atendimento um casal tipo provinciano, a senhora tricotando placidamente (um casaco de malha, um cachecol, um suéter?), ele acabando de ler o Correio da Manha que trouxera do táxi (“as gordas, eu não sou de grandes leituras”) e ela pensando enquanto dava às agulhas (“o que tu queres é ver as gajas quase nuas, os homens são todos iguais…”), “Ó mulher, isto ainda demorará muito?” “Está para lavar e durar, temos o 187-D e no quadro ainda vão no 89-B” “Devíamos ter trazido uma bucha, é o que é… homem prevenido vale por dois”



A
 senhora idosa e o cão pararam na beira do passeio, como se na rua em frente houvesse passadeira para peões; mas não havia. O bicho deve ter ganido, apenas o pressupunha, o vidro, a distância e o tráfego impediam-me de o ouvir. E que trânsito! Filas enormes, veículos quase encostados uns aos outros, piso escorregadio em paralelepípedos, uma manteiga, e gente, muita gente anónima numa rua desumana salpicada de charcos acabados de chover.

Uma bizarma carregada de tijolos



F
oi então que reparei que a senhora era cega e o cão o seu guia. E ainda que ela pretendia atravessar a rua sem ser na passadeira, ao que o cão se opunha; mas era teimosa e avançou arrastando o animal que fincava as patas no asfalto. À frente da fila do trânsito – a rua era de sentido único – vinha um camião carregado de tijolos, uma bizarma de cabine cor do Inferno. Sobressaltei-me e corri para a rua: a velha ia ser atropelada. E o cachorro também.

Um gigante de boné vermelho


U
ma chiadeira tonitruante de travões, o condutor saltou da cabina e pegou no braço da senhora levando-a cuidadosamente para o passeio do lado de lá da rua. O cão seguiu-os com a trela de novo lassa. Tudo parecia ter terminado bem não fora o coro de impropérios vindos dos diversos veículos que seguiam o camião “filho da puta, cabrão, tiraste a carta a quem?, bandido quase me matavas!” e por aí fora. O motorista era um gigante com dois metros ou coisa que valesse, boné vermelho, todo músculos, barba de três dias.


D
irigiu-se calmamente ao condutor do primeiro carro que ao vê-lo avançar tentou levantar o vidro da janela, mas o matulão deitou-lhe a mão impedindo-o de o fazer, e sem levantar a voz “ Foi o senhor que chamou qualquer coisa que não ouvi bem à minha falecida mãezinha?” O cavalheiro do carro não disse nada – mas ficou branco. Voltando-se para o resto da fila, repetiu a pergunta. Respondeu-lhe o silêncio.



F
oi na altura que se ouviu uma voz baixinha vinda do passeio “És tu, Alfredinho?” O matulão virou-se e de repente avançou para a velhota “Ó Dona Lurdes, nem a conheci”, abraçou-a carinhosamente e deu-lhe dois sonoros beijos. “Sabes, Alfredinho, depois de tantos anos a tua voz encorpou-se mas continua a mesma…” Em dois minutos combinaram encontrar-se, “minha querida Dona Lurdes, o trânsito está fo…, difícil…”



V

oltou para a cabina. E a Dona Lurdes adiantou-se um pouco para atirar um beijo de despedida; um chico esperto, impaciente, carro modelo top, farto de esperar, acelerou, ultrapassou a fila, acertou na velha, passou-lhe por cima e  fugiu. Ela ficou enrodilhada no asfalto, com um ribeirinho de sangue a correr. Estava morta. Esmagada. O cão uivou. Alfredinho voltou a saltar da cabina,

E antes que cobrissem o corpo...
e antes que cobrissem o corpo, ajoelhou-se junto dela, pegou-lhe na mão que perdera a luva e beijou-a repetidas vezes. Recomeçara a chover e os pingos grossos da chuva misturaram-se com as lágrimas grossas do gigante “Era a minha professora da terceira classe…”