2016-09-02





Antunes Ferreira

U
m quarto para as duas da noite (ou da madrugada?) Eugénio e Palmira que tinham ido ao fado com o casal Oliveira vinham para casa. Chuva miudinha caíra sobre a cidade e os passeios escorregadios convidavam às quedas. 23 de Novembro do ano da graça de 1960 os dois tinham ido ao São Jorge, na Avenida da Liberdade (raio de nome quando a PIDE andava à solta e s polícias multavam um cidadão que usava isqueiro – sem licença) ver o Ben Hur com o Charlton Heston a protagonizar o herói judeu e quadriganizando na pista/cenário.

Quadrianizando...



D
ai tinham partido para o Bairro Alto e entraram na Adega Machado onde cantava o Alfredo Marceneiro interpretando o grande sucesso de então A Casa da Mariquinhas. Ali tinham passado um bom bocado, escorripichando um tinto sem marca acompanhando uns pasteis de bacalhau de trás da orelha. Tinham-se despedido dos Oliveiras e como não conseguiram apanhar um táxi tomaram o eléctrico até ao Rato e conseguiram ainda apanhar outro que os levou até ao Saldanha pois moravam na Cazal Ribeiro.


F
ora ali que aconteceu a “coisa”. Inopinadamente esborrachou-se no passeio um homem que tinha caído dum quarto ou quinto andar e quase os atropelara, uma verdadeira tangente. Uma secante e teriam ido num foguete para a próxima paragem – a eternidade. No quinto andar do prédio em frente do qual passavam uma senhora debruçada na varanda gritava “Ai Fernando que te mataste, ai marido que te mataste!!!!” Ambos ficaram aterrorizados, mas Eugénio de imediato bateu palmas para chamar o guarda-nocturno. Entretanto nos diversos prédios da rua acendiam-se luzes, gente chegava às janelas, outros sujeitos e sujeitas em roupões, pijamas e camisas de noite desciam as escadas e rodearam Fernando num mar de sangue, Eugénio e Palmira.
Morreu alguém?


C
aramba, o gajo está feito em fanicos, olha se os apanhavam iam direitinhos para o São Pedro…”  e outros bolsavam diversos comentários mais ou menos parvos.  Uma senhora alentada berrava também para um puto que se chegara à frente dos mirones: “Quinzinho vamos para casa isto não são coisas para a tua idade!” O miúdo fazia orelhas moucas e estava-se marimbando para a progenitora, “olha que eu vou chamar o teu pai, ele prega-te duas galhetas, mafarrico não me obedeces!” E lá em cima na varanda uma voz esganiçada repetia “Ai Fernando deste cabo de ti e de mim!  Maldita a hora em te conheci!!!” O burburinho aumentava quando chegou o guarda-nocturno, de espada à cinta, então o que é que aconteceu para haver tanta barulheira? 
Morreu alguém?


E
 tinha morrido mesmo. Quando se deparou com o cadáver o digno representante nocturno da autoridade, branco como a cal da parede, entrou na gritaria desorquestrada, “chamem a polícia! Chamem os bombeiros!” e de entre a malta ouviu-se “…e a Guarda Republicana, a tropa, a marinha, o cangalheiro, o prior a freguesia e o sacristão… Para quê? O falecido está mesmo morto…” O sereno perguntou “Quem foi o brincalhão? depois fazemos contas?!” Já era uma multidão e o da graça repetiu-se, “Vistas bem as merdas, o gajo já cá não canta, bateu as botas, parece um ovo estrelado sem azeite no passeio…” Foi precisamente quando chegou um polícia, “mas que vem a ser isto?” Mal pôs olhos no espalmado, “vou telefonar para a esquadra isto é chatice para o chefe tratar… Quem tem um telefone?” O Martins da leitaria tinha.

Vindo num táxi


C
hefe, bombeiros, judiciária já estavam no local e um polícia, “vão para casa, são proibidos ajuntamentos de mais de um!” E o malandro das piadas já a retirar ainda atirou “e mais de dois também?” ao que o cívico “Sacana, filho da mãe, vai brincar com o cara… Também tinha vindo num táxi  o jornalista de serviço no quotidiano da avenida da Liberdade – o fotógrafo já dormia a sono solto – “É um suicídio?” e o Inspector da judite, tome cuidado, lembre-se que não há em Portugal suicídios… há acidente mortais. Não se meta em sarilhos, pode vir a PIDE e… O repórter do Diário de Notícias - depois de tirar alguns apontamentos e ouvir alguns cidadãos “eu cá não vi nada, eu nem moro aqui, acabei de chegar e…”  retirou-se resmoneando “Pois; também não existem cancros, são doenças prolongadas e os gajos do Benfica não são vermelhos, são encarnados”. O Salazar mandava, o Estado Novo ajudava à missa.
Na Cazal Ribeiro


N
o dia seguinte saiu a notícia “Ontem na avenida Cazal Ribeiro pelas duas da manhã verificou-se um acidente mortal. Um senhor chamado Fernando Silva Gomes, de 39 anos, casado, debruçou-se demasiado da varanda onde apanha ar e caiu no passeio falecendo imediatamente. O corpo vai ser autopsiado. E na página do Necrotério, acrescentava-se o habitual:  Deixou viúva a Senhora Dona Conceição Gomes e dois órfãos, menores, Jacinto e Ferrando José. Depois da autópsia, seguir-se á o velório na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, donde o funeral sairá para o cemitério da Ajuda. O Diário de Notícias apresenta à família enlutada os mais os mais sentidos pêsames.  



   

27 comentários:

  1. Uma pregunta sem maldade...."deus" salvou aos Oliveiras, ou teve má pontaria?

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    1. Miramigo

      Como não acredito que haja um Deus qualquer voto pela má pontaria sobre o Eugénio e a Palmira da mulher... do Fernando!!!!! :-)))))))

      Abç

      Leãozão

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  2. Amigo Henrique,
    Continua no seu melhor.
    Beijinho e ânimo.:))

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    1. Aninhasamiga

      No meio das chatices vou levantando a cabeça e o... humor.

      Qjs do Leãozão

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  3. Querido afilhado.
    «Que vida boa era a de Lisboa!»
    Uma excelente crónica de costumes...
    Há pouca gente que trace com tão bom humor, estes
    quadros comuns de um outro tempo. Pensar que apenas
    passou meio século! Pensar que há muitas pessoas que
    dizem que está tudo igual!
    Gostei muito.
    Força, amigo.
    Gosto muito de ti, Leãozão.
    Beijos e abraços para ti e Raquel
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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    1. Querida madrinhamiga

      Boa ideia essa de citar o Fausto, grande cantor, de quem sou fã e amigo.

      Noutro registo: não quero dizer, como o Antóno Mourão "ó tempo volta pra trás" mas na verdade gosto de reviver outros tempos na minha (nossa) Cidade das Sete Colinas debruçada sobre o Tejo.

      Quem diz que está tudo igual diz mal; diz mesmo péssimo. Basta olhar à volta e descobrir como (quase) tudo mudou. Só os velhos do Restelo dizem assim? Não, todos os profetas da desgraça, os ressabiados, os que não têm memória e querem que nós não a tenhamos. O resto são tretas...

      Muito obrigado querida Majomadrnha (... e esta, hem?), a quem retribuo: eu também gosto muito de ti!

      Bjs da Raquel e qjs (muito repenicados) do afilhado Leãozão

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  4. Meu caro e também Rico Amigo,
    plumitivo de belo esmero,
    de escrita escorreita e formosa,
    desejo-te bom como um figo,
    e também fino como um pêro.
    E sempre prolixo na prosa.

    Li tua conversa gostosa
    e ficou-me debaixo d'olho
    a tal receita dos pastéis
    (pr'ó tinto, eu não bebo gasosa)
    feitos com bacalhau de molho
    - manjar dos melhores farnéis.

    Vai daí encomendo a esposa
    p'ra jantar, uns pastéis dos tais,
    dos que dizes "de trás da orelha";
    ao q'uela respondeu, 'stremosa:
    "E não queres tu nada mais?
    na idade, já vou p'ra velha

    mas não vou em barretes tais;
    O bacalhau a trás da orelha
    não tem mais que osso e cartilagem,
    mais umas pel's e nada mais;
    não preferes bacalhau na grelha?"
    Perguntou-m'ela de passagem.

    E eu o que é que lhe respondo?
    "Deixa a orelha de bacalhau,
    mais a receita do Ferreira!
    Enfiei o barrete, não 'scondo!
    Esta cabeça é um calhau!
    Vergonha para a vida inteira!

    Faz-me uns pasteis de barbatana!
    Mas esmera-te na receita!
    Que fiquem de chorar por mais!
    Nem qu'demores uma semana!
    Ou uma pinheta bem feita!
    Mas sejamos originais!

    PoiZé

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    1. Oliveiramigo

      Nunca, jamais, pensaria
      que também fosses poeta
      e que por cá entraria
      um tipo que conta chegar à meta
      Mas a via tem coisas
      que mais parecem loisas

      Nisto de vidas estranharas
      mais para o Sul, para o Norte
      revolvem-me sempre as entranhas
      e a nostalgia da morte
      Porque é assim, na verdade
      quando se entra na idade

      PoiZé meu caro Amigo
      vê lá como isto anda
      já nem sei se consigo
      recordar-me de Luanda
      Voltar atrás - isso não
      só se for ao Baleizão

      Na baía não tem barco nenhum
      não sei se te informaram
      que até a pesca ao atum
      se foi, já todos acabaram
      Por cá anda o menino Rico
      esconjurando o mafarrico


      Abç do Vate de Linha de torres




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  5. Também tem havido por aqui uns suicídios (???) muito estranhos, FerreirAmigo.
    Aquele abraço, boa semana, beijinhos para a Raquel

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    1. Coimbramigo

      Por cá e até agora ninguém da minha gente se suicidou...

      Qjs às mininas bjs da Raquel e abç para tu

      Leãozão

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  6. Meu amigo, contas as coisas de tal maneira que estamos mesmo a ver tudo o que aconteceu...
    Mas nessa altura não havia suicídios, não...
    Um beijo.

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    1. Gracitamiga

      Adoro que me digas isso pois faz bem ao meu ego. E nos momentos malditos que estamos a passar é até um lenitivo

      Qjs do Leãozão

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  7. Olá, querido Henrique!

    Não li o texto, por me sentir, hoje, mto cansada. Talvez, amanhã!

    Passei pelo seu blogue para saber de si, especialmente e do seu irmão. Já foi ao neurologista? Conte-me coisas.

    Beijinhos para ambos.

    Há novo poema no meu blogue. Se lhe apetecer, apareça. Mto obrigada!

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    1. Querida Céuamiga

      Continua o "mau olhado"! Ainda que não creia nestas coisas quem sabe se...

      O meu irmão Braz já tem metásteses nos rins e no fígado; está mais do que tramado;

      o meu filho Miguel continua à procura de trabalho/emprego e

      eu vou à consulta de um neurologista que me dizer ser muito bom...

      Muito obrigado e vou daqui a pouco ao teu blogue

      Qjs do Leãozão

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    2. "Meu" querido Henrique!

      Estou aqui, junto de vocês, sempre.
      Tenho, especialmente, pela sua pessoa, visto k foi através do blogue, k "conheci" um ser de grande porte -risos, mas a todos os níveis, um apreço e uma estima mto especiais.

      Que lisura de caráter! Que abertura, sincera, diga-se, de espírito! Gosto mto do Henrique e de todos vocês, família Ferreira.

      Foi o Miguel, k, infelizmente, continua sem emprego, k fez o blackout (que nome pomposo e técnico!), cabeçalho, bem dizendo, para o seu blogue. Tanta arte e inteligência!

      Qto ao seu irmão Braz, que Deus faça o k for melhor, sobretudo, para ele.

      Agora, só falta o Henrique. Ora, vamos lá ao neurologista, falar e "pôr tudo em pratos limpos", como é seu apanágio. O homem vai gostar de o ouvir, tenho a certeza, aliás, vão ficar amigos, coisa que não é nada difícil tendo na frente um conversador nato, mas com mto conteúdo.

      Li, agora, mesmo o comentário, que deixou no meu blogue e fiquei "babando", como se diz no Brasil. Que equação de ideias tão bem acertada! Incógnita não existe, pke o Henrique é "um livro aberto".

      Prometo voltar para comentar a sua publicação, mto brevemente.

      Um dia feliz, sem tanto calor qto ontem.

      Beijos e abraços sinceros para todos.

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    3. "Minha" querida Céuamiga

      Não tenho palavras para te agradecer; ou, melhor tenho uma: obrigado

      As verdadeiras loas que me endereças e a toda a família Ferreira caíram-me no fundo do coração.

      Mas deixa-me que te diga que não as mereço ou no mínimo são demandadas. Sou o que sou e como sou. Ponto.

      Felizmente os meus pais ensinaram-me onde ficava (e fica e ficará) o caminha da honestidade, da igualdade entre os homens, da solidariedade, enfim da Amizade.

      Nunca abandonei esse caminho e acho que jamais o deixarei - de os honrar. Porém, tendo Amigas como tu és (e por isso também gosto muito de ti, querida Amiga) as desgraças são mais fáceis de aguentar. Bem hajas.

      Quanto ao que deixei no teu excelente blogue tenho de dizer-te que verdade. Raramente tenho visto (ia escrever Nunca... mas retraí-me, pois concordo com quem diz nunca digas nunca... que depois podes arrepender-te...) Repito: raramente tenho visto alguém como tu misturando a Poesia e a Prosa.

      És realmente a dona dos verbos, das palavras, dos conceitos e das ideias. Oxalá sigas assim pois todos nós o desejam e muitos o merecem.

      E por hoje é tudo. Dar-te-ei notícias se foram menos más; mas se forem menos boas também te informarei.

      Mts qjs do teu amigo Leãozão

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    4. Obrigada, querido Henrique!

      Cá espero, então, as notícias, pke "os amigos são para as ocasiões".

      Beijos para todos vocês!

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    5. Minha querida Céuzitamiga

      Caro que sim. Vou mandando

      Qjs dos Ferreiras

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  8. Amigo Henrique
    Bela reportagem, comentada! Ouvi dizer que os jornalistas só podem dar a notícia e não usar a primeira pessoa para opinarem.É verdade?!
    Mas, sem os teus à-partes, o texto perderia muita graça.
    Obrigada pelo texto, que sempre gosto de ler.
    Um abraço
    Beatriz

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    1. Beatrizamiga

      Os jornalistas podem ter opinião, e até devem tê-la, como qualquer cidadão.

      Por isso no jornalismo há notícia e há opinião. Não se deve (não se pode) misturar uma com a outra. Logo, quando se escreve na primeira pessoa e se assina o texto é caracterizadamente opinião

      Porém o meu texto é uma crónica que nem é notícia nem opinião - é uma crónica, tal como um conto, uma novela ou um romance. Obviamente assinados (e por vezes assassinados...)

      Porém também se usa o pseudónimo - basta o exemplo do Fernando Pessoa. Era assim que explicava aos meus alunos quando dava aulas de comunicação em duas universidades.

      Enfim e como sempre muito obrigado

      Qjs do Leãozão

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  9. Mais uma história bem contada... :)

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    1. Luisinhamiga

      Mais um muito obrigado... :-)

      Bjs da Raquel e qjs do Leãozão

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  10. Eu, de novo, e finalmente para comentar o seu texto, história real ou ficcional. Seja como for, está escrita com uma habilidade e uma naturalidade, mto difíceis de encontrar, mas, enfim, foi alinhada e cosida, bem cosida pelo Henrique e está tudo dito.

    Há na publicação um misto da política vigente, da sociedade da altura, e, naturalmente, as reações da época.
    Se naquele tempo, se exagerava e se escondiam realidades, agora escancara-se tudo, sem termos, sem verdade e sem valores. Depois, quem ouve e não tem preparação, a todos os níveis, interpreta mal e tenta/faz o mesmo, por influência. É preciso saber dizer, transmitir!

    A nossa sociedade, a atual, está mto alterada, não tem regras, não tem respeito pelo seu semelhante e só existem amizades nas redes sociais, que, felizmente, não quero ter.

    Beijos e vá dando notícias, p favor!

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    1. Minha querida Céuzitamiga

      Palavra e honra que é ficção. No meio da trapalhada ainda consigo escrever umas "coisas"; escrever e idealizar. Não tenho máquina de costura pois a Singer que era da minha mãe - foi-se. Foi-se e também se foi a minha mãe...

      A misturar sou menos mau; sobretudo quando se trata de leite e farinha e algum açúcar para alguém fazer um bolo... Por exemplo a minha filha/nora Margarida a mulher do Miguel, que bolos é com ela e tem um baby ou byby ou lá que raio é...

      A Raquel é mais cozinhados (bastantes goeses) e eu limito-me a misturar - e quando a minha cara-metade deixa...

      Um destes dias temos de falar sobre a sociedade, ou melhor, suciedade. A nossa e a dos outros. Deixa passar algum e depois... falamos.

      Mts qjs dos Ferreiras incluindo obviamente o Leãozão - não fora eu do melhor clube do Mundo e arredores Spoortttiiinnnggggg!!!!

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    1. Akuñadamigo

      Poizé...

      Desde o Terciário Inferior que não te via por ca!
      Qjs & abçs para todos os Palhet..., Palhaus do Leãozão

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  12. Caro Henrique, tenho andado mais ou menos calado sem querer acreditar naquilo que me foi chegando. Há curvas na vida dificeis de superar, mesmo em negação não se fazem rectas, são setas direitas ao coração.
    Também estou numa curva ou encruzilhada. E sei que é ensarilhada. Mas amanhã haverá.
    Assim quero para ti e para mim.
    Estas crónicas hão-de continuar para dizeres como foi, como era, como é e como será.
    Grande abraço.

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